Cícero Belém: “O teatro nos colocou em um lugar no mundo”

02 julho 2023 às 00h00

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O ator, diretor e professor de teatro Cícero Belém vive o desafio imediato e grandioso de instalar um órgão novo que pode significar muito para o desenvolvimento da cultura regional: o Escritório de Representação do Ministério da Cultura (MinC) no Tocantins, que chega com a missão ousada de sacudir a crise da ausência de políticas públicas para o setor e fazer as ações do MinC alcançarem todos os 139 municípios do Estado. Cícero executa a missão como coordenador do escritório, recém-nomeado.
O escritório estadual do ministério faz parte do esforço de reestruturação do setor cultural brasileiro, depois de um processo sistemático de desmantelamento das políticas de cultura que começou, segundo Cícero Belém, “com a destruição do próprio ministério. Depois, a perseguição aos artistas, aos intelectuais, às pessoas que pensam a cultura, às pessoas que têm uma visão mais profunda e mais crítica de tudo que a gente está vivendo e do próprio País”, garante.
O ator lembra que, no caso do Tocantins, o desmonte na área cultural começou ainda em 2011, quando o órgão estadual da cultura foi extinto. Daí pra frente a crise só foi se agravando. “Eu digo, que nós temos sofrido profundamente já bem antes de todo esse processo de desconstrução da política nacional que vivemos nos últimos seis anos. Isso se acentuou mais ainda com a pandemia. A pandemia tirou o chão de todos aqueles que, em certa medida, resistiam a todo esse processo e continuavam os seus afazeres”, explica.
Cícero Belém é tocantinense de Porto Nacional, ator, produtor, diretor e professor de Teatro no Centro de Ensino e Treinamento Artístico (Ceta) da Fundação Cultural de Palmas, e atualmente se especializando em Gestão Cultural: Cultura, Desenvolvimento e Mercado. Possui sólida carreira no teatro, reconhecida no Tocantins e no Brasil. E foi fundador da Chama Viva Cia. de Teatro do Tocantins, uma das mais importantes companhias de teatro do Estado.
No cinema atuou em Deus é Brasileiro, do cineasta Cacá Diegues; O Barulho da Noite, da cineasta tocantinense Eva Pereira, e foi produtor de elenco e figuração tocantinense da produção do filme nacional O Pastor e o Guerrilheiro, de Nilson Rodrigues e José Eduardo Belmonte. No teatro, foi dirigido por diretores brasileiros do porte de Cristina Pereira e Rafael Ponzi,na Casa da Gávea (RJ); Antônio Guedes,do Teatro do Pequeno Gesto (RJ); além de Marcelo Souza(CE) e Humberto Pedrancini(DF). Fez participação na novela O Outro Lado do Paraíso, da Rede Globo, e na série O Escolhido,da Netflix.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Cicero Belém relembra um pouco da sua trajetória nas artes, que começou no antigo no norte de Goiás, nos anos 80, em um momento de efervescência cultural e forte debate político, pela redemocratização do País e pela criação do Estado do Tocantins. O ator fala ainda do desafio de representar o Ministério da Cultura no Estado e revela que tem esperança de ver o Brasil novamente celebrar a sua diversidade cultural.
Como é desafio de assumir a representação do Ministério da Cultura, um órgão novo que chega agora ao Tocantins. Já tem uma ideia de como ele vai atuar, qual seu papel?
Já temos uma ideia clara de qual é o seu papel e do que temos que desempenhar aqui no Estado. É um projeto que faz parte da reestruturação do Ministério da Cultura e a gente vem participando desse processo desde o período que antecedeu a eleição do presidente Lula (PT), da discussão de um projeto de política cultural para o Brasil que pudesse responder esse tempo de pós-verdade em que a gente conviveu com tantas mazelas. Primeiro, com a destruição do próprio ministério. Depois, a perseguição aos artistas, aos intelectuais, às pessoas que pensam a cultura, às pessoas que têm uma visão mais profunda e mais crítica de tudo que a gente está vivendo e do próprio País. Então, esse projeto de interiorização das ações do Ministério pelo Brasil profundo nós fizemos parte desta construção e do debate que vem acontecendo ao longo desses anos, dos últimos seis anos, do pós-golpe que derrubou a presidenta Dilma [Rousseff). Não é por acaso que o Ministério ressurge, não é por acaso que a ministra Margareth Meneses está implantando escritórios em todos os Estados.

Lula disse muitas vezes que as ações da cultura precisavam chegar aos 5.574 municípios
Nosso desafio no primeiro momento é o de instalar esse órgão. A gente está surgindo do nada. Não existia nenhum espaço do Ministério da Cultura nos Estados. Temos que estruturar, conversar com os servidores federais que estão vindo inicialmente para compor o quadro. Esse é o primeiro desafio. O segundo, é que apenas com a nomeação nós já temos que entrar de cara nesse processo da Lei Paulo Gustavo, que exige uma integração bem articulada. O presidente Lula disse isso muitas vezes, que as ações da cultura precisavam chegar aos 5.574 municípios brasileiros. Ele criaria os comitês de cultura, e regionalizaria as ações dos ministérios. Então vem os escritórios, vem os comitês, e a Lei Paulo Gustavo que precisa chegar aos 139 municípios tocantinenses. Essa é uma missão imediata na qual estamos mergulhados de cabeça.
Naquele período também a gente estava vivendo o momento de redemocratização do País
O sr. não chega por acaso nessa nova função, é um dos artistas que ajudaram a organizar a cena artística tocantinense. Em seu caso, especialmente a cena teatral com o histórico grupo Chama Viva, que, me parece, foi inspirado no projeto Timbá de Teatro, de Gurupi, e na Comsaúde, de Porto Nacional. O que esses movimentos significaram para a cultura do Norte de Goiás, hoje Tocantins?
Comecei a fazer teatro em 1985. Eu era adolescente. Estava tendo a oportunidade de ter o meu primeiro emprego, no Banco do Estado de Goiás (BEG), em Porto Nacional e ao mesmo tempo que comecei a trabalhar me juntei a outros jovens e começamos a colocar em prática a ideia do Chama Viva, que era um grupo que nascia dentro da Igreja Católica. Encenou a Via Sacra, em Porto Nacional, pela primeira vez em 1985. Esse grupo, além da sustentação dentro do grupo paroquial, foi idealizado por José Iramar da Silva, que era um maranhense que trabalhava na Comsaúde. A Comsaúde para quem não conhece, é a comunidade de saúde, desenvolvimento e educação que funciona há quase 60 anos, foi uma das primeiras ONGs a se instalar no norte de Goiás e que luta pela qualidade de vida com os movimentos sociais, os sem terra, com as comunidades dos bairros carentes de Porto Nacional, levando assistência à saúde, conscientização e educação. O tempo todo eles trabalham a cultura. O José Iramar tinha a função de cuidar da cultura e a gente nasce nesse lugar, enquanto Chama Viva e enquanto pessoa que esteve ali participando de muito debate, de muita escuta. Naquele período a gente também estava vivendo um momento de redemocratização do País. E nesse momento vem o movimento Timbá, de teatro que a Comsaúde, através do grupo Renascimento, fazia parte. O movimento teatral ganhava força durante a Semana Cultural de Gurupi, onde nasceu o primeiro Circuito Timbá de Teatro, em 1985; depois virou Projeto Timbá em 1986. A gente movimentou a cena teatral no norte de Goiás, porque um dos focos daquele movimento era preparar o teatro porque a gente sabia que o Tocantins era uma realidade irrefutável.
Veja, a minha formação social, formação cidadã e artística vem desses dois pilares. Comsaúde e Movimento Timbá de Teatro, num momento muito forte de redemocratização do País e de debate pela criação do Estado do Tocantins. Não tinha como eu não ser um ser politizado, que me coloco na arte, não a arte pela arte, mas a arte como sentido de vida e de transformação das pessoas.

Eu tenho certeza que a Chama Viva deu uma contribuição importante para o Tocantins, na perspectiva do teatro
O sr. construiu uma trajetória de sucesso com a Cia. Chama Viva. Qual a importância desse movimento para o desenvolvimento do teatro no Tocantins?
Eu tenho certeza que o Chama Viva deu uma contribuição muito importante num período da história do Tocantins, na perspectiva do teatro enquanto processo, enquanto construção, enquanto estética, porque a gente procurou inovar neste caminho da construção estética, do estudo do teatro enquanto linguagem. Eu me emociono muito quanto tento falar do Chama Viva, até porque a minha irmã [Marcélia Belém] também fazia parte desta construção toda, juntamente com a Cleuda Milhomem, com a Lucinha Quilombo que fez parte por alguns momentos em vários projetos que a gente executou e tantas outras pessoas que passaram pela Chama Viva, algumas que a gente não tem mais e outras ainda continuam na luta. A gente deu uma contribuição. O teatro nos colocou num lugar no mundo. Acho que o teatro teve um sentido muito profundo na vida de todas as pessoas que passaram pela companhia, enquanto formação, enquanto cidadania, enquanto consciência, arte, processo de construção também de uma consciência, de uma linguagem, de uma estética que pudesse se comunicar com as pessoas. A gente é um pouco de tudo isso.
Eu ainda sonho num futuro próximo em voltar com a Chama Viva e acho que a gente pode ainda fazer muita coisa, porque ainda estamos todos ainda um tanto jovens.
A cultura jamais vai deixar de existir. Até porque a sua existência independe das instituições, embora elas sejam importantes
Qual é o panorama da cultura no Tocantins depois da pandemia que afetou profundamente o setor, sobretudo pela falta de política públicas que neste período deixaram de ser efetivadas?
A cultura jamais vai deixar de existir. Até porque a sua existência independe das instituições, embora elas sejam importantes nas formulações das políticas que contribuem para a sustentação e afloramento da cultura com mais potência. Nós vivemos um desmantelo no Estado do Tocantins que começa por volta de 2011 [governo Siqueira Campos]. É quando a gente sofre os primeiros golpes na extinção da estrutura da cultura no Tocantins, do ponto e vista institucional, onde a gente começa a perceber que mesmo com uma certa deficiência, o pouco que se fez desde a criação do Estado, gradativamente foi sendo desconstruído. As estruturas foram desmontadas. O que ficou não tinha mais estabilidade. Ora você tinha a fundação, ora você não tinha, ora virava diretoria. E cada gestor que foi passando por ali foi dando continuidade a uma completa desconstrução. Um desvirtuamento do papel do Estado na institucionalização das políticas, e na criação consequentemente das políticas. Então, o desmonte das estruturas institucionais da cultura no Tocantins, começou antes do golpe de 2016. A partir de 2016 inicia um processo sistemático de desestruturação da cultura em nível nacional. Em muitos momentos somente as políticas federais reverberam pelo Tocantins, porque a gente já estava num processo de degradação das estruturas aqui no Estado. Eu digo, que nós temos sofrido profundamente já bem antes de todo esse processo de desconstrução da política nacional, que vivemos nos últimos seis anos. Isso acentuou mais ainda com a pandemia. A pandemia tirou o chão de todos aqueles que em certa medida, resistiam a todo esse processo e continuavam os seus fazeres.

Avalio a nomeação do jornalista Sebastião Pinheiro como um fato muito positivo, porque ele conhece o movimento cultural e conhece na adversidade
A gente tem um panorama difícil, mas desde a Lei Aldir Blanc 1 que a gente vem conseguindo constituir um grupo de pessoas, da cultura, que estava aí atuando. Eu, a Eva Pereira, a Meire Maria Monteiro, tantos outros valorosos companheiros; o Kaká Nogueira, Nival Correia, enfim, tem uma lista enorme que a gente poderia citar, a Regina Reis, que é uma produtora, nesse tempo a gente vem num processo sistêmico também de tentar construir uma resistência mais coletiva, porque a gente estava num isolamento. Esse sentimento de coletividade se acentua a partir da pandemia. Então, nós temos uma lacuna enorme que precisa ser preenchida, mas eu acredito que nós estamos chegando em 2023 com um cenário muito mais favorável. Eu avalio que o advento da Lei Aldir Blanc 1, mais a Lei Aldir Blanc 2, e mais a Lei Paulo Gustavo, está trazendo um fôlego e uma possibilidade de construção interessante, que suscitou um debate institucional que nos últimos dois anos se travou com o governo do Estado, que era muito ausente. Acho que o Estado começa a sinalizar com possibilidades concretas, de escuta e de gestos que podem se materializar.
A gente precisa ter muita sabedoria agora para participar deste processo de uma forma construtiva. A Secretaria da Cultura do Estado foi instalada, está num processo também de reconstrução. Avalio a nomeação do jornalista Sebastião Pinheiro como um fato muito positivo, porque o Tião conhece o movimento cultural e conhece na adversidade. Sempre foi um dos atores do nosso jornalismo, não são tantos, que nos deram vozes, em momentos de dificuldades, de enfrentamento. Ele conhece a gente na adversidade. A gente está construindo essa ponte de forma muito consistente, na relação institucional, acho que boas coisas virão.
A nossa cultura é muito forte e de muita qualidade. O que acho que houve ao longo do tempo foi falta de qualidade de gestão
Neste momento me parece que o grande desafio é viabilizar a aplicação dos recursos que estão disponíveis, em volume que é o maior de todos os tempos. Como o escritório pode atuar para a aplicação dos recursos?
Acho que é preciso ter muita qualidade de gestão. Qualidade na construção dessa política e na relação a se estabelecer com a sociedade. A nossa cultura é muito forte e de muita qualidade. O que acho que houve ao longo do tempo, foi justamente o contrário. Faltou qualidade de gestão. Faltou sensibilidade do poder público para perceber e construir os mecanismos de acordo com as possibilidades que o Estado oferece. Nós temos uma cultura rica, nós temos uma arte exuberante, potente, agora, a gente pode trabalhar a qualificação profissional com muito mais profundidade, você pode trabalhar para que a arte possa se expressar dentro de um circuito com condições estruturadas e maior qualidade de circulação com permanência. Então, eu acho que precisa exatamente dessa qualificação. Precisamos ter quadros qualificados para trabalhar as políticas culturais. Não basta só ter recursos, é preciso ter recursos e trabalhar a estruturação dos órgãos para que eles respondam à qualidade daquilo que já se produz. Muita gente da cadeia produtiva da cultura está qualificada, claro, e muita gente precisa ser qualificada. O Estado precisa exercer o papel de qualificação permanente. De formação contínua. Assim como é na educação, na saúde, como é nas outras áreas. A formação é permanente. Esse é um desafio importante. Responder aquilo que a sociedade precisa.

Nós temos aqui no Tocantins conquistas importantes que foram reflexos das políticas culturais formuladas pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira
Como tem sido a receptividade dos fazedores de cultura com este momento de reconstrução?
A receptividade é muito boa. Eu sinto isso claramente na receptividade das pessoas em relação à chegada do escritório, com relação a chegada da Secretaria da Cultura, das pessoas que estão compondo esses quadros. Acho que há um ânimo de esperança muito forte. No âmbito federal dispensa maiores comentários porque havia um desejo muito grade, até porque o presidente Lula demonstrou na prática durante seus oitos anos de governo a presença muito forte da cultura. Nós temos aqui no Tocantins conquistas importantes que foram reflexos das políticas culturais, que pela primeira vez foram construídas como políticas de estado e não como políticas de governo que foram formuladas pelo ministro Gilberto Gil e pelo ministro Juca Ferreira. Um dos exemplos que posso citar é a Fundação Municipal de Palmas, que pegou carona naquela onda e soube beber na fonte e avançou. Nós temos um quatro de estabilidade, há 15 anos a fundação funciona com políticas culturais estabelecidas que não são políticas que dependem deste ou daquele gestor. Estão vinculadas a um plano de desenvolvimento da cultura, por um determinado período. Então, eu acho que nós temos um clima muito favorável para este momento e temos muito desafios.
Penso o teatro hoje, mesmo quando estou tratando com profissionais, de uma forma muito mais estruturada, e muito mais pedagógica
Como o sr. avalia a importância do curso de graduação de teatro oferecido pela Universidade Federal do Tocantins, no desenvolvimento das artes cênicas no Estado?
Veja, o curso de teatro, eu já ouvi depoimentos assim, dos professores que participaram do processo de criação, de que muito do que nós fazíamos no grupo Chama Viva interferiu muito na concepção e na percepção da necessidade de um curso de teatro. Já ouvi isso da professora Rose Bodinar, da professora Kátia Maia Flores, que agora é superintendente de Cultura do Estado . O curso de teatro aqui na UFT contribuiu muito. Primeiro, me fez repensar a minha prática teatral, num processo muito rico de reflexão. Acho que o curso traz uma contribuição para a cena cultural, cena teatral da cidade. Acho que ele provoca uma intervenção na medida que coloca mais pessoas com a possibilidade de fazer e com conhecimento mais consolidado sobre o que é o teatro. Onde é que podemos chegar, o que podemos fazer. Eu te confesso que o curso me deu uma possibilidade pedagógica extraordinária. Eu penso o teatro hoje, mesmo quando estou tratando com profissionais, de uma forma muito mais estruturada, e muito mais pedagógica e mais profunda enquanto arte do teatro como sentido para a vida. O curso traz uma contribuição enorme, tem mais pessoas pensando no fazer e mais pessoas fazendo. Na avaliação que eu faço, o teatro aqui está precisando de um boom. Mas é mais do que recursos, os profissionais da área precisam repensar o que estão fazendo no momento. Para que esses teatros possam ser mais projetos e menos eventos. Faço uma crítica, não aos editais. As pessoas se atentam pegar os recursos aí montam um espetáculo que termina sendo um evento. E o teatro deixa de existir enquanto processo.
Acabei de realizar aqui pela prefeitura, algo que me trouxe muita satisfação. Um grupo de atores que foi selecionado em 2020. Aí veio a crise da pandemia. Nós temos aqui num projeto que eu coordeno de formação de atores e plateia, a Companhia de Teatro Fernando Monte Negro que já existe a sete anos. E nesse período a companhia não produziu um espetáculo, ela produziu um processo de resistência do teatro, que passou pela pandemia, passou pela construção de um espetáculo e que agora, acabamos de percorrer oito regiões da cidade, levando o espetáculo dentro de uma estrutura que adequa, que se monta de acordo com geografia do lugar, de acordo com a comunidade. Isto, torna o teatro muito mais potente. Talvez essa seja a contribuição, ou a provocação do Cia Fernanda Monte Negro, acho que os grupos precisam resgatar o espírito que tivemos, grupos como o Renascimento, o Chama Viva, que fizeram história.

Acho que a humanidade vai sempre resistir, como a arte vai sempre resistir, como o teatro resiste há quase quatro milênios
Em tempos de pós-verdade, ainda há espaço para a utopia?
A utopia é inevitável na arte. o sonho é inevitável para o artista. Se você não tem utopia, se não tem sonho, se não formula possibilidades poéticas e estéticas a arte deixa de existir. Sempre a existência da arte vai apontar nesta direção. Acho que neste momento a gente tem uma responsabilidade muito maior. Nós vivemos tempos líquidos mesmo. A pós-verdade isso se tornou mais acentuado. É uma desconstrução pela mentira, uma desconstrução pela superficialidade de tudo e a gente precisa e a se contrapor a isso. O teatro tem um papel fundamental neste momento. E a arte de um modo geral tem um papel estratégico de se fortalecer e se comunicar. Aí o desafio de se comunicar de que forma dentro desta sociedade tão descartada, do TikTok, das coisas tão rápidas, o que tem valor neste momento, ele perde até ser substituído por uma outra postagem. Como é que a gente lida com este universo? Como é que a gente reflete este universo? O homem continua portando sentimentos, trazendo as suas complexidades e as suas contradições e elas se conflitam com essa liquidez. Se a gente não tiver um lugar, não propor uma forma que saia do trivial, do lugar comum para refletir este novo comportamento social, o teatro corre o risco de perder o seu sentido, que é de sempre colocar o homem diante de seus conflitos. Sou muito esperançoso. Acho que a humanidade vai sempre resistir, como a arte vai sempre resistir, como o teatro resiste há quase quatro milênios.