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Em janeiro de 2020, por ocasião da fundação do Instituto Cultural Bernardo Élis (ICEBE), e novamente numa quinta-feira, 12 de junho de 2025, em uma tocante palestra na Academia Goiana de Letras, o presidente do ICEBE, Dr Nilson Jaime, presenteou o público com uma obra singular: o poema em prosa “A Terra e as Caraíbas” de sua autoria. Esta peça literária é uma sensível “transliteração” do aclamado livro “A Terra e as Carabinas” de Bernardo Élis, transportando a essência da narrativa para a linguagem poética.

Para compreender a profundidade de “A Terra e as Caraíbas”, é essencial revisitar brevemente a livro original de Bernardo Elis, publicado em 1942, que representa um marco da literatura goiana e do romance de 30 no Brasil. A obra mergulha na vida rude e nas paixões intensas dos sertanejos do interior de Goiás, retratando a luta pela terra, os conflitos familiares e a busca por justiça em um ambiente marcado pela violência e pela natureza imponente. A prosa de Bernardo Élis é carregada de lirismo e regionalismos, pintando um retrato vívido da alma goiana.

Nilson Jaime, com sua sensibilidade artística, não apenas adapta a narrativa, mas a reinventa em sete partes poéticas. O poema evoca a figura emblemática da caraíba – o majestoso Ipê amarelo, árvore símbolo do cerrado – e o chalé construído por Bernardo Élis e sua esposa, Maria Carmelita. No poema, o casal é metaforicamente representado como um par de furnarídeos, os conhecidos “joões-de-barro”, aves que constroem seus ninhos com esmero e dedicação, simbolizando a união e a ligação com a terra.

A leitura emocionada de “A Terra e as Caraíbas” por Nilson nas duas ocasiões resgatou a memória afetiva da obra de Bernardo Élis, conectando as novas gerações com a riqueza da nossa literatura regional. A escolha do poema para marcar momentos importantes como a fundação do ICEBE e uma palestra na Academia Goiana de Letras sublinha a importância da obra de Élis e a relevância de sua preservação e divulgação.

A Terra e as Caraíbas,

Poema em Prosa composto em sete partes, por Nilson Jaime, remonta à icônica caraíba (Ipê amarelo) e ao chalé construído por Bernardo Élis e sua esposa Maria Carmelita (um casal de furnarídeos, no poema) completo a seguir:

A Terra e as Caraíbas – Parte 1 (“Rosa”)

Nilson Jaime

“Ah, se essa caraíba falasse!”
Diria Rosa
fosse viva
sabedoria sabida
e matuta
indesde que
mocinha em flor
saíra da roça
feita serviçal
no lar do menino Bernardo
e seus pais
– Erico e Marieta –
margem direita
do serpenteante Corumbá
ziguezagueando pecados
Pireneus
ao Paranaíba
ao Paraná
ao Prata
ao Atlântico
e ao mundo…
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Fora Rosa
– moça sertaneja valente
respondona
palpitenta
teimosa
enxerida
analfabeta
sapiente de tudo sobre tudo –
quem introduzira Bernardo
no mundo surreal
dos seres míticos
do sertão sem fim.
Fora Rosa
– suas estórias contadas
olhos arregalados
voz desmesurada
hiperbólica
afetada–
quem instilara
no cachopo Bernardo
o gosto pela ficção
conúbio do universo coloquial
num sertão Cerrado.
Arquivo 2: A Terra e as Caraíbas – Parte 2 (“Carmelita”) e Parte 3 (“Castelo”)
A terra e as Caraíbas
(Parte 2 – “Carmelita”)
Nilson Jaime
Mas hoje quem suspira
– olhando o verde faiscante
das folhas compostas digitadas
folíolos subsésseis-peciolulados
no calor do verão
galhario desfolhado
da árvore decídua
e heliófita
enfezadiça e amorrida
aurífera florescência vivente
flores zigomorfas
cálice tubuloso
irregularmente lobado
corola amarela
de doer olhos
quando agosto do desgosto chega
vaporoso inverno cerratense –
é Maria Carmelita
nonagenária
segunda consorte
paixão outonal
do imortal de Corumbá
amor terminante
do bardo’sertão.
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A terra e as Caraíbas
(Parte 3 – “Castelo”)
Nilson Jaime
No ermo Jardim América,
Incipiente
o casal de furnarídeos
fez ninho de felicidade,
com barro acumulado pela ex-freira
enquanto noiva de Cristo.
Da porta do chalé
Estilo suíço,
o hexagenário escritor,
já maior, quando nasceu sua consorte,
levantava olhos
e via chão perder de vista:
o sertão cerrado
sendo invadido pela cidade infante
que se achegava dia-pós-dia.
Dava pra assuntar a Serrinha ao Sul
e o Mendanha a Oeste,
vegetação serpentínica
coriácea
Invadindo ruas de terra recém-destocadas,
capoeiras de douradinha do campo,
alecrins dourados,
flores jacintos,
barba-de-bode,
lobeiras,
baru
e aratiuns.
Nos amanheceres molhados
e nos entardeceres chuvosos,
miríades de tanajuras,
bitus e aleluias
prenunciavam a estiagem
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nuvens prateadas,
alegria dos bem-te-vis,
anus brancos
anus pretos
saracuras e seriemas.
Quero-queros
implicavam as raros passantes.
Arquivo 3: A Terra e as Caraíbas – Parte 4 (“Vaca Brava”) à Parte 7 (“Casa de sonhos”)
A terra e as Caraíbas
(Parte 4 – “Vaca Brava”)
Nilson Jaime
A noite chegava lusco-fusco,
iluminada por vaga-lumes
pirilampos,
ofuscados pela luz nova
de Cachoeira Dourada.
Sapos/ rãs/ gias e pererecas
coaxavam cantos batráquios
nos brejos e veredas
do Vaca Brava
logo abaixo.
Araras grasnavam em casal
No ocos buritizais
Mauritia flexuosa
folhario em leque.
Curiangos, corujas e rasga-mortalhas,
aves notívagas e agourentas,
anunciavam em rasque-rasque
hora de dormir.
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A terra e as Caraíbas
(Parte 5 – “Bandeirantes”)
Nilson Jaime
O casal de primos/ –
vergônteas longínquas
de “Fradinho” e “Mãe Grande”;
dos Bartolomeu Anhangueras
– pai e filho;
de João Ramalho e Bartira;
de Piqueroby e Tibiriçá –
intentou plantar árvore
celebrar amor florescente.
“Tem que ser madeira forte
medrar com viço”.
Ipê-amarelo,
símbolo do Brasil,
foi preferência de Bernardo.
Dizer do zoto é símbolo de Goiás,
mas qual o quê!
Bernardo aprendeu
Pelo sertanista Leolídio
que o pau-papel da Serra Dourada é que é!
O romancista nunca não fala Ipê,
mas caraíba!
Caraíba é nome arrumado dos índios,
língua deles: “homem sabido”.
A planta tenra
em lata de querosene perfurada ao fundo
pra não empoçar água
e encharcar raiz,
veio encomendada:
“tem que plantar na lua cheia
de dezembro ou janeiro,
pra mó de dar sustança
e viço nas folhas”.
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A terra e as Caraíbas
(Parte 6 – “Ipê Caraíba”)
Nilson Jaime
“Caraíba é planta Bignoniácea.
gênero Tabebuia
mais de 60 espécies”,
ensina professor Rizzo.
Árvore farturenta,
pau pra toda obra,
cabo da enxada que negaram a Supriano
o negro Piano.
Caixão do moribundo,
quase defuntento Liduvino,
no Veranico de Janeiro.
Canoa para Nhola dos Anjos
nas cheias do Corumbá.
Cruz para os martirizados n’O Tronco.
“Pau de dar em doido” – ou forca –
para a jagunçada
a soldadesca excomunguenta do Duro,
raiz de tanta ruindade.
Por acá no comércio,
e por alá no sertão,
Caraíba é “para-tudo-do-campo”;
“para-tudo-do-cerrado”;
“pau-d’arco”; “caraibeira”; “carnaúba-do-campo”;
“caroba-do-campo”; “carobeira”; “carobinha”;
“cinco-em-rama”; “cinco-folhas-do-campo”; “claraíba”;
“ipê-do-cerrado”; “ipê-do-campo”; “ipê-amarelo-paulista”;
“aipé”; “ipê-amarelo-cascudo”;
sem conta de nomes
dado pelos capiaus
e indígenas
nesse sertão de meu Deus
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que só Rosa pra dizer.
Se não soubesse, inventava.
Um botânico diz se chamar
Tabebuia aurea (Mart.) Bur.,
ou Tabebuia caraiba (Mart.) Bur.,
que é a mesma coisa.
“Um entendido ficou de assuntá as flor
pra mode saber melhor”.
Belo dia mês de agosto,
árvore desfolhada e sequilenta,
surgiram primeiras flores,
sexo das plantas: cálice,
corola, estames, anteras, ovário.
Amarelo de dar gosto,
parecido ouro do Abade
ou do salto corumbá.
Abóboda aurífera de doer vistas,
encanto dos passantes
e os convivas
no chalé dos passarinhos.
Ano a ano a árvore foi crescendo,
e ficou adulta –
noiva coroada amarelo-ouro.
A terra e as Caraíbas
(Parte 7 – “Casa de sonhos”)
Nilson Jaime
“Ah, se essa caraíba falasse!”
Quanta prosa!
Quanta poesia!
Quanta proesia!
Quantos projetos e sonhos
feitos e desfeitos.
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Sob copa florescente,
pisando corolas amarelas coalescentes ao chão,
caíram e coroaram-se reis.
Fizeram-se imortais da AGL.
Carmo recitou ajustou Jurubatuba,
Ely, Pium!
Prima Rosarita os Elos da mesma corrente.
Miguel Jorge sorveu Veias e Vinhos
para não subir Nos ombros do Cão.
Com os irmãos Jesus e Joaquim Jayme
fizeram revoluções.
Sob a copa primaveril ou outonal da caraibeira,
poetou com Gilberto
polemizou com Zé Mendonça e Siron.
Renovou votos de patrono com o GEN de Miguel,
Heleno, Chein e Coelho Vaz.
Fez planos oníricos como Brasigóis, Kleber, Px e Aidenor.
Viu nascer Bira Galli, Luiz de Aquino, Paulo Bertran, Edival,
Abílio Wolney, Maria de Fátima e Lêda Selma.
Padeceu dores da ditadura
com Horieste e Euriquinho.
Posou para Confaloni, Amaury, DJ, Isa Costa,
Octo marques, Gomes de Souza e Maria Carmelita.
Filosofou com Jávier Godinho, Licínio,
Ursulino, José Asmar e Jerônimo Geraldo.
Politicou com Hélio de Britto, José Luís Bittencourt, José Asmar, Batista,
Hérbert, Francisco e Haroldo de Brito.
Tomou chá com Amália, Nelly e Ana Braga.
Dois dedos de prosa viravam

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duzentas braças de conversa
com José Fernandes e Modesto Gomes.
Descobriu-se expressionista com Emílio Vieira.
Sob a chuva prateada de flores decíduas,
discutiu dez novos colóquios
com Bariani e Carmo, caraíbas como ele.
“Ah, se essa caraíba falasse!”.
Mil amigos por ali se despediram:
Alaor, Antônio Moura, Augustinha, Delermando, Targino;
Hélio e Reinaldo Rocha;
Martiniano, Hamilton Carneiro e Moema;
Leôncio, Catelan e Mário;
Paulo Araújo, Olavo Tormim, Taylor Oriente
e uma constelação de astros de variados quilates
da cultura goiana.
Foi sob a copa da caraibeira,
com o jovem Euler Belém,
que desatou o nó górdio
da Fundação de Cultura
no Dia do Não-Fico:
quebrou o cálice de fel e cicuta,
rompeu os grilhões da burocracia.
Foi à sombra da caraibeira
que Goiás ficou imortal
com Austregésilo de Athayde,
Alceu Amoroso Lima,
José Olympio,
Luís Jardim,
Jorge Amado
e Arnaldo Niskier.
O mais frequente de todos os amigos
(Leolídio Di Ramos Caiado –
visitou Bernardo diariamente,
no ocaso da vida do imortal.)

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As frequentes despedidas
testemunhadas pela árvore caraíba
foram se escasseando…
até desaparecer,
quando o velho Caraíba se foi.
Foi debaixo da icônica caraibeira que se deu
o juramento de uma vida:
“Maria, promete que não vende essa casa?”.
“Que isso, meu amor! Você será imortalizado nela!”.
A Casa Museu Bernardo Élis é hoje a sede do Icebe!
Lá se estuda Goiás,
sua cultura e os povos do Cerrado.
Uma casa de caraíbas – a árvore e o escritor.