A mulher humilde que salvou Goiânia de uma tragédia (ainda maior)

08 março 2025 às 12h40

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Gabi. Era assim que Maria Gabriela Ferreira era carinhosamente chamada por familiares e amigos. Gabi morreu no final da manhã de 23 de outubro de 1987, no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, aos 37 anos. Ela partiu a poucos dias de seu aniversário de 38 anos, em 3 de novembro. Uma idade precoce até para os padrões da época (em 87, a expectativa de vida do brasileiro era de 65 anos). A partida antecipada – e sofrida – foi o sacrifício feito por Gabi para salvar Goiânia da potencialização da maior tragédia que já se abateu sobre a capital.
Ainda jovem, Maria Gabriela colocou algumas roupas na mala e deixou a cidade de Porto Nacional, na época ainda parte de Goiás, mas hoje, Tocantins, migrando primeiro para o município de Morrinhos, depois, para Goiânia, onde estabeleceu morada no final da década de 70. Maciel Ribeiro, pai de Devair Ferreira, com quem Gabi casou-se em 1971, conta em entrevista ao Diário da Manhã na edição de 24 de outubro de 1987:
“O começo foi muito difícil. Para o seu sustento e de seu irmão, ela teve que trabalhar como doméstica, sempre maltratada pelos patrões, que mais queriam explorar sua força de trabalho”, descreve o sogro.
Nos últimos dias de internação no hospital carioca, conforme boletim médico de outubro de 1987 (divulgado pelo Diário da Manhã), Gabi apresentava insuficiência renal, sufusões hemorrágicas em ambos os olhos e “já não reconhecia as pessoas”. A deterioração ainda em vida era consequência dos terríveis efeitos da radiação. Maria Gabriela Ferreira foi a primeira vítima do acidente radiológico do césio-137 ocorrido em Goiânia, e a primeira vítima por uma contaminação desse tipo em toda a América Latina.
A exposição de Gabi ao elemento radioativo foi uma das maiores. Afinal, foi ela, incumbida de coragem e sabedoria que independem de qualquer nível de estudo, que decidiu levar a cápsula aberta do material radioativo para as autoridades.
A esposa de Devair, o humilde dono do ferro-velho onde o equipamento originalmente usado em tratamentos oncológicos foi aberto, expondo o que de mais letal havia dentro dele, foi de ônibus até a Vigilância Sanitária levando, dentro de uma sacola, a cápsula de 22 kg. A decisão foi tomada após perceber que todos os entes amados ao seu redor passaram a adoecer depois do contato com aquele belo e misterioso pó azulado brilhante.
A iniciativa de Gabi, que determinou o alerta geral das autoridades, custou caro, e sua saúde decaiu rápido. Ela chegou a ser internada no então Hospital Geral do Inamps, que hoje é o Hospital Estadual Alberto Rassi (HGG), mas seu caso era de gravidade maior, além da capacidade de tratamento de Goiás naquela época. No aeroporto de Goiânia, pouco antes de embarcar para o Rio de Janeiro – onde ficaria internada até sua morte -, disse: “Levei a peça para a Vigilância porque estava adoecendo meu povo e queria que sarasse logo”. Ela vestia touca e máscara de proteção enquanto subia no avião, e chegou a fazer um sinal positivo, para indicar que estava bem.

Conforme o Estado de Goiás, em Goiânia, sete focos principais de radioatividade após a abertura da cápsula foram identificados e isolados. Nesses locais, houve a contaminação de pessoas e do ambiente. “Das 249 pessoas que apresentaram contaminação, 129 necessitaram de acompanhamento médico especial”.
“Dessas, 30 foram assistidas em semi-isolamento em albergues montados no Estádio Olímpico e na Fundação do Bem Estar do Menor (Febem). Vinte pacientes foram encaminhados para cuidados ao Hospital Geral de Goiânia. Quatorze dessas pessoas evoluíram a um estado mais grave e foram transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro (RJ), referência no atendimento a radioacidentados”, destaca a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO).
Em 2025, o acidente com o césio-137 completará 38 anos. Segundo a SES-GO, o Centro de Assistência aos Radioacidentados, o Cara, tem cadastradas 1.360 pessoas, todas afetadas de uma forma ou de outra pelo letal pó do brilho azulado. Indivíduos que perderam a saúde física e mental, entes queridos e uma vida inteira em decorrência da tragédia.
E não fosse uma humilde mulher saída de Porto Nacional para tentar a vida em Goiânia, a história, sem sombra de dúvidas, teria sido inimaginavelmente mais desastrosa. Maria Gabriela Ferreira salvou Goiânia. E como tantas outras mulheres que exercem o heroísmo no cotidiano, merecem ser conhecidas e para sempre lembradas.

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