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Itaney Campos

Especial para o Jornal Opção

Na sexta-feira, dia 11 de novembro, ainda sob o influxo do Dia dos Mortos, resolvemos, eu e minha mulher, fazer uma visita ao Cemitério Santana, o mais tradicional da capital goiana, onde se acha sepultada, há três décadas, a minha avó materna. Há muito não visitava o seu jazigo, embora tenha tido sempre boas lembranças de sua fisionomia risonha, do seu rosto redondo, marcado por uma pinta preta, sobre o lábio superior, e espessos óculos de lentes arredondadas.

Apesar da melancolia intrínseca à visita, meu propósito era permeado pela alegre expectativa de ver ali, no campo santo, os jazigos de figuras históricas desta jovem capital goiana. E de túmulos de admirados escritores, precursores da nossa vigorosa literatura.

Algo me evocava o imponente cemitério portenho, na Recoleta, em Buenos Aires, onde se visitava o jazigo de Eva Péron, tornado ponto turístico.

Também me veio à lembrança a visita que fizemos ao célebre cemitério Père Lachaise, na cidade de Paris, que reúne restos mortais de artistas e personalidades que marcaram a civilização ocidental. Ali emocionei-me junto à lápide de Chopin e refleti sobre a vida e a morte rente ao túmulo de Allan Kardec.

Cemitério Santana | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

A visita ao Senhora Santana trazia, assim, edificantes expectativas. E lá fomos nós, em meu carro, em direção ao bairro de Campinas. Por volta das 17 horas, sobreviventes ao caótico trânsito de Goiânia, estacionamos ao lado do longo muro branco que delimita o velho cemitério.

À entrada, um entediado guarda civil nos olhou indiferente, mal respondendo ao nosso boa tarde.

O cemitério é bastante grande. O acesso aos seus vários pontos faz-se por meio de passarelas revestidas de bloquetes.

Logo de entrada, desagradou-nos a sujeira geral do local, com restos de sacos plásticos, flores murchas, cacos de vidros de pequenos vasos tangidos pelo vento. Muitos mausoléus achavam-se em precárias condições.

Cemitério Santana: abandono | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Estranhamente, não havia uma vivalma sequer a visitar algum parente morto. E soprava um vento forte e desagradável, prenunciando a tempestade retida nas grossas e escuras nuvens do céu.

Quando nos aproximamos do local onde devia se achar o túmulo da minha avó, e do meu avô, que morrera antes dela, ficamos estarrecidos. Dezenas de lápides estavam desprovidas das placas identificadoras. Era e é espantoso. Haviam arrancado todas as placas, deixando na superfície as marcas provocadas pelo tempo. Era e é revoltante o desrespeito à memória dos mortos e aos sentimentos das famílias.

Vândalos agiram ali de forma concertada, com vistas a comercializar as peças de ferro batido. Via-se também uma boa quantidade de túmulos depredados, violados, sem os revestimentos de mármore ou granito. As marcas deixadas nas lápides indicavam que houvera uma ação concertada de larápios, com possível intuito de comercializar as peças subtraídas.

O mais estranho é que não poderiam ter saqueado tantos túmulos sem que os guardas percebessem, porque a ação não se efetivaria sem o uso de ferramentas. Dava pra suspeitar de cumplicidade por partes dos encarregados da vigilância. Ou seja, dos guardas municipais escalados para proteger aquele local sagrado.

A coisa era tão espantosa que em certo trecho se via ao lado da lápide um saco preto com restos de terra e ossos humanos: dentro de um saco de lixo! O que se verificava ali eram vestígios de vários crimes, inclusive de vilipêndio a cadáver.

O mais tradicional cemitério da capital era uma coisa horrorosa de se ver. Por mais de 40 minutos perambulamos por ali, na tentativa de localizar o túmulo dos familiares. Inutilmente.

Fatigados e decepcionados, além de perturbados pelo vento incessante, deixamos as flores à beira de um jazigo qualquer e rumamos para a passarela que nos levaria à rua principal, de onde se acessaria a saída.

O vento forte fazia revirar a estrutura do guarda-chuva que levávamos. Quando alcançamos o portão de saída, constatamos, incrédulos e surpresos, que se achava trancado, com correntes e cadeados, tanto o principal quanto os dois menores, laterais. E não havia ninguém ali para nos socorrer. A gente se recusava a acreditar. Parecia então que a noite descia mais rapidamente. Quem poderia nos auxiliar? Nem sabíamos que setor da prefeitura poderia ser acionado. O telefone indicado pelo aplicativo Google simplesmente não atendia, dando sinais de estar bloqueado. Minha mulher já se desesperava, ansiosa, tomada de mal-estar. Lembrei-me então de um diligente amigo e fiel funcionário, que nunca me faltava, e encaminhei-lhe uma mensagem, relatando os fatos. Vinte minutos depois, uma viatura chegou, com dois guardas a bordo, que providenciaram a nossa liberação. Ficou a revolta, a lição e esta denúncia à população da capital. Estão destruindo e vandalizando o Cemitério Santana.

Itaney Campos, desembargador, é presidente do Tribunal Superior Eleitoral e é escritor. Colaborador do Jornal Opção.

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