Defensor público alerta que há pessoas morrendo nas filas dos hospitais públicos por falta de atendimento adequado e culpa o governo pelo caos na saúde, que, segundo ele, piorou nos últimos três anos

Arthur Marques, defensor público: “Quadro  da saúde é grave, caótico”
Arthur Marques, defensor público: “Quadro da saúde é grave, caótico”

Ruy Bucar 

Ele conhece de perto a realidade da saúde do Estado e não tem medo de meter o dedo na ferida e apontar os verdadeiros responsáveis pelo que classifica de caos. O defensor público Arthur Luis Pádua Marques aponta que a crise da saúde é problema de má gestão dos recursos públicos e culpa o governo pelos transtornos. “A gente cuida melhor de animal do que de gente, porque as fiscalizações de doenças de animais são exigidas e feitas. Já o nosso povo está sem assistência à saúde. Na nossa visão, o quadro é grave, é caótico, não são faltas pontuais como querem dizer”, alerta o defensor, observando que o quadro vem piorando gradativamente nos últimos três anos.

O defensor diz que a situação da saúde pública no Tocantins poderia ser diferente se o Ministério Público Estadual já tivesse instalado o serviço de investigação de óbitos, que poderia esclarecer muita coisa e levar a mudanças necessárias e urgentes. “Nós não estamos fazendo investigação de óbitos dentro dos hospitais públicos do Tocantins, o que seria fundamental para avançarmos no processo de consolidação do pleno acesso à saúde”, afirma Arthur Pádua, que defende a instalação deste serviço imediatamente como forma de pressionar a melhoria do sistema.

“A gente sempre chegou a conclusão que o problema é falta de gestão, é falta de responsabilidade com o dinheiro público, o que está na saúde também, porque não adianta falar que investe mais de 1 bilhão de reais e esse dinheiro ser gasto de forma que não contenta aquilo que necessita”, declara o defensor, para ressaltar que os problemas do sistema de saúde do Tocantins não são falta de recursos, mas de gestão, de planejamento e de rigor no cumprimento das metas.

Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, o defensor público Arthur Luis Pádua Marques fala ainda sobre a importância da visita técnica do Ministério da Saúde, que pode ajudar a resolver problemas graves como o descumprimento de forma reiterada, por parte do governo do Estado, a decisão judicial. Arthur levanta outro problema que está acontecendo na área de saúde do Tocantins: o não pagamento aos fornecedores. Segundo ele, isso contribui para a deterioração da qualidade dos serviços. “Se não paga não tem como o prestador prestar o serviço. Há algum tempo essa é uma estratégia, não pagar e comprar de outro”, denuncia.

Estamos chegando a uma situação de caos na saúde do To­can­tins e a cada novos casos graves apontam a omissão do governo, o responsável pela gestão desse sistema. O que explica esse caso?
Há três anos tem uma ação coletiva na Defensoria Pública e nesse tempo vimos alertando e tentando tomar medidas extrajudiciais administrativas para solução do problema da saúde, sempre em conjunto com os Mi­nistérios Públicos Federal e Estadual e com a Defensoria Federal. Temos observado que o grande problema da saúde é a falta de gestão. Apesar de existir uma secretaria até hoje ela não funcionou. O quadro é muito negativo na questão da troca de secretário. Foram sete secretários em três anos e pouco. Então só aí já nasce um problema porque não tem continuidade de gestão, um planeja, chega outro e muda tudo. A falta de planejamento desencadeou esse problema.

Que explicação vocês tem para a crônica falta de material básico de consumo, conforme denúncia dos médicos?
Tínhamos alertado sobre isso desde o início. Entramos com uma série de ações coletivas, cerca de 10: falta de leito de UTI, desabastecimento e por último agora essa questão do desabastecimento de insumos e medicamentos. Chegamos ao ponto de entrarmos um dia no HGP (Hospital Geral de Palmas) e nos depararmos com uma menina que entrou na unidade por problema de falta de insulina e contraiu quatro bactérias em razão da desorganização, da falta de ventilador respiratório que muitas vezes previne a proliferação da bactéria, havia falta de medicamentos para combater essas bactérias. Tomamos providências urgentes, ajuizamos ação civil pública na Justiça Federal, e fizemos depois um acordo em audiência que o Estado descumpriu. Já é a terceira vez que o Estado descumpre esse acordo, voluntariamente porque não consegue gerir e porque há muitas dúvidas no processo de gestão, sobretudo por gastos com o dinheiro público. Infelizmente, agora no Hospital Dona Regina, vemos o mesmo quadro do HGP. Há um tempo, no Hospital Infantil, há equipamentos de utilização urgentíssima esperando uma reforma, que demora não sei quantos meses, talvez mais de quatro que eu tenho em memória. Então a gente verifica que a gestão não evolui para que o cidadão tenha o mínimo de atendimento. No Hospital e Mater­ni­dade Dona Regina estava faltando medicamento para fazer parto, chegou a faltar anestésico, como se faz cirurgia sem anestesiar a pessoa? Faltou medicamento de fundamental importância para o amadurecimento dos pulmões de recém- nascido prematuro. Segundo os relatos médicos, se ele é entubado sem a utilização daquele medicamento há risco para o pulmão. E não tem esse medicamento. Qual a perspectiva do pon­to de vista humano no To­cantins? É zero, a gente cuida melhor de animal do que de gente, porque as fiscalizações de animas são exigidas e são feitas, mas o nosso povo está sem assistência à saúde. O quadro é grave, caótico, não são faltas pontuais como querem dizer. Esperamos que esse novo secretário tenha sucesso, tenha sorte e também comprometimento com a gestão para que sobretudo a população carente, usuária do SUS, tenha acesso e seja melhor atendida.

Pelo que o sr. diz, quando se fala que tem gente morrendo nas filas dos hospitais por falta de atendimento não é exagero, é a mais pura verdade?
É. Inclusive temos aqui várias ações indenizatórias de pessoas que morreram por falta de medicamento. A Defensoria Pública já entrou contra o governo para o Estado indenizar as famílias. Realmente há pessoas morrendo, isso foi dito por uma enfermeira do Dona Regina. Falta leito de UTI e paciente morre, então aí depois a investigação do óbito é o que poderia e deveria ser feito pelo Ministério Público e não avançamos nisso no Tocantins. Não estamos fa­zendo investigação de óbitos dentro dos hospitais públicos do Estado, o que seria fundamental para avançarmos no processo de consolidação do pleno acesso à saúde.

O fechamento da UTI neonatal do Hospital e Maternidade Dona Regina, denunciado pela Defensoria Pública e que ganhou repercussão nacional, é outro flagrante grave da falta de compromisso do governo com a saúde. Como o sr. avalia a visita da Comissão do Ministério da Saúde?
A presença do Denasus [De­par­tamento Nacional de Auditoria do SUS] aqui é fundamental e é obrigação porque ele tem entre as suas competências fiscalizar os Estados no que diz respeito ao atendimento saúde. Então a presença do Denasus é importantíssima. Desde a primeira inspeção que começamos a fazer nos hospitais a gente encaminhou ao Denasus e tivemos uma reunião com eles no final do ano passado. Ontem até conversei com um colega da Procuradoria da República aqui do MPF, ele falou a mesma posição, a gente avalia positivamente a presença deles aqui. É função do Denasus e a gente precisa de mais dados técnicos. Quem tem condições de fazer uma fiscalização e relatório melhor no que diz respeito à questão técnica hospitalar mesmo e de saúde é o Denasus, órgão responsável para isso.

Como o sr. avalia a situação do Hos­pital e Maternidade Dona Regina com o fechamento de UTI que motivou a visita técnica do ministério?
Considero grave a situação do Dona Regina, gravíssima. São situações que envolvem não apenas uma pessoa, mas a mãe e a criança. A vulnerabilidade de uma gestação é muito grande, ali tem várias situações de gravidez e parto de risco. E essas mães, na hora de consolidar uma etapa da vida aqui, a partir da gravidez e do nascimento do filho, não têm assistência. Faltam medicamentos, materiais essenciais, falta tudo. E simplesmente tivemos de ficar durante três anos ouvindo a mesma estória da última secretária de saúde (Vanda Paiva), principalmente no último período, de que está comprando, o fornecimento, o laboratório não fornece, a mesma conversa de sempre. A conclusão é de que o problema é falta de gestão, falta de responsabilidade com o dinheiro público que está na saúde também, porque não adianta falar que investe mais de 1 bilhão de reais e esse dinheiro ser gasto de forma que não contenta aquilo que necessita.

No Tocantins não faltam recursos, mas gestão?
Não é falta de recurso. Relatório do TCU (Tribunal de Constas da União) emitido no final do ano passado pegou que, não me lembro agora o número exato, mas 100% das ações que o Estado cumpriu por meio de ordem judicial demandada pela Defensoria teve sobrepreço. Esse relatório tem que ser divulgado, tem que ser falado, para que a sociedade saiba realmente o que estão fazendo com a saúde no Tocantins.

O caso da criança Bruno Kauã Ferreira da Silva, que morreu por negligência no atendimento, no caso a UTI área que não atendeu o chamado por falta de pagamento havia cinco meses, por parte do Estado. Esse fato comprova a falência do sistema de saúde do Estado?
É. É mais um caso que comprova aquilo que nós também comprovamos aqui no HGP, o Estado não paga quem fornece a ele, não paga. Estamos vivendo um grave período de vários calotes do Estado com relação a contrato público. Esse é um, a empresa de UTI aérea que ganhou a licitação até nos encaminhou um expediente dizendo que a dívida do Estado estava na casa dos R$ 2 milhões e eles não tinham como operar, segundo disseram no do­cumento encaminhado à De­fen­soria e ao Mi­nistério Público. Parece que agora efetuaram um pagamento, mas se não paga não tem como o prestador prestar o serviço. E essa é uma estratégia, há algum tempo, não pagar e comprar de outro. Isso também aconteceu no decorrer do último governo.

Como fica o cidadão diante dessa situação, para onde apelar?
O grande foco da Defensoria é o cidadão. Infelizmente continuamos recebendo pessoas que no ponto mais difícil da vida, na hora da doença, da dificuldade, estão sendo abandonadas. Muitas vezes, pessoas tiram dinheiro do próprio bolso, pedem dinheiro na rua ou dentro do hospital para conseguir comprar medicação para um parente que está internado ali. Isso é desumanidade e a população deve cada vez mais reagir, procurar o Ministério Público, a Defensoria para tentar garantir o máximo possível de acesso aos direitos fundamentais que o cidadão tem.

A crise da saúde tem solução?
Acho que sim. Não posso falar enquanto gestão, porque o meu papel não é esse, mas percebo que há possibilidades, muitos Estados não têm problema de abastecimento, porque o problema aí é compra, é dinheiro, então o problema está no dinheiro, no gasto, na conservação, na preservação do dinheiro público diga-se de passagem. A solução seria uma gestão mais segura, de mais responsabilidade com o pagamento, com o armazenamento, a logística. Quando a gente entra no almoxarifado hoje, parece que está bem mais organizado, mas a situação era muito complicada, havia desperdício de dinheiro público através dos remédios que ali se perdiam, com muita gente tendo que comprar aqueles remédios. Acredito que o novo secretário, se realmente tiver intenção de mudar, poderá mudar, há dinheiro para isso e os tocantinenses merecem essa mudança na saúde.

Como tem sido a atuação dos órgãos de controle que acompanham a área da saúde? Como avançar diante de uma realidade que causa desânimo?
A nossa avaliação é negativa do ponto de vista da gestão, mas estamos atuando em conjunto justamente para nos fortalecermos um pouco mais. Estamos atuando hoje nos dois Ministérios Públicos, Estadual e Federal, Defensorias Estadual e Federal, em conjunto porque a situação realmente merece essa atuação mais de perto. Com relação à gestão, se melhorou ou não, em alguns pontos há uma evolução. Estava faltando medicamentos na UTI e resolveram esse problema, só que agora está faltando na obstetrícia, também na oncologia, tratamento da fibrose cística não tem. Não há uma equidade nessa evolução. Ao mesmo tempo em que consegue solucionar problema de determinada especialidade, tem dez destampados, fica-se apagando incêndio. O funcionamento da saúde no Tocantins hoje está assim. Todos os dias na Defensoria se vê pessoas atrás de medicamentos. Em Palmas está na média de cinco a seis pessoas por dia que vêm no atendimento individual, fora o tanto que vai no NAC [Núcleo de Ações Co­letivas], que a gente está sempre orientando. É possível evoluir e a gente torce muito para que esse secretário consiga fazer isso, porque a nossa visão é realmente garantir direito à população, apenas isso. São direitos mínimos fundamentais da pessoa humana.

Como o sr. avalia o seu envolvimento na questão? Que recomendação dá ao cidadão que às vezes não sabe onde procurar e o que fazer quando é surpreendido por um atendimento ruim nos hospitais?
Nosso envolvimento é fundamental, é fundamental que a Defensoria e o Ministério Pú­blico estejam na defesa do cidadão, esse é o nosso papel. Não estamos fazendo nada mais do que a nossa obrigação, que a lei normatizou que assim fosse. E devo dizer para o cidadão que ele pode contar com a Defensoria Pública, que nós estamos imbuídos de uma atuação para que seja mudada essa realidade social da saúde que temos aqui. Tanto que a Defensoria recentemente criou o Núcleo Especializado em Saúde (Nusa), que vai atuar também em conjunto com o NAC e com os demais colegas. Criamos esse núcleo porque sabemos da necessidade que a população. O cidadão pode contar sim com a Defensoria enquanto instituição. Que ele saiba que a Defensoria tem autonomia, independência para atuar em defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, que são violados pelo Estado, sem qualquer tipo de influência. A Defensoria está preparada e a população que não conseguir o acesso direto na secretaria ou no hospital ou em determinado órgão público de saúde, pode sim procurar a Defensoria Pública. Vamos tentar primeiro resolver amigavelmente extrajudicialmente, mas caso não seja possível e caso seja tão urgente que não dê tempo, nós postularemos na Justiça qualquer medida para fazer com que o cidadão tenha acesso e tenha direito.

Essas postulações ou apelações na Justiça têm tido resultado?
Tem tido resultado, mas infelizmente há problemas. A título de exemplo, em 2012 nós ajuizamos quatro ou cinco ações civis públicas de saúde, em questões graves, falta de UTI, o que estamos sofrendo hoje de novo, pacientes para cirurgias, política de álcool e droga, enfim, algumas ações nós tivemos o deferimento da liminar delas em primeiro grau, de todas elas, concurso, o juiz deferiu a liminar, o Tribunal de Justiça do Tocantins cassou todas elas, o TJ do Tocantins, na época presidido pela desembargadora Jaqueline Adorno, ela cassou as cinco liminares, inclusive de UTI. Tivemos que fazer um TAC, num foi aquilo que a população queria 100% mas evoluiu no número de leitos, acabou evoluindo, mas o que a gente percebe também é que o poder judiciário não está acompanhando essa evolução. Quando se chega ao judiciário uma matéria referente a saúde como temos hoje duas ações civis públicas esperando que o juiz aprecie a liminar, uma de tratamento de câncer, faltou medicamento e ainda faltam alguns, eles solucionaram quando a gente entrou com ação, mas ainda existe o problema. Então nós precisamos enfrentar a violação dos direitos sociais fundamentais a partir da nova ótica de um novo modelo de Estado. De 88 para cá o nosso Estado não é mais o mesmo de antigamente, temos hoje um modelo de Estado social, são direitos fundamentais, isso é muito estudado em qualquer faculdade de direito. Nós mudamos nosso modelo de Estado e o nosso poder judiciário, isso também é uma posição da ministra Eliana Calmon, não evoluiu para isso. Só em 2004 que foi criada a escola da magistratura para os magistrados estudarem os novos direitos, enfim, nós não tivemos isso. Nós temos um modelo muito mais romano, de obrigação, de contrato que valoriza muito mais contrato, mas nessas ações de Estado que envolvem a pessoa humana elas vão ficando de lado. Nós temos quantas ações civis públicas paradas? Sentimos falta de uma posição mais firme do judiciário, porque em vez de tomar a decisão pela urgência que o caso requer, posterga para tentar fazer acordo, não enfrenta a medida de urgência, e a situação da vida do pobre lá no SUS é urgente. Acredito que o grande desafio da Justiça é tentar verificar o que chega de urgente para ela, é urgente na vida do pobre lá embaixo, é isso que ainda falta.