A Fazenda Brasil Verde é uma propriedade que fica em Sapucaia, no sul do Pará. Desde 1989, pessoas que trabalhavam no local denunciaram situações análogas à escravidão. Com o passar dos anos, o Estado brasileiro foi se mostrando negligente diante das denúncias até que, em 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou, pela primeira vez, o Brasil pelo desrespeito ao direito de não submissão à escravidão e ao tráfico de escravos. 

Durante as fiscalizações do Ministério do Trabalho, ao longo da década de 1990 e 2000, eram encontrados: trabalhadores submetidos a jornadas maiores que 12 horas diárias, alojamentos em barracões cobertos de plástico e folhas, aglomerações para dormir em redes, ausência de banheiro, pessoas doentes e sem acesso à tratamentos, com água para higiene e consumo compartilhada com animais, vigília armada, retenção de documentos, relatos de ameaças e violência física, além de dívidas para alojamento, transporte e alimentação que levavam à servidão. 

João Luiz Quagliato Neto, proprietário, o gerente, Antônio Alves Vieira, e o recrutador dos trabalhadores, Raimundo Alves da Rocha, conhecido como “o gato”, foram os principais acusados pela manutenção do regime análogo ao escravo. A Corte IDH condenou o Brasil relacionando o caso ao artigo 6º, inciso 1º,  da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nele se diz: “Ninguém deverá ser obrigado a prestar trabalho forçado ou obrigatório, sendo proibido o tráfico de mulheres e escravos”. 

Histórico

As primeiras denúncias contra a Fazenda começaram a surgir ainda em 1988, pouco mais de cem anos da abolição da escravidão. As famílias de dois adolescentes que desapareceram após irem trabalhar na propriedade entraram em contato com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) a fim de encontrar os jovens. Entre 1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho análogo ao escravo foram identificadas na propriedade. Só entre 1997 e 2000, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 128 trabalhadores do local. 

Em 1989,  a CPT denunciou o caso no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em Brasília, e, em 1992, no Ministério Público Federal. As respostas iniciais das cortes apontavam insuficiência de provas e prescrição dos crimes. Nesse período, foram realizadas quatro ações do Ministério do Trabalho na propriedade, e, em cada uma delas, dezenas de trabalhadores em condições degradantes foram resgatados. Apesar disso, a Fazenda se manteve ativa durante toda a década de 90, reforçando a omissão do Estado. Eventualmente, alguns trabalhadores conseguiam fugir da propriedade e denunciar a situação. 

Alimentos para consumo dos trabalhadores ficava exposto l Foto: Reprodução / CPT.

Em 1998, o caso chega à Justiça oficialmente pela primeira vez através de denúncia do Ministério Público Federal. No ano seguinte, a Justiça suspendeu processo penal contra o proprietário da Fazenda, e determinou o pagamento de seis cestas básicas para uma organização não governamental de Ourinhos (SP), cidade de origem de um dos trabalhadores. A partir dos anos 2000 ações na Justiça do Trabalho também começaram a correr. 

Em 2001, o juiz federal vinculado ao caso se declarou incompetente para julgá-la, e o caso foi para Justiça Estadual, que, em 2004, fez o mesmo. Conforme informado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em 2007, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que a competência era da Justiça Federal, mas, no ano seguinte, a ação penal foi extinta em razão da prescrição dos crimes.

A sentença da Corte IDH explica ainda que a ação chegou a se perder nos trâmites da Justiça Estadual. “O Estado informou à Corte que não existia informação sobre o que teria ocorrido com este processo e que não havia podido localizar cópias dos autos da investigação”, afirmaram. 

O coordenador da Campanha Nacional da Pastoral da Terra contra o Trabalho Escravo, frei Xavier Plassat, comentou o caso: “As denúncias só aumentavam junto ao governo brasileiro, mas mesmo assim não surtiram o efeito esperado de responsabilização dos envolvidos e de reparação das vítimas. Foi por essa recorrência e pela ausência de atitude eficaz do Estado e do Judiciário que recorremos à Comissão”.

Sentenças

Em 2011, a Corte IDH emitiu o Relatório de Admissibilidade e Mérito 169/11, em que colocou o Estado brasileiro como responsável pela violação de direitos humanos, do direito à integridade física, psíquica e moral e por não coibir a prática da escravidão e da servidão. O relatório recomendou ainda uma série de medidas a serem implementadas pelo governo no prazo de dois meses – adiado por dez vezes -, que não foram cumpridas.

Em 2015, a Corte IDH submeteu o caso ao julgamento do colegiado No ano seguinte, conforme informou o Tribunal Superior do Trabalho, “os juízes condenaram o Brasil e declararam, pela primeira vez, a responsabilidade internacional de um Estado pela violação do direito de não submissão à escravidão e ao tráfico de escravos, por violação às garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável e por violação à proteção judicial”.

Ficou determinado que o Brasil deveria reabrir as investigações e os processos penais ligados às denúncias constatados nas fiscalizações de abril de 1997 e de março de 2000. O Estado brasileiro também deveria adotar medidas para evitar a prescrição dos crimes. Também ficou imposto o pagamento de indenização, no prazo de um ano, de indenização por dano imaterial de US$ 40 mil (cerca de R$ 217 mil, atualmente) para cada trabalhador encontrado na Fazenda Brasil Verde em regime de servidão.  

O pagamento das indenizações foi realizado parcialmente, já que a morosidade na condução dos processos deu espaço para se perder contato com as vítimas. Segundo Frei Xavier, da CPT, 54 vítimas ainda não foram localizadas para receber as indenizações.

O proprietário João Luiz Quagliato Neto foi condenado à prisão apenas em 2023, devido à fiscalização de março de 2000. Foram definidos sete anos e seis meses de detenção. Outros processos seguem em andamento.

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