Associação Brasileira de Letras condena universidade que retirou livro de vestibular após pressão conservadora

02 maio 2023 às 18h58

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Não é de hoje que livros causam polêmica no Brasil. Pra quem acha que censura é coisa da época da ditadura, está enganado. Hoje as “proibições” de leitura são mais sutis – apesar de ainda existirem algumas institucionalizadas -, e estão ligadas a questões ideológicas. Mesmo assim, a literatura segue viva e resiste, tanto aqui quanto no resto do mundo.
A última polêmica envolveu o livro “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Marçal Aquino. Grupos conservadores não gostaram nada de saber que a obra cita os nomes coloquiais dados aos órgãos sexuais masculino e feminino e também descreve um pé de maconha e condenaram a sua indicação no vestibular da Universidade de Rio Verde (UniRV). Mas, no livro, tudo isso tem um contexto.
O romance foi publicado em 2005 pela editora Companhia das Letras que se manifestou dizendo que “o livro explora temas como amor, traição, violência e redenção”, além de retratar “com detalhes a atmosfera e a paisagem da região amazônica.
Associação Brasileira de Letras condena censura
Nesta terça-feira, 2, a Academia Brasileira de Letras (ABL) se solidarizou com o escritor e publicou uma nota de repúdio em que diz que a UniRV “cedeu a pressões políticas obscurantistas”. A ABL afirmou ainda que está engajada em revogar a proibição da obra.
Para o presidente da União Brasileira de Escritores de Goiás (UBE-GO), Ademir Luiz, o movimento conservador contra qualquer obra literária é censura. “Não existe justificativa. A censura moral é um retrocesso. A partir do modernismo, a literatura se abriu e a discussão do que pode ou não ser escrito em uma obra é voltar ao passado”, afirmou Ademir.
O presidente da UBE-GO, que também é doutor em História e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), explica que as críticas que o livro de Marçal Aquino recebeu dos conservadores de plantão é moral e não estética. Justamente por isso, ele lamenta que a universidade tenha cedido à pressão conservadora.
O Jornal Opção procurou a UniRV, que informou, em nota, que a obra de Marçal Aquino não fará parte das obras indicadas para os vestibulares da instituição. A universidade explicou que uma banca formada por professores atuantes em escolas públicas e particulares de todo o país foi a responsável pela escolha do título contemporâneo, que é trabalhado nos principais cursinhos pré-vestibulares e presente na lista obrigatória de diversos concursos no país.
No entanto, a UniRV, ao tomar ciência do conteúdo do livro, voltou atrás e excluiu imediatamente a obra das indicações de leitura obrigatória para o vestibular. “A Universidade de Rio Verde está de parabéns ao indicar a leitura de obras literárias para o vestibular. Com o Enem, isso não existe mais e o fato de que um corpo de profissionais indicou uma obra contemporânea no lugar de um clássico merece elogios. Mas ceder à pressão dos conservadores é condenável”, avaliou Ademir.
Obra de Marçal Aquino não é a primeira polêmica literária
Não é a primeira vez que um livro gera polêmica no país. A obra de Monteiro Lobato tem sido alvos de críticas. Historiadores têm criticado o conteúdo racista da obra do autor. Um parecer técnico solicitado pelo Ministério da Educação recomendou a permanência da obra “Caçadas de Pedrinho” no Programa Nacional Biblioteca na Escola, mas com a seguinte advertência: “só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”.
Na época que a polêmica explodiu, diversos autores de prestígio tomaram partido. Foi o caso de Ziraldo, autor de “Menino Maluquinho”, que manifestou publicamente defendendo a importância de Lobato para as futuras gerações. Já Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor”, condenou o conteúdo racista da obra e alertou para seus efeitos danosos, especialmente nas crianças negras.
O clássico “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, de Roald Dahl, foi reeditado no início do ano. A editora britânica responsável pela publicação decidiu remover da obra trechos que considera ofensivo em referências a gênero, aparência e peso dos personagens. Esse conteúdo foi totalmente apagado ou modificado.
O presidente da UBE-GO é contra que qualquer texto seja reescrito e não vê sentido no que chama de “reescrever a história” e acredita que além da censura moral, exista aquela que é feita em nome do politicamente correto. “É um absurdo. As pessoas esqueceram do papel da nota de rodapé. Se existem alguns conteúdos sensíveis, considerações devem ser inseridas nesse espaço. Se permitirmos que um texto seja reescrito, isso vira um círculo vicioso que não tem mais fim”, comentou.
Obra proibida no Brasil
Hoje no Brasil o livro “Minha luta”, publicado em 1925 que reúne as ideias nazistas na obra escrita por Adolf Hitler, é proibido. Uma decisão de fevereiro de 2016 da 33ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro censurou a obra. A justificativa do juiz Alberto Salomão é que o texto “incita práticas de intolerância contra grupos sociais, étnicos e religiosos”.
“É correto. Nós sabemos o que essa ideologia provocou. Mas quando falamos de livro, isso é documento histórico. A história existiu e aconteceu para nos ensinar algo”, comentou o professor que ainda lembra que a decisão faz com que haja versões piratas espalhadas por aí.
Durante o período da ditadura, a obra também contava na lista dos livros censurados pelo governo juntamente com outras 204 publicações. Entre elas, obras de Vladimir Lenin, líder da revolução russa, de Ernesto Che Guevara, sobre a revolução cubana, e do escritor francês Marquês de Sade. A justificativa dos militares era que o material era “subversivo” ou “pornográfico”.
Histórias parecidas se repetem mundo a fora
Nos Estados Unidos, escolas têm “fugido” de obras polêmicas. Dados da American Library Association, revelam que os pedidos de retirada de livros de escolas e bibliotecas públicas atingiram o maior número dos últimos 20 anos. Segundo a PEN America, uma ONG de Nova York que trabalha contra a censura literária, contabilizou mais de 2.500 proibições de livros no país e estima que cinco mil escolas e quase quatro milhões de alunos foram atingidos com o ato.
E o maior problema é que maioria dos pedidos de proibição envolve obras que lidam com questões de minorias. Só entre 2021 e 2021, de acordo com levantamento da PEN America, dos mais de 1.600 títulos que foram censurados de alguma forma no país, mais de 80% apresentavam pessoas proeminentes da comunidade LGBTQIA+ ou não brancas. Mas, na contramão disso, existem jovens que estão organizando clubes de leitura onde as obras proibidas são lidas pelos estudantes.
“São verdadeiros herois da resistência”, elogiou o doutor em História, que acredita que, quanto mais proíbem, mas aumenta a vontade de ler. “Podemos citar como exemplo o livro ‘Código da Vince’, de Dan Brown, que foi condenado pela Igreja Católica. A proibição fez que a obra se tornasse uma das lidas”, lembrou.