José Roque: “Polícia dentro da escola é uma coisa deprimente”
06 agosto 2023 às 00h01
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O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Estado do Tocantins (Sintet), José Roque Rodrigues Santiago, afirma que o sindicalismo brasileiro combate o modelo de escola cívico-militar, por entender que é um modelo prejudicial à formação integral do jovem, se baseando no excesso de disciplina e restrição ao livre pensar. “Esse modelo de escola é prejudicial às nossas crianças, nossos jovens, porque eles não vão ter esse direito de pensar”, aponta o dirigente.
José Roque diz que a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de suspender a reforma do ensino médio atende diretamente aos reclames dos professores, de pais de alunos e de líderes estudantis que têm procurado o Sintet para pedir apoio para tentar barrar o retrocesso que a reforma traz. “Como vamos aprender a cuidar do planeta, do clima, se nós não tivermos conhecimento adequado? O que já era muito pouco, agora é zero. No geral, retiram disciplinas indispensáveis e colocam no lugar outras que não têm o mesmo peso na formação do aluno”, questiona o dirigente.
O líder sindical aponta que os profissionais da educação veem a escola de tempo integral como uma alternativa que pode contribuir para resolver o impasse da reforma do ensino médio que, segundo ele, virou uma ameaça. “Uma alternativa interessante é esse modelo da escola de tempo integral. Porque, em um período, o aluno vai ter todas as disciplinas da grade curricular e no outro vai ter outras atividades que ajudam no desenvolvimento de suas habilidades, como artes, esportes e leituras”, avalia o dirigente, cobrando mais investimento no modelo que exige mais da escola e de seus profissionais. “O financiamento ainda é precário. Aí não é possível manter a escola com o elenco de atividades que deveria oferecer”, aponta.
José Roque Rodrigues Santiago, tocantinense de Cristalândia, é professor aposentado da rede estadual de ensino. É graduado em História e pós-graduado em Planejamento Educacional. Iniciou a militância política como líder comunitário no antigo norte de Goiás. A militância sindical se deu ainda como membro do Centro de Professores de Goiás (CPG). É membro fundador do Sindicato dos Trabalhadores da Educação no Tocantins (Sintet) e também dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Estado. Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, José Roque fala dos desafios da educação, questiona a reforma do ensino médio e aponta que o projeto da escola de tempo integral precisa de forte investimento, para não correr o risco de voltar a ser escola convencional. A entrevista contou com a participação especial do jornalista Alvaro Vallim.
Como os professores avaliam a extinção do programa de escolas cívico-militar, conforme decreto do presidente Lula? Qual é o problema desse modelo de escola?
É um modelo grave à estrutura social. Ele vem com aquela onda de que vai disciplinar, de que vai fazer o melhor. Qualquer gestor público, se tiver os recursos necessários na escola, se tiver os trabalhadores e trabalhadoras valorizados, faz a mesma gestão que temos em uma escola cívico-militar. Esse modelo traz o que para nós? Um regime de manipulação das pessoas, dos jovens. O jovem não vai ter acesso a leitura, filosofia, sociologia, história e outras áreas da educação capaz de proporcionar um jovem intelectual, um jovem pensante. Ele vai ser uma pessoa sempre alienada. Está sendo formado para ser alienado. Ele não vai ter as condições de abrir o leque do conhecimento.
Ele não vai ter acesso, por exemplo, à cultura. Ele não vai ver a cultura como meio de fazer as pessoas crescerem na vida, pensar, se defender e defender os demais. Ele vai ser uma pessoa sempre a dizer que o militarismo é o único caminho. E na verdade não é. Esse modelo de escola é prejudicial às nossas crianças, aos nossos jovens, porque eles não vão ter esse direito de livre pensar. Vamos dizer uma palavra aqui que eu gosto muito: filosofar. Discutir conhecimento, discutir a vida, discutir vida em comunidade. O jovem dessa escola vai ser aquele alienado que não sabe se posicionar. Esse é o modelo que o movimento sindical no Brasil combate.
Aqui no Tocantins nós havemos de fazer o combate, como sempre fizemos, das escolas cívico-militares, das escolas militares, porque esse modelo não oferece uma modalidade de educação capaz de proporcionar a um jovem vislumbrante. Por aí nós vamos perder muitos atletas, artistas e muitas pessoas ligadas à área da cultura, sobretudo da cultura plástica.
É um modelo que serve ao desejo político de manipular a consciência da juventude
Qual a origem dessa escola onde os militares respondem pela gestão e pela disciplina, de onde vem esse modelo?
Esse modelo está completando cem anos, vem da Itália e foi implantado na ditadura de [Benito] Mussolini. Serviu de base para o nazismo de [Adolf] Hitler, na Alemanha. Então, é um modelo que serve ao desejo político de manipular a consciência da juventude. Nós vemos alguns parlamentares falarem que professor manipula aluno. Não! O modelo de escola que manipula o aluno é o cívico-militar. O que significa uma sociedade em que todo mundo é incentivado a andar armado? Nós temos de andar é com a bandeira do Divino [Espírito Santo], que é a bandeira da paz. Nós precisamos de paz neste País e, com esses modelos autoritários [fascismo e nazismo], estamos provocando um ambiente de guerra. Quando se formam pessoas para esse regime, formam-se pessoas dispostas a matar, como dizia o ex-presidente [Jair Bolsonaro]. No modelo cívico-militar, estamos influenciando nossos jovens no futuro a serem pessoas assim. Porque vai ser isso que eles terão aprendido na escola. Eles não aprenderão cultura, civilidade, aprenderão outra coisa, e isso versa sobre seu psicológico. Então precisamos combater esse modelo, e é isso que o movimento sindical está fazendo.
Nas escolas cívico-militares tem uma distinção salarial importante entre os professores e os administradores, que são pessoas que estão ali para impor a disciplina. Qual é a diferença salarial aqui no Tocantins?
O governo do Tocantins, juntamente com a Seduc [Secretaria da Educação], mesmo com a extinção do modelo em nível nacional, infelizmente continua com o propósito de sua manutenção. Aí, a gente vê uma situação bastante preocupante. Esse modelo está colocando os professores como cidadãos de segunda classe. Os militares estão na primeira classe porque “mantêm a ordem”, a “disciplina”, o que não é muito verdade. A farda, por si só, dentro da escola não garante disciplina. Pode trazer alguma coisa voltada ao militarismo, mas não traz conhecimento para dentro da escola. Precisamos que o governo enxergue o professor como o profissional habilitado a cuidar da educação. Nessa modalidade, ele está nos colocando, trabalhadores da educação, professores e professoras, como cidadãos de segunda classe em todos os sentidos – na gestão e também na questão salarial. Precisamos de valorização. Salário digno e decente, melhores condições de trabalho. Quanto aos militares, nós não temos nada contra, mas gostaríamos que eles estivessem cumprindo a missão para a qual foram formados: cuidar da segurança da sociedade, combatendo o crime, esse tipo de trabalho que professor não faz. Polícia dentro da escola é algo deprimente. Temos profissionais com formação e competência para gerir a educação.
Houve vários episódios de alunos e ex-alunos atacando escolas com arma. Como a categoria vê esse tipo de manifestação?
Para isso, sim, nós precisamos da inteligência da polícia, com vistas a identificar possíveis agressores. Muitas vezes, os professores não denunciam por falta de segurança. Mesmo com enorme aparato, temos visto que eles [policiais] não evitam que os ataques aconteçam.
Não é uma questão que possa ser resolvida com polícia na escola, pois não temos polícia para todas as escolas
Pelo que se observa, parece que existe uma rede neonazista por trás destas histórias.
Isso aflorou ou se tornou mais próximo, presente em nossa vida, em função do excessivo incentivo ao uso das armas no governo passado. O governo influenciou os jovens nesse aspecto do uso da força. Os jovens já têm uma tendência de imitar o líder. Quando o líder incentiva uma tomada de atitude, isso fica mais forte, pois, em lugar de repressão, vem o apoio. Quando um jovem ataca uma escola – e estamos vendo que isso não é só no Brasil, é no mundo inteiro, e graças a Deus ainda não tivemos nenhum incidente grave aqui no Tocantins –, quase sempre está sendo inspirado por alguém. Os líderes influenciam as crianças e os jovens e, a partir dessa influência, eles ganham força para partir para o ataque. E precisa fazer o ataque para aparecer como herói, um sujeito de coragem, que confronta. Isso nós precisamos combater na forma da lei. O governo está encaminhando projeto no sentido de estabelecer punições e controle sobre essa situação. Mas isso não é uma questão que possa ser resolvida com política dentro da escola, pois não temos política para todas as escolas.
A reforma do ensino médio como ela foi encaminhada representa retrocesso na formação dos jovens
Como os professores avaliam a reforma do ensino médio, proposta no governo de Michel Temer (MDB), que passou no Congresso e agora discute-se não implantá-la? O que essa reforma traz de mudanças?
Traz um retrocesso muito grande. A reforma do ensino médio como ela foi encaminhada significa retrocesso. Retira a obrigatoriedade de várias matérias da área de humanas e até mesmo da área de biologia e das exatas. Por quê? Porque reduz o número de aulas de sociologia, de história, de filosofia. Muitas séries não vão mais ter essas disciplinas. É uma redução a um número mínimo que não é suficiente para um ensino que possa avançar. Do outro lado, a biologia também sofre redução. Como vamos aprender a cuidar do planeta, do clima se nós não tivermos conhecimento adequado? O que já era muito pouco, agora é zero. Sem deixar de citar também as exatas, já que, no lugar dessas disciplinas, estão vindo outras que o professor nem conhece, as trilhas e projeto de vida. No geral, retiram disciplinas indispensáveis e colocam no lugar outras que não têm o mesmo peso na formação do aluno. O Sintet trabalha para que essa reforma seja revogada, porque não contribui para a formação do jovem.
Seria o caso de essas disciplinas serem oferecidas como optativas?
Sim. Mas o que era para ser optativa está virando obrigatória e tomando o lugar de matérias indispensáveis para formação integral do aluno. Nós precisamos de reforma no ensino médio, mas não nesse formato que empobrece a grade curricular e pode piorar a qualidade do ensino.
Os líderes estudantis nos procuraram, buscando apoio no sentido de defender a qualidade do ensino e evitar retrocesso
Quais as preocupações que chegaram ao Sintet, vindas de pais e líderes estudantis, sobre a reforma?
O Sintet recebeu manifestações de várias cidades onde os grêmios estudantis têm uma atuação mais atenta. Os líderes estudantis nos procuraram buscando apoio no sentido de defender a qualidade do ensino e evitar retrocesso. Esse é um ataque ao direito do aluno de aprender. Concordamos que a reforma do ensino médio é prejudicial à educação e que os alunos precisam se mobilizar para defender os seus direitos. Que os pais observem as disciplinas que os seus filhos estão tendo e a quantidade de matérias que estão sendo ofertadas por disciplinas em que consideramos que houve uma redução significativa.
Na hora de concorrer ao vestibular, vão enfrentar alunos de escola particular que não foram privados de cursar essas disciplinas
Quem não tem condições de pagar escola particular está tendo menos ensino que os que estão estudando em estabelecimentos privados?
O que já era ruim no modelo anterior do ensino médio tem uma tendência de piorar bastante. Na escola pública, os alunos não vão mais ter acesso a essas disciplinas que mencionamos e, na hora de concorrer ao vestibular e aos concursos, ao Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], vão enfrentar alunos de escola particular que não foram privados de cursar essas disciplinas fundamentais na formação. Na prática, nós estamos desqualificando o aluno de escola pública. Vamos poder comprovar isso nas próximas edições do Enem.
Como anda o debate desse tema no Ministério da Educação, qual deve ser a decisão?
O presidente Lula pediu para suspender a reforma. E o processo segue em análise. Nós precisamos achar o caminho do debate em torno de um projeto de reforma que traga melhoria para o ensino, que traga desenvolvimento, que traga capacidade de evolução no que se refere a ensino e aprendizagem. Que o professor tenha plenas condições de ministrar os conhecimentos que sua formação lhe permite e que o aluno tenha condições de aprender. É o modelo que se busca agora. É a alternativa para esse impasse. Hoje, nós temos um pensamento de combater o que está aí e buscar uma alternativa plausível e que ofereça ganhos para todos, sobretudo para os alunos.
Vemos o ensino de tempo integral como uma saída, desde que atenda as condições de funcionamento
Na esteira da reforma do ensino médio surge o projeto da escola de tempo integral. Como os professores receberam esse anúncio do governo?
Olha, uma alternativa interessante neste cenário é a escola de tempo integral. Porque em um período o aluno vai ter todas as disciplinas da grade curricular e no segundo período var ter outras atividades que ajudam no desenvolvimento de suas habilidades, como artes, esportes, leituras. O que precisa na escola de tempo integral? Financiamento. O financiamento ainda é precário. Não é possível manter a escola com o elenco de atividades que deveria oferecer. Por exemplo, aulas de músicas que precisam talvez de instrumentos musicais, de professores qualificados, são situações que precisa de mais recursos para implantar. A modalidade de ensino de tempo integral é uma saída, desde que atenda às condições de funcionamento, ofertando todas oportunidades de formação integral ao aluno. Esse modelo de escola se faz com valorização do profissional da educação, com salário digno para o professor. A escola de tempo integral consome muito os profissionais. Não é uma escola convencional, demanda mais dos profissionais. Então, é preciso ter uma carga horária diferenciada e com as condições adequadas para oferecer o melhor para o aluno, além de o professor ter uma remuneração correspondente, decente.
Somos contra a tal da meritocracia, também. Por isso estamos dizendo, jornada e salário compatíveis com a realidade do profissional que tem a responsabilidade de cuidar da formação dos alunos.
O governo precisa formular políticas para a educação com foco na qualidade e valorização dos profissionais
Grande parte dos alunos hoje tem acesso à internet, mas outra parte não tem. Como os profissionais da educação avaliam as dificuldades do uso da tecnologia na educação, que alguns chamam de desinteresse pela escola? Como superar esse desafio?
É preciso ter uma política de modernização da educação no que cabe ao governo sua execução. No mundo que em vivemos, a tecnologia determina os rumos a seguir. O governo precisa proporcionar o acesso à tecnologia e inserir a educação neste processo irreversível do avanço da tecnologia. Precisa dotar as escolas de laboratórios e internet de qualidade, na velocidade adequada ao público escolar. Os alunos precisam ter acesso ao mundo virtual, bem como os professores. Tem hora que o aluno está na frente. Nós temos, muitas vezes, dificuldade de acompanhar os nossos alunos porque eles estão à frente em termos de uso de tecnologia. À frente do professor ou de sua própria turma. O professor precisa caminhar com todos os que estão ali na sala de aula, mas às vezes tem um que está lá na ponta. Nós temos de ter essa capacidade de fazer essa leitura e oferecer condições para que todos tenham as mesmas oportunidades. O governo precisar formular políticas para a educação com foco na qualidade e valorização dos profissionais. Nós estamos com uma escola que não tem atrativo. Os alunos antes iam para a escola atraídos pelo desejo de aprender em seu livro. Talvez daqui a alguns anos o livro esteja obsoleto e o governo vai ter de descobrir um substituto, que pode ser um computador, um tablet, para atrair o aluno a ir para a escola. Aluno não quer mais ir para a escola para folhear livros.