A mulher encurtou a saia ainda mais

18 julho 2025 às 14h19

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Acrescentar um ponto a um conto é algo normal à rotina dos que lidam com a literatura. Isso, óbvio, também ocorre na vida real e até de modo bem hiperbólico. Na verdade, é na vida real que a literatura vai colher o que escrever e então utiliza o tempero estético das figuras de linguagem. Fato que exige do escriba arte e engenho. (O que não é caso deste que você, altaneiro leitor, está a ler.) Muitas vezes, no exagero do relato, um mero pum, na vida real, pode virar uma merda. Neste caso, estamos falando de fofoca, a qual pode ocasionar bate-boca, que pode evoluir para sopapos e até terminar em morte. Quanta a esta, muita gente já perdeu a vida não por fazer fofoca, mas por ter dito a verdade.
Na Bíblia consta que a busca do conhecimento da verdade liberta quem sai à sua procura. Mas aqueles que não a buscam e ela é-lhes levada contra sua vontade podem libertar o diabo que há dentro deles. Em “O Nome da Rosa”, romance de Umberto Eco, os personagens Guilherme de Baskerville e o velho monge Jorge de Burgos (este bibliotecário da abadia e cego) têm uma conversa interessante sobre a verdade. Segundo o bibliotecário, que é o antagonista na história, “nem todas as verdades são para todos os ouvidos.”
A verdade matou o filósofo, teólogo, matemático Giordano Bruno (1548 — 1600). Foi sapecado vivo por ordem da Inquisição por defender sua verdade: discordar que a Terra era o centro do universo, entre outras coisas mais destoantes da cartilha das verdades impostas pela Santa Igreja. Nos tempos tenebrosos de então, era blasfemar que a fogueira era acesa. Pulando de 1600 para 1953, por aqui, em nosso torrão do pequi, quando Goiânia ainda era uma adolescente de 20 anos, o jornalista Haroldo Gurgel foi assassinado com uma renca de tiros na Praça do Bandeirante.

Por trás da motivação do crime, a matéria “O homem voltou e deu à luz”, publicada no jornal “Momento”, que criticava severamente o governo de Pedro Ludovico. O atentado cruel contra a liberdade de expressão teve repercussão nacional. O jornal “Voz Operária”, do Rio de Janeiro, fez matéria de quase uma página, se valendo de um título que atingia diretamente o Palácio das Esmeraldas: “O QUARTEL-GENERAL DO CRIME FICA NO PALÁCIO DO GOVÊRNO”.

| Foto: Reprodução
Os palácios dos governos andam sempre envolvidos com sangue. Gregório Fortunato, o “Anjo Negro”, que era chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas (e que até penteava o cabelo do chefe em público), derramou sangue: encomendou a morte de Carlos Lacerda, mas os pistoleiros acabaram matando o major Rubens Vaz. E mais sangue jorrou depois disso. Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na história: suicidou-se com um tiro no peito nas primeiras horas de 24 de agosto de 1954. Sócrates (469 a.C. — 399 a.C.) foi condenado a tomar cicuta, morreu por suas ideias “subversivas”: induzir os jovens a desenvolverem um espírito crítico e questionador, inclusive de suas crenças nos deuses gregos, cujo todo poderoso era o casanova Zeus, que transava com deusas, ninfas e humanas.
Voltando ao acréscimo de um ponto em conto, Machado de Assis — o Bruxo do Cosme Velho — inclusive tem um conto intitulado de “Quem conta um conto”. Há alguns pontos presentes neste relato, mas que não deformam a essência do fato. Porém silenciei as reticências, pois são palavras ausentes no texto que falam pela boca de outras. Prefiro dar voz às palavras das entrelinhas às das reticências… Vamos ao que realmente interessa. Divaguei demais.
Amantino ainda está por aí. Inclusive fiquei sabendo, por intermédio de um parente dele, que seu estado de saúde não é nada bom. A morte, no entanto, lhe virá de morte morrida: está com um câncer de próstata. Já o vizinho de Amantino morreu de morte matada, teve sua vida interrompida por um tiro de 38 bem em cima do coração. Amantino sumiu por alguns meses com a mulher, mas voltou para Goiânia e foi morar num bairro bem longe do que morava anteriormente. Deixou a barba crescer. Foi tocando a vida. Não frequentava bar para evitar ser abordado pela polícia. Tomava suas pingas em casa.
Certa vez, Amantino estava passando a pé por uma rua do Setor Sul quando uma diarreia inesperada o fez acelerar os passos em direção a um lote baldio numa viela do setor. Não fosse isso, certamente teria sujado a calça. A altura do mato (mais pés de mamona) foi-lhe muito providencial para ocultá-lo na realização de suas necessidades. Tão logo fez papel higiênico das folhas de mamona, levantou as calças e saiu do mato todo aliviado para prosseguir o seu caminho: pegar o ônibus rumo à sua casa na Vila Mutirão. Estava fazendo uns bicos de pedreiro setor.
Assim que saiu do mato e pôs os pés no asfalto, uma viatura da Polícia Militar que passava parou bruscamente. Três policiais desceram rapidamente já de arma em punho e gritando: “Deita no chão e põe a mão na cabeça, o que tá fazendo mato?” Merda nenhuma valeu a explicação de Amantino, que até se ofereceu para levar os policiais ao monte que fizera. Sua sugestão acabou lhe rendendo um safanão bem dado na cara por um dos policiais. O policial estava com sangue nos olhos, e a frase (tomada como desacato a autoridade) encheu-os de mais sangue ainda.
Levantando a ficha de Amantino com sua identidade pelo radioamador da viatura, descobriram que ele tinha um assassinato nas costas: há uns dois anos tinha matado o amante de sua mulher, que era seu vizinho. Foi um tiro certeiro no coração, e Amantino não tocou num fio de cabelo da mulher. Em seu amor doentio pela mulher, ele, diferente de muitos homens, a poupava de sua violência. Dali os policiais já o levaram algemado para a delegacia. Passou uma boa temporada na cadeia. Alguns meses depois de sua prisão, foi descoberto outro assassinato dele por motivação semelhante. No longo tempo em que ficou preso, sua mulher encurtou a saia ainda mais.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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