“Sou um artista que nasceu nas noites goianas”
23 dezembro 2016 às 09h44

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Em Palmas para apresentação com o parceiro Tom Chris, cantor e compositor goiano,
também um cartunista do primeiro time, fala de sua trajetória artística
Dock Júnior
O cantor e compositor Antônio Pádua da Silva, conhecido como “Pádua Cantador”, é goianiense e iniciou sua carreira artística ainda na década de 70, como cartunista. Aniversariante nesta segunda-feira, 26, ele diz que nasceu no “dia internacional da ressaca” — nasceu em 26 de dezembro de 1959. Foi vencedor de inúmeros festivais e um dos precursores de apresentações ao vivo em casas noturnas em Goiânia. Pádua usa da fusão de sonoridades para forjar a matéria-prima de sua música, nunca se prendendo apenas por uma temática musical e poética, buscando assim a linguagem simples de sua terra e de seu País. Ele é, acima de tudo, um artista do palco, de pequenas e grandes plateias, sempre com muita interatividade com o público, abrindo um leque de propostas musicais, que sempre nortearam seu trabalho como compositor e como intérprete.
Em 2002, Pádua, Fernando Perillo, Maria Eugênia e João Caetano idealizaram e realizaram o “Projeto Canto da Gente”, surgindo daí o CD “Canto da Gente”. Com este projeto, foi realizado mais de 40 shows no interior de Goiás e na capital. Foram os únicos brasileiros convidados a participar do Wien Jazz Fest, em Viena, na Áustria, alcançando excelente repercussão no meio artístico musical e cultural europeu, deixando na capital mundial da música o registro da música goiana.
Atualmente sua parceira é com o cantor Tom Chris, com quem faz turnês nas principais cidades goianas, além de algumas capitais brasileiras como Palmas. Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Pádua fala sobre sua história, a ascensão na carreira e o conteúdo dos espetáculos. Além de releituras de alguns nomes da MPB, um trabalho autoral bem significativo e singular, com composições solo e parcerias com alguns dos grandes nomes, também fazem parte do show. Ele confidenciou sobre a composição da sua música mais famosa, “Louca Magia”, que se tornou um dos seus maiores sucessos e praticamente um hino de todos os goianos e tocantinenses.
Sua carreira artística, além de longa, é bem diversificada passando de cartunista a compositor e de escultor a cantor. Há raízes familiares que influenciaram essa veia artística?
Por incrível que possa parecer, não. Minha família não possui tradições artísticas, ninguém tocava instrumentos ou cantava, todavia comecei a descobrir e gostar de música ouvindo rádio, ainda criança. Aliás, ainda hoje tenho uma paixão muito grande pelo rádio e o considero de extrema importância para os artistas. Além disso, o rádio é lúdico, em que pese atualmente haver internet e vários outros recursos midiáticos disponíveis. Naquela época, eu já me arriscava a cantar algumas canções, mas ao entrar na escola descobri que gostava mesmo era de desenhar.
Já no ginásio, comecei a fazer cartoons, expondo-os no mural da escola. Havia, de certa forma, um contexto político neles, o que me rendeu várias reprimendas, em razão do tom crítico. A música ficou meio que esquecida até a adolescência, quando, em um período de férias escolares, conheci um amigo carioca, por nome Quim, que me ensinou os primeiros acordes. Entusiasmada, minha mãe comprou o meu primeiro violão e iniciei essa viagem musical. O problema era que não poderia haver dedicação exclusiva. Eu tive que trabalhar desde muito cedo, como servente de pedreiro, ajudando meu pai, que era mestre de obra, na construção civil. Também fui pintor de parede, ajudante em fábrica de farinha, vendedor de jornais em sinaleiros, entre outros. Quando estava com aproximadamente 17 anos, fui atrás de jornais, visando divulgar meu trabalho como cartunista. No final da década de 70, na sede do Jornal Opção, na Avenida Goiás quase esquina com a rua 4, conheci o cartunista Jorge Braga, que colaborava com o tabloide semanário. O jornal contava com grandes profissionais, como o proprietário Herbert de Moraes Ribeiro, o José Luiz Bittencourt Filho, editor-chefe, se não me engano, além de outros jornalistas de renome, como Marco Antônio da Silva Lemos, por exemplo. Eles gostaram dos meus traços como cartunista, me incentivaram e apadrinhado pelo Jorge Braga, apresentei os desenhos também ao Batista Custódio, ainda na época do “Jornal 5 de Março”. Havia um suplemento de entretenimento nas edições desse jornal denominado “café de esquina”, dedicado a piadas, frases engraçadas, fotomontagens e cartoons. O Batista aprovou o trabalho e fui capa desse encarte, que na época era referência nessa área. Logo após, fui lançado como Pádua Cartunista e entrei, de vez, no mundo artístico. Em 1980, ganhei um concurso nacional de cartoon erótico, promovido pela Revista Homem, que era, logicamente, direcionada ao público masculino.
Foi nesta época que o instinto musical aflorou de uma vez por todas?
Sim, quando me firmei como cartunista e comecei a ganhar alguma uma grana, percebi que poderia me arriscar pela música, sem depender disso para sobreviver. Comecei a cantar num pequeno barzinho de propriedade de um libanês, no Bairro Feliz, que se chamava Mon Chateau. Arrisquei uns acordes, um repertório baseado em MPB e agradei o público. O dono do barzinho me fez um convite para tocar semanalmente e isso me entusiasmou muito. Fiquei por lá por oito meses, mesmo sem salário ou couvert, pois para mim era uma forma de adquirir autoconfiança. Depois, toquei em outros bares, como o Alcatraz, que ficava na 9ª Avenida, na Vila Nova. Lá eu acabei revezando no palco com o tocantinense Braguinha Barroso e com o Walter Mustafé. A partir daí iniciou-se a saga em bares noturnos de Goiânia: o Monjolo, na Praça do Cruzeiro; o Zero Bar, na Praça Tamandaré, cuja principal atração era o Fernando Perillo, que tocava Chico Buarque e Caetano Veloso. Já eu, arriscava essa coisa mais regional, nordestina, meio de mato mesmo (risos). Passado algum tempo, o Perillo acabou por sair, eu fiquei tocando por lá e iniciei, de uma vez por todas, minha carreira como cantor. O sucesso veio de vez, num boteco chamado Cavalhadas, na Avenida Portugal, cujo sócio era o meu grande amigo Jorge Braga. Em razão de estar localizado num bairro residencial, implantamos o projeto Seis e meia, que começava nesse horário e se estendia até as 22 horas. Isso me obrigava a ir tocar em outro bar a partir desse horário e o sucesso veio naturalmente, mesmo porque eu trabalhava na noite, de terça-feira a domingo. Me vi obrigado, em razão disso, a inserir a percussão. Aliado ao meu irmão caçula, Luiz Claudio, montamos a Banda Asa da Cobra, uma espécie de homenagem a minha vó, que dizia que Deus não dá asas a este réptil (risos).
Iniciamos esse projeto no bar Jotas, na Avenida República do Líbano, e também no Degrau 94. Foi um sucesso tremendo que nos levou a fazer turnês pelo interior de Goiás, após o Jornal “O Popular” fazer matéria de página e meia com o título: “Pádua, o furacão da noite”. Praticamente implantei o couvert artístico em Goiânia, que todos achavam que não ia dar certo, com medo de espantar a freguesia. Provei aos proprietários dos estabelecimentos que o público ia até o barzinho em razão do som que fazíamos, e não se oporia em pagar por isso, desde que houvesse qualidade. Tínhamos agendas definidas mensalmente em Itumbiara e Anápolis. Tocávamos MPB e sucessos em voga do momento, o que acabou por me levar a gravar um disco, que consolidou a carreira de vez. Em suma, é isso. Sou um artista que nasceu das noites goianas.
O outro lado artístico do Pádua, está momentaneamente recolhido?
Há várias coisas a serem feitas, cada qual ao seu tempo. Tenho num canto guardado alguns textos, músicas, desenhos, pinturas, etc. Esta última para mim é um divã. Fico absorto naquele mundo lúdico, relaxo, consigo viajar em pensamento. Mas este outro lado de artista plástico, desenhista, ilustrador é cheio de fases e depende muito da inspiração. Não sei quando será, contudo vou me aventurar – se tudo der certo – a escrever um livro sobre minha visão de mundo, relatos, enfim, minhas crenças como o candomblé, por exemplo, ao qual fui atraído, primeiramente, pelos sons dos atabaques. Penso que tal crença é a exaltação da personalidade, como bem definiu um antigo escritor francês. Atualmente, não sou tão praticante, mas fui iniciado num terreiro em Goiânia e tenho cá minhas convicções, e talvez um dia eu as exponha. Não sou disciplinado quanto à religião e não gosto muito de dogmas, e por isso, me afastei. Faço minhas orações na minha própria casa e não participo mais de rituais ou coisas do gênero. Serão, enfim, muitos temas a serem abordados (no livro).
Quando as pessoas falam em Pádua, todos se lembram do sucesso “Louca Magia”. Como intérprete não resta dúvida acerca do seu talento, contudo esse tino de compositor não é tão divulgado ou conhecido. Como surgiu essa inspiração?
Sem dúvida, sou muito mais cantador, intérprete, do que compositor. Entretanto, ouso compor desde adolescente, quando fiz um poema que depois transformei na música “Aprendiz de Feiticeiro”. Fiz também várias outras coisas que se perderam no tempo, porque não gravei e acabei esquecendo o arranjo ou mesmo a letra. O certo é que com o tempo me dei conta que diante tanta “abobrinha” que havia no mercado, ao invés de interpretá-las, eu poderia cantar as minhas próprias “abobrinhas”.
Me inspirei muito no regionalismo, nos ritmos dançantes do Nordeste e fui o primeiro cara, por exemplo, a tocar e cantar “Ai que saudade docê” em Goiânia. Muitos torceram o nariz, mas depois se acostumaram com o aquele jeito de tocar e cantar. Gostava muito de Zé Ramalho, Alceu Valença e do estilo deles e comecei fazer algo parecido, porém com minhas próprias características.
Em 1987, eu tinha uma parceria com a cantora Indiara – que fazia a voz feminina nas apresentações noturnas. Precisávamos de uma música que só ela interpretasse, mesmo porque eu precisava de uma folga durante o show. Estava em casa, aguardando o almoço, e comecei a divagar com coisas do tipo: “…esse negócio de cantar e ser artista é louco mesmo…”. Sentado na varanda, fiquei refletindo que o meu pensamento – através da música – poderia ir onde eu quisesse. Fiz primeiro o refrão: “…E te levar, voar comigo nas asas do som…”.
Fui dedilhando o violão e foi saindo. Ainda não estava pronta, mas no entusiasmo, liguei para a Indiara e contei a novidade. Ela disse que estava indo para minha casa, e só então compreendi que precisava terminar a letra para apresentar o esboço logo após almoço. Alguns riscos, rabiscos, arranjos, dedilhados e batidas depois, surgiu a música que me tornou conhecido nacionalmente e me deu muita alegria. Em que pese ter uma letra simples, sem conclusões geniais, além de não ser minha melhor construção em termos de harmonia e poesia, a música estourou na noite goiana antes mesmo de tocar nas rádios, mesmo porque nem sequer havíamos gravado em disco. Indiara interpretava num estilo ímpar e isto foi realmente mágico.

Em 2001 o sr. lançou o CD solo “Dança do Bicho”, música inspirada na cultura indígena e totalmente inovadora. Como foi essa experiência?
Eu sou um “cantador” de histórias. Faço referência aos lugares, tradições, histórias vivenciadas por mim ou que me foram noticiadas. Fui aprender a língua, após trocar algumas ideias com sertanistas que eu conhecia, que me indicaram alguns livros. Descobri um lindo poema carajá que havia sido registrado no livro “Tainarakã”, que me inspirou para compor a música “Flor do Ipê”. Passei aproximadamente três semanas na Ilha do Bananal, aqui no Tocantins, vivendo a cultura dos índios carajás. Conheci a dança do Idiassó, a história de Berohokã – que é o grande rio Araguaia – porque acreditam que a humanidade veio das águas, o deus Kananxuê, entre outras particularidades da cultura, que acabaram resultando na composição da música “Dança do Bicho”.
Porém, nunca me considerei um artista regional ou adotei esse rótulo, propriamente dito. É natural que o sujeito cante as coisas da sua aldeia, mas tudo depende muito do contexto e do que ele se propõe a fazer e cantar. Há inspirações poéticas, um jeito de viver e acreditar nas coisas da sua terra. É um estilo, eu respeito. Particularmente, não tenho essas convicções e não me apego a esses regionalismos exacerbados. Fui muito mais influenciado pelo estilo de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Louro do Pajeú do que pelos artistas do Sudeste ou Centro-oeste. Acho isso perfeitamente normal, mas sinceramente não gosto dessa rotulação, assim como também não considero a nova música sertaneja como eminentemente goiana, só porque alguns artistas de lá começaram a cantar esse estilo. Trata-se de baladas românticas, umas bregas outras nem tanto, mas na essência, música brasileira e não goiana, paulista ou mineira.
E quanto à canção “Pele”, um marco cultural que relatou, sob a ótica brasileira, o apartheid na África do Sul?
Havia um parente distante que morava em Pretória, na África do Sul, e me relatava muitas histórias sobre a segregação racial. Sou descendente de negros, meu avô foi escravo em Minas Gerais. Sempre fui um pesquisador da cultura africana e me interessei pelo tema. Fiz a composição em 1984 e a minha então namorada e hoje esposa, Claudia Mendonça, inscreveu a música no “Festival Comunicanção” de 1985, que se realizou no Ginásio Rio Vermelho. “Pele” era um misto de reggae e xote, e em que pese também ser uma espécie de protesto, foi totalmente diferente dos padrões temáticos e rítmicos que, costumeiramente, se apresentava em festivais. Lembro-me que no júri, por tradição, havia grandes nomes como o cantor Luiz Melodia, o famoso cartunista Nani, do antigo Pasquim. A música foi classificada para a final e venceu, por unanimidade, o festival. Com o dinheiro do prêmio, gravei um compacto, uma música de cada lado. Isso abriu as portas das rádios goianas que começaram a divulgar meu trabalho.
Mas há outras pérolas escondidas na gaveta?
Há projeto de fazer um disco autoral, chamado “Cantando Histórias”, umas oito ou dez músicas totalmente inéditas. Duas estão prontas: uma fala dessa loucura de cantar na noite e outra sobre o que eu vi e vivi na minha infância, em comunhão com a própria história do Córrego Botafogo, que caudalosamente passava no quintal da minha casa, no Setor Sul, em Goiânia. O refrão diz: “…Córrego do Botafogo, foi sepultado vivo numa vala de cimento, sobrevivendo da sujeira da cidade, filete d’água desaguando num lamento…”. Esse mundo mágico que as crianças vivem, o lúdico, a visão simples das coisas que também quero retratar de forma singela, musicalmente falando.
E quanto a esse projeto com o Tom Chris, em que vocês vieram a Palmas para apresentação no Teatro do Sesc?
É um pouco de todas essas histórias. Uma roupagem interpretativa, ao nosso estilo, de grandes artistas como Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Zeca Baleiro, Geraldo Espíndola, Fagner, Djavan, Guilherme Arantes, Seu Jorge, músicas de minha autoria e também em parceria com o Tom. Trata-se de um show eclético, animado, que agrada todos os públicos.
Viemos aqui no final do ano passado, já mesclamos algumas coisas do “Música aos vivos” – que faz uma referência aos shows “ao vivo” e também às pessoas vivas, em todos os sentidos e acepção do termo, atentos, espertos, interessados. Agora estamos lançando o DVD “Por outros cantos”, que é um projeto apoiado pelo Fundo de Cultura do Estado de Goiás, que inclusive, é diferente da Lei do Incentivo Cultural, que retribui com incentivos ou renúncias fiscais às empresas que apoiam. Fizemos também uma parceria com o Sesc para a utilização dos teatros, que geralmente são muito bem estruturados. A parceria com Tom é uma amizade bacana que surgiu lá em casa, enquanto trocávamos ideias e acabávamos cantando algumas canções, à beira de um fogão à lenha. Sempre recebi amigos em casa às sextas-feiras e apelidei o encontro de “sexta básica”. Ele levava o teclado e ficávamos ali tocando, alinhavando novos arranjos e roupagens para músicas conhecidas de artistas como Roberto Carlos, Benito de Paula e até do Zezé di Camargo. Começou, portanto, com uma brincadeira de amigos e chegamos a conclusão que pelo nosso timbre e tom de voz, poderíamos encaixar uma boa parceria. Logo veio o projeto no “Café Nice”, algumas apresentações pelo interior de Goiás e o negócio fluiu, transformando-se nesse grande projeto que já levamos a Brasília, trouxemos a Palmas e, em 2017, levaremos a São Paulo e a Vitória, no Espírito Santo.
Por falar apresentações em São Paulo, como é o seu relacionamento com o Rolando Boldrin, um precursor e entusiasta na divulgação de artistas que não aparecem na grande mídia, através do “Programa Sr. Brasil”, na TV Cultura?
O Boldrin é um guerreiro, um cara muito generoso, simples, que cuida das coisas dele pessoalmente. É um sujeito que segura essa bandeira do trabalho alternativo que tira, literalmente, o Brasil da gaveta. São milhões de artistas pelos rincões brasileiros, que estão esquecidos. O Boldrin os prestigia e os apresenta ao grande público. É um trabalho que tem meu respeito.