Viúva de sobrevivente do holocausto conta como ele reconstruiu a vida em Goiânia

13 novembro 2022 às 00h00

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Em 1942, quando tinha apenas 15 de anos de idade, o judeu polonês Stanislaw “Shlomo” Szmajzner foi levado a um dos maiores campos de extermínio da Europa: Sobibór, na Polônia. Ali morreram de 200 mil a 260 mil judeus desde a abertura do campo, em maio de 1942, até que a revolta dos reclusos deu fim às operações de Sobibór, em 1943. (A participação de Stanislaw Szmajzner na rebelião, bem como sua participação no reconhecimento de nazistas fugitivos, foi narrada em reportagem do Jornal Opção). Após o conflito, Stanislaw se mudou para o Brasil e viveu em Goiânia até sua morte, em 1989. Por quinze anos foi casado com Francisca Alves De Oliveira, que, em entrevista ao Jornal Opção, lembrou da história e da convivência com o sobrevivente do holocausto.
Francisca Alves De Oliveira conta que, depois do fim da guerra, Stanislaw morou na Itália, Áustria e outros países procurando por familiares, mas descobriu que todos seus parentes e amigos haviam morrido no holocausto. Os únicos conhecidos com quem conseguiu contato foram seus padrinhos: um casal de judeus poloneses que escaparam do nazismo fugindo para o Brasil, e moravam em São Paulo desde então.
Como os católicos, judeus também têm o costume de escolher um casal de amigos ou parentes para apadrinhar seus filhos. Embora Stanislaw tivesse conhecido seus padrinhos apenas na infância (período em que teve saúde frágil e que o marcou pelo fato de seus pais expressarem dúvidas quanto às chances de sua sobrevivência), os padrinhos eram os únicos conhecidos a quem poderia recorrer.
Sem dinheiro, Stanislaw teve a passagem da viagem de navio paga pelos padrinhos, por volta do ano de 1948. Após viver um curto período em São Paulo, se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como ourives e joalheiro. Stanislaw já havia exercido a profissão dentro do campo de extermínio, e foi o fato de produzir joalheira para oficiais nazistas que lhe garantiu a sobrevivência em Sobibór, ao passo que o restante de sua família foi executada.
No Rio de Janeiro, abriu a própria joalheria com um sócio. “Ele era incrivelmente trabalhador e cresceu na profissão. A joalheria chegou a ter oito salas, uma das maiores da cidade do Rio”, diz Francisca Alves de Oliveira. “Além disso, era talentoso; fazia verdadeiras obras de arte a mão.”
Durante uma viagem de férias, foi com amigos (um homem e duas conhecidas que eram irmãs) à cidade fluminense de Campo dos Goytacazes. Na volta ao Rio de Janeiro, Stanislaw sofreu um acidente. O carro que dirigia capotou e uma das irmãs ficou paraplégica. Sentindo culpa, pois era ele quem dirigia o carro, Stanislaw pediu à irmã ferida no acidente em casamento “porque eu havia estragado a vida dela”, relatou ele posteriormente à Francisca de Oliveira. A vítima não aceitou; mas quem demonstrou interesse em se casar com Stanislaw foi sua irmã, Noêmia.
Francisca de Oliveira diz que Stanislaw aconselhou Noêmia a não se casar com ele. “Ele sempre lembrava que não tinha tido juventude, pois foi capturado e levado ao campo de extermínio com apenas 15 anos de idade. Ele avisou a Noêmia que era instável: ‘eu só faço o que quero, você não vai ter um marido presente’. Mas o casamento durou – foram 13 anos vivendo juntos e tiveram dois filhos, Norberto e José Charles.”
Aconselhado por amigos e políticos, Stanislaw comprou uma fazenda em uma ilha entre dois rios perto da Bacia do Amazonas, em 1958. O rancho chegou a ter 1.800 cabeças de gado e, segundo o jornalista americano Richard Rashke, no livro “Fuga de Sobibór”, Stanislaw era o primeiro homem branco que a maioria dos índios de lá viu. Rashke escreve que, “quando o governo caiu em 1964, Shlomo vendeu o rancho, com medo de perdê-lo”.

No ano do golpe militar, o governador deposto de Goiás, Mauro Borges Teixeira, entrou na joalheria de Stanislaw, no Rio de Janeiro, em busca de uma pulseira de ouro para a primeira dama, Lourdes Estivallet Teixeira. “Ali eles se conheceram”, comenta Francisca de Oliveira. “Stanislaw contou a Mauro Borges sua história em Sobibór, mostrou os livros escritos sobre a rebelião e fuga do campo de concentração. Mauro Borges se encantou com a personalidade e disse a Stanislaw que ele precisava curtir a natureza, levar uma vida mais tranquila; e o convidou para trabalhar em sua fábrica de papel em Goiás, onde Stanislaw poderia ter uma casa no campo.”
Stanislaw gostou da ideia de Mauro Borges e se mudou para Goiânia por volta de 1970, mas sua esposa e filhos não se adaptaram à vida na cidade interiorana, e preferiram ficar na metrópole do Rio de Janeiro. Stanislaw tornou-se diretor-executivo da empresa Induprel, que fabricava e reciclava papel. A companhia era de propriedade de Mauro Borges e gerenciada por seu filho Pedro Ludovico Estivalet Teixeira.
Goiânia
Nascida em Ituiutaba, Minas Gerais, Francisca Alves De Oliveira se mudou com a família para Goiânia em 1972. Foi trabalhando na Induprel que conheceu Stanislaw. “Fizemos amizade, ele e os dois filhos vinham passear na minha casa com frequência. Percebia que ele ‘arrastava a asa’ para mim e eu resistia (risos), mas acabei gostando dele e em 1974 nos casamos”, lembra Francisca de Oliveira.
Stanislaw não era um homem fácil, conta Francisca de Oliveira. Sofria de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) antes da condição ser bem compreendida pela ciência. Os horrores que viveu em Sobibór nunca o abandonavam e seu humor frequentemente oscilava para um tom sombrio. Shlomo sentia necessidade de conversar sobre o que havia vivido e tocava no assunto todos os dias, conta Francisca de Oliveira. “Era necessário muito cuidado e psicologia para tratar com ele. Eu me sentia uma analista, estudando e tentando entender como ele pensava”, afirma Francisca De Oliveira, e acrescenta que foi por conta dos traumas do holocausto que ambos decidiram não ter filhos.
Durante as conversas, com um Shlomo às vezes tenso, Rashke o observava com atenção: “Havia uma tristeza em seus olhos castanhos esfumaçados que nunca desaparecia, mesmo quando ele estava nervoso ou ria”. De repente, dizia: “Eu estou em Sobibór agora”. Ainda no livro “Fuga de Sobibór”, Rashke escreve que, quando entrou em Sobibór, Shlomo acreditava em Deus. Depois da experiência trágica no campo, tudo mudou: “Eu não acredito mais em Deus. (…) Ele é o mais culpado de todos”.
Porém, Francisca Alves de Oliveira comenta que Stanislaw frequentava um centro espírita em Goiânia. Embora tenha se tornado ressentido contra a religião, ele pôde ter encontrado uma forma de expressar sua espiritualidade. “Ele tinha muita raiva do fato de que seu irmão mais velho era um judeu fervoroso, e Stanislaw assistiu ele morrer no campo de extermínio. Ele dizia ‘deus, onde você estava?’”
Apesar do temperamento difícil e das cicatrizes mentais deixadas pela experiência no holocausto, Francisca de Oliveira afirma que a convivência era tranquila e agradável. “Ele era uma pessoa muito boa. Amava a minha família, chamava a minha avó de ‘vovó’ também. Em geral, ele gostava de todos e aprendemos a viver com as dificuldades. Nossa vida juntos foi muito boa e tranquila.”
Na fábrica de papel, era querido pelos funcionários. “Todos os dias, por volta das onze da noite, ele ia à fábrica verificar como as coisas estavam funcionando – era extremamente dedicado. No tempo livre, gostava principalmente de música, clássica e popular. Sua coleção de vinis e fitas cassete tinha mais de mil volumes, que ele comprava ou gravava das transmissões de rádio”, conta Francisca de Oliveira.
Sobre os momentos mais difíceis, Francisca de Oliveira se lembra dos julgamentos dos nazistas e do envolvimento de Stanislaw no reconhecimento dos mandantes do holocausto. “Quando nos períodos de rotina, ele era tranquilo. Mas quando era entrevistado por algum jornalista ou era forçado a se lembrar de Sobibór por alguma razão, ficava muito agitado.”
Francisca Alves De Oliveira foi casada e viveu com Stanislaw “Shlomo” Szmajzner em Goiânia até a sua morte. Ele foi vítima de um ataque cardíaco em 1989.
Nazistas caçados
Nazistas como Franz Stangl, um dos comandantes de Sobibór, e Gustav Wagner, ajudados pelo bispo católico Aloïs Hudal, escaparam dos Aliados. Stangl viveu três anos na Síria e, em 1951, mudou-se para o Brasil, tendo trabalhado como “supervisor de manutenção preventiva em uma fábrica da Volkswagen, em São Paulo”.
Em 1967, um ex-agente da Gestapo recebeu 7 mil dólares de Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas, e contou onde Stangl estava “escondido”. Ele estava tranquilo, tanto que não havia mudado seu nome.
No seu julgamento, em Dusseldorf, Stangl revelou que Gustav Wagner morava no Brasil desde 1970, numa fazenda em Atibaia. Em 1978, jornalistas brasileiros publicaram que Wagner havia sido visto na comemoração do octogésimo nono aniversário de Hitler. “Wagner, com medo de que agentes de Israel estivessem atrás dele” — havia o precedente de Adolf Eichmann, sequestrado pelo Mossad, em Buenos Aires —, “foi até a polícia e se rendeu”.
Ao assistir o noticiário na televisão, à noite, Shlomo “viu o rosto de Wagner”. “Ele quase enlouqueceu de raiva quando soube que por quase 30 anos estava respirando o mesmo ar que Wagner. Ele entrou no primeiro avião para São Paulo, já que, se ninguém identificasse positivamente Gustav Wagner como o nazista de Sobibór em poucos dias, a polícia o soltaria e, então, ele poderia fugir para o Paraguai ou se esconder em um vilarejo distante no Brasil.”

Ao encontrar Wagner na cadeia, Shlomo disse: “Olá, Gustl”. Era o “apelido íntimo” do nazista. Assustado, o carrasco de Sobibór, confuso, perguntou: “Quem está aí? Quem disse isso?” O judeu, sua vítima no campo, disse: “É o pequeno ourives de Sobibór”. Wagner replicou: “Sim, sim, eu conheço você. Eu salvei você e seus três irmãos”.
Identificado, “Wagner admitiu que era nazista e que havia trabalhado em Sobibór”. Entretanto, como “o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Polônia e Israel não possuíam jurisdição sobre Wagner e que estavam faltando documentos por parte da Alemanha”, Wagner foi libertado. Em 1980, Wagner “cometeu” suicídio, em Atibaia.