Festival Gastronômico de Taquaruçu e os pecados da gula política
17 setembro 2023 às 00h01
COMPARTILHAR
O 17º Festival Gastronômico de Taquaruçu (FGT), conforme balanço apresentado pela Prefeitura de Palmas, bateu novos recorde de público e de negócios e se consolida de vez como o maior festival do gênero da região Norte do país. Os números são grandiosos. Mas de 150 mil visitantes subiram a serra para prestigiar o evento nos cinco dias de programação e foram responsáveis por movimentar mais de R$ 5 milhões em negócios. Os números refletem a grandiosidade e o sucesso do evento que tem acumulado críticas por excessos que os organizadores não tem conseguido contornar.
Há muito que o evento vem demonstrando a necessidade de readequação à capacidade do local e principalmente que esteja aliado a propósitos mais elevados que apenas juntar gente. Muita gente. Neste caso, o FGT cumpre uma responsabilidade que não é sua. O festival não tem obrigação nenhuma de ser o maior evento de Palmas, como é hoje. Bastaria que fosse um evento indutor do turismo, já estaria bom demais. E para ser indutor do turismo não precisa necessariamente ser tão grande. Precisa ter sim, grande alcance, não um grande público, por um curto espaço de tempo.
Seguindo a avaliação positiva do poder público, os participantes contabilizam boas vendas. Dizem que cobriram os investimentos. Diferente de outras edições em que se registrou prejuízos. Alguns reconhecem que tiveram lucros. Um ou outro, reclama que não recebeu o público esperado, e aponta a localização da tenda, mais afastada do grande fluxo do público, pela pouca procura. A maioria trabalhou durante todo o festival administrando filas. A grande procura chegou a gerar reclamação. Para se apreciar os pratos mais procurados gastava-se até duas horas.
Os organizadores não costumam levar em conta esse tipo de reclamação, que por outro lado, revela também o sucesso do evento como feira gastronômica em que alguns pratos despertam tanta atenção que provocam filas. A Prefeitura chegou anunciar a venda virtual dos pratos para facilitar o fluxo de atendimento, mas não conseguiu entregar o serviço. Para a próxima edição não pode faltar.
Se filas fazem parte da natureza do evento, o atendimento não pode demorar muito, sob o risco de justificar a ideia um pouco exagerada de que não se come no festival. No FGT se come bem, a preços acessíveis. Os pratos mais procurados sim, tem fila, mas outros não. Além de tudo é bem tranquilo transitar no circuito gastronômico e escolher os que não tem fila. Tem pratos que não atraem filas e são tão bons quanto os que formam filas. As filas aumentam nos dias de atrações musicais de maior apelo popular.
Distrito turístico
O circuito gastronômico acontece no pequeno distrito de Taquaruçu, encravado no alto da Serra do Carmo, com um clima ameno, rodeado de atrativos naturais, cachoeiras, corredeiras, trilhas, mirantes, sítios arqueológicos, habitado por uma gente simples e acolhedora que preserva a gastronomia tradicional com os seus elementos de afetos e memória. Uma vila de fato muito atraente, com vocação natural para o turismo, que não tem sido compreendida pelo festival.
Taquaruçu, que deixou de ser município para se tornar distrito de Palmas, num processo de anexação de território e empréstimo da sua incipiente estrutura administrativa para permitir a transferência da Capital para Palmas, na época, apenas um canteiro de obras, é um distrito que guarda um pouco a história de Palmas. Distante 40 quilômetros do Plano Diretor. Não poderia haver lugar melhor para sediar um evento desta natureza.
Estrutura impecável
É bom que se diga que o evento conta com uma infraestrutura impecável. Ocupa toda a Praça Vereador Tarcísio Machado no Centro do distrito, com uma decoração de bom gosto que mistura beleza e conforto. Conta com palco bem montado, rodeado de tendas onde são servidos os pratos que concorrem ao festival. Conta ainda com a Cozinha Show, que atrai chefs renomados e gente não tão conhecida, numa troca de experiências e aprendizados. Tem inclusive um dia especial para as crianças mostrar seus talentos.
A estrutura montada especialmente para comportar o evento, conta ainda com uma bateria de banheiros químicos, serviços de segurança e de limpeza que atuam durante a realização do evento. Indiscutivelmente, o FGT é um grande evento. Bem organizado, em local apropriado e que atrai uma multidão, sobretudo famílias. Já virou tradição.
Mas tem problemas pontuais provocados por excessos que poderiam ser evitados se a Prefeitura de Palmas quisesse. O problema é que os organizadores não têm conseguido conter o impulso político de realizar um evento cada vez maior. Para justificar gastos, talvez, e também para satisfazer a vaidade política de ver a massa reunida em torno de um produto gerido pelo poder público.
Crítica ao grande formato
Pesquisas de opinião pública realizadas antes, durante e depois do Festival apontam que a comunidade local tem certa resistência com o evento. Não sem razão. A pequena vila de pouco mais de 2 mil habitantes fica completamente entupida de veículos que tomam todos os espaços possíveis: garagens, quintais, lotes baldios (que são poucos), calçadas e vias púbicas. Os moradores preferem deixar o distrito no período do festival e aproveitam para ganhar algum dinheiro, locando suas casas para prestadores de serviço que atendem ao evento.
O trade turístico de Taquaruçu tem insistido em alertar os organizadores que o modelo do festival como tem sido realizado é insustentável. Consome um grande volume de recursos, causa um grande impacto ambiental para ser apenas um grande evento público. Os empreendedores dizem que é um Festival Gastronômico em Taquaruçu e não de Taquaruçu. Poderia e deveria ser um evento indutor do turismo, mas não é. Pouco ou quase nada contribui com o desenvolvimento do turismo.
“Eu sinto que o festival, para dialogar mais e servir mais ao turismo, tem que fazer com que um determinado empreendimento seja promovido. Uma marca seja promovida. E essa marca não tem melhor do que os restaurantes. Tanto daqui como de Palmas”, observa o empreendedor Wetemberg Nunes, que integra a governança do polo turístico de Taquaruçu.
Nunes aponta uma incoerência no formato do festival que premia pratos originais elaborados aproveitando produtos da culinária regional e depois do festival esses pratos não são encontrados em lugar nenhum. Não há exigência de que os pratos apresentados no festival tenham alguma vinculação com empreendimentos que atuem na área de alimentação em Palmas.
Wetemberg ressalta que dos 41 pratos selecionados para o festival, apenas dois eram empreendedores de Taquaruçu, na área do turismo. “Eu acho que esse modelo voltado para a gourmetização, precisa ser repensado. É um esforço muito grande para criar pratos, preparar, buscar produtos, criar uma receita, e não ter nenhuma repercussão pós-evento. Isso aí nos incomoda muito”, enfatiza Wetemberg.
O artesão Vanderlei Batista, que integra o trade turístico, reconhece que o festival avançou em termos de organização. Ele acompanha o festival desde a primeira edição e avalia que a excessiva gourmetização da comida tem afastado a comunidade local. Vanderlei observa que a comunidade de Taquaruçu é bastante dividida em relação ao festival.
É um evento, que segundo Vanderlei, tomou uma proporção enorme. “Moro aqui a vida toda e pude acompanhar essa evolução. A gente vê a sofisticação dos pratos, é bacana ver o evento se tornar referência no Brasil e no mundo. Mas vemos também que o festival tem coisas negativas. O impacto ambiental é tremendo, acho que falta cuidado com o lixo. Como o festival tomou uma grande proporção, é preciso tomar alguns cuidados com a cidade”, recomenda.
Gourmetização tira espao de culinária afetiva
Vanderlei avalia que em função da gourmetização demasiada dos pratos, a comunidade local fica um pouco receosa de apresentar a sua gastronomia que é uma culinária tradicional. “A comida que a minha avó fazia, esse tipo de comida já não é mais selecionada para participar do Festival Gastronômico, tendo em vista que o evento se tornou uma coisa mais gourmet, com chefs renomados. Quem faz aquela comida afetiva, na maioria das vezes, fica fora. Poderia estar gerando renda dentro da comunidade, já que o dinheiro poderia ficar aqui, movimentando a economia e isso não fica. Então, o aspecto negativo é este. É preciso ser repensada essa maneira de distribuição das tendas de alimentação”, defende o empreendedor.
Os empreendedores de turismo não são contra o evento. Pelo contrário, reconhecem que o evento tem muito a contribuir com o distrito, movimenta a economia local e pressiona o poder público a cuidar da manutenção de alguns serviços, como limpeza, transporte, saúde, malha viária, além do embelezamento do local que faz muito bem aos moradores e que não haveria esse cuidado se não fosse o festival.
Kadu Oliviê, do Circus os Kako, participa do festival desde a 6ª edição. Primeiro como morador local, depois como artista e agora como empreendedor. Ele avalia que o evento tem crescido muito e que é necessário pensar em novas estratégias de recepção do público. “Esse ano foi recorde de público, porém tivemos alguns contratempos com questões pontuais, sanitários, fechamento de algumas ruas.. É preciso pensar numa forma de comportar o evento de forma mais agradável”, recomenda o artista que afirma que o evento está muito bonito.
Kadu defende que festival precisa contar com um maior número de concorrentes de Taquaruçu. “Estamos com pouca concorrência, a maioria dos pratos é de fora”, observa, o empreendedor elogia a qualidades dos shows, que segundo ele, foram muitos legais e agradaram muito o público. Kadu chama atenção também para o serviço de limpeza que não funcionou bem e relata que faltou lixeiras nos lugares de maior concentração de público. “Após os shows se observou muito lixo espalhado. Por mais que tenha tido a ideia de coleta seletiva, que está funcionando, foi mal planejada por conta da dimensão do evento”, comenta.
Em resumo, o trade turístico lamenta o desperdício. Um evento que poderia ser um forte indutor do turismo é apenas um grande evento, o que é pouco para a cidade ainda em formação que pode vir a ser um destinto turístico bastante visitado por ser base para o Jalapão. No modelo atual, ajuda a movimentar a economia regional, mas não propriamente a economia turística. Fora as pousadas, os outros atrativos naturais que integram o polo turístico de Taquaruçu não são beneficiados com o movimento. Há, entre alguns empreendedores, o temor de que a imagem negativa do festival, por conta das críticas costumazes, possa contaminar a imagem do polo turístico.
Com 17 anos de experiência, o Festival Gastronômico de Taquaruçu já conquistou o seu espaço no calendário palmense. Virou tradição. É um evento muito esperado e que desperta a imaginação e o desejo dos palmenses. O distrito de Taquaruçu entra como um convite irresistível para uma Palmas que muitos desconhecem, de clima ameno.
É preciso repensar a data original. O evento era realizado em julho, período de frio no distrito. Um privilégio para Palmas, considerada a capital mais quente do país. Ao que se sabe, o festival mudou de data para não concorrer com o Arraiá da Capital, outro grande evento promovido pelo poder público e que surgiu depois.
Está na hora dos organizadores priorizarem a gastronomia, a estrela do festival, e não atrações nacionais que não combinam com o que se espera de um festival onde se vai para apreciar pratos. O evento atrai família, mas o horário de funcionamento, às vezes, não oferece conforto para crianças e idosos.