Terra e água, água e terra: como o avanço do agronegócio esgota solos e mananciais
07 novembro 2015 às 10h21
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O avanço da fronteira agrícola e o atual uso destinado às áreas cultiváveis estão interferindo gravemente no problema de abastecimento de água das cidades. E pode se voltar contra os próprios produtores
Elder Dias
Alguém que ande pelas ruas de Goiânia — ou de qualquer cidade de certo porte do Centro-Oeste brasileiro — certamente já terá se deparado com o adesivo, geralmente estampado na parte de trás de uma caminhonete: “Você já comeu hoje? Agradeça a um produtor rural”. É realmente uma frase bonita e que, como induz, leva a certa reflexão.
Quem tem um pouco mais de idade vai se lembrar da música “Obrigado ao Homem do Campo”, de Dom e Ravel (que, apesar do tema, não eram o que se entende por uma dupla sertaneja), dos anos 70. Natural louvar a figura do agricultor em um país continental. O Brasil é um país de identidade rural e o Centro-Oeste, mais ainda: em tempos de crise econômica, é a região onde se encontra o maior superávit da balança comercial, graças à grande exportação de soja, carne e outras commodities — termo que, em inglês, significa “mercadorias” e que é utilizado nas transações comerciais de produtos de origem primária.
Pela vocação rural, nada mais natural que Goiás seja uma referência em tecnologia agrícola. No Estado se encontra o município brasileiro líder em irrigação por pivô central. Segundo dados do Sindicato Rural de Cristalina, por lá há atualmente cerca de 52 mil hectares irrigados (mais de 8,5% da área do município, de 6,1 mil km²) por 680 pivôs centrais; 142 produtores trabalham com culturas irrigadas. Cristalina ainda tem uma vantagem sobre outros municípios: aplica uma tecnologia tal que sua irrigação se dá de forma mais sustentável do que a média. A forma de produzir também mostra um pé na sustentabilidade: em vez de monoculturas, do município saem mais de três dezenas de produtos diferentes.
De qualquer forma, se dividirmos o número de hectares irrigados (52 mil) pelo número de produtores (142), chegaremos a propriedades rurais de 366 hectares, em média. Para Cristalina, o módulo fiscal — unidade de medida agrária adotada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que varia de município para município —, é de 40 hectares. Uma pequena propriedade rural é algo que não pode ultrapassar quatro módulos fiscais, o que seriam 160 hectares em Cristalina. Logo, a chance de ter algum pequeno produtor usando pivô central é pequena. Ainda assim, é um quadro bem diferente da maioria dos municípios goianos, onde produção rural equivale a monocultura. Eis o maior dos problemas: a monocultura.
Terra e água. Para falar da questão hídrica, não há como falar da segunda sem a interferência da primeira. O que este texto propõe é esta discussão: de que maneira a posse e o uso da terra estão interferindo no problema da água?
Para estabelecer o debate, é preciso se lembrar da posição de Goiás como Estado divisor das bacias hidrográficas do País. E de que o Cerrado, que originariamente ocupava praticamente a totalidade da superfície do Estado, sofre o avanço da fronteira agrícola mais do que qualquer outro bioma nacional. Isso traz um PIB maior para o Estado, mas boa parte dos ganhos econômicos em cima de um bem que deveria ser socializado da forma mais ampla possível — a terra — favorece diretamente apenas uma pequena parcela ínfima da sociedade.
E aqui servem bem algumas palavras emprestadas do jornalista goiano Gilberto G. Pereira: enquanto o agricultor produz alimento, vendido no Ceasa [Central de Abastecimento, para onde hortifrutigranjeiros goianos repassam a produção], o agronegócio produz commodities, vendidas na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F/Bovespa). Para este, tudo é grande: grandes propriedades, grandes investimentos, grande uso de recursos naturais, grandes lucros. De pequeno, só o número de beneficiados diretos pelos dividendos: alguns familiares, poucos sócios ou os acionistas da empresa agropecuária.
Gente versus commodities
O retorno social pelo usufruto da terra é, portanto, sofrível. Mais do que isso, vem se mostrando negativo, em alguns casos. Certas propriedades rurais consomem, em seu sistema de irrigação, mais água do que a população de cidades inteiras. Dessa forma, ao “tirar” do rio uma quantidade considerável de água que poderia abastecer milhares de pessoas à jusante do manancial, existe uma perda de qualidade de vida para esse contingente que não entra na conta do PIB. Gente vivendo sem água para garantir a “vida” das commodities e o lucro de seus proprietários. Isso está certo?
É importante notar que a expansão das fronteiras agrícolas também condiciona o encolhimento da paisagem original. Troca-se um solo de Cerrado, rico em biodiversidade e em armazenamento hídrico (as raízes das espécies da flora do bioma são especialistas em absorver a água das chuvas) por uma superfície moldada ao gosto da monocultura — com correção do pH para aumentar a safra e com aplicação de defensivos e outros insumos —, mas com uma perda irreparável de reabastecimento do lençol freático, entre muitas outras tragédias ambientais. Essa água que não penetra no solo vai, portanto, chegar mais “depressa” aos rios e, obviamente, ao mar.
O terreno cultivado, então, provoca uma natural redução do volume dos lençóis subterrâneos, o que vai, por sua vez, reduzir o volume de nascentes ou, em muitos casos, extingui-las. Estaria nisso a explicação para que 70% dos afluentes do Rio São Francisco estejam hoje secos ou em estado de intermitência (secos durante boa parte do ano)? Se levar em conta nessa análise que 94% da água de sua bacia provém do Cerrado, a resposta é tristemente positiva. O que significa esse avanço da fronteira agrícola, então?
Pesando a balança entre a economia e a ecologia, o aumento da área cultivada deveria ser comemorado ou lamentado? Sem dúvida nenhuma, é a segunda opção. Indo além: é algo a se lamentar até mesmo por parte do empresário do agronegócio. Goiás, como Estado, se vê em uma encruzilhada: o crescimento econômico do Estado está baseado, em grande parte, no avanço da produção agropecuária; mas esse mesmo crescimento, em pouco tempo, pode causar uma crise hídrica muito maior do que a já instalada, o que tornaria a água um elemento cada vez mais escasso até mesmo para as grandes companhias do agronegócio.
A solução, para o bem de todos, seria o estancamento da hemorragia hídrica. Como? Com o fim do avanço das culturas e da pecuária sobre o Cerrado. Para um Estado ainda dependente do setor primário, isso parece um problema. Só parece: na verdade, por ironia, é a única solução.
Para tanto, será preciso a indução de mudança de mentalidade do próprio produtor rural. Há a necessidade da busca de uma agricultura cada vez mais intensiva, que consiga se mostrar mais eficiente no mesmo espaço — ou mesmo em espaços menores. É bem verdade que o aumento da produção por hectare já tem sido uma busca, porque isso gera mais lucro. Mas é inegável que isso é bem mais trabalhoso do que avançar sobre a terra virgem. E nada garante que essa maior eficiência impeça que se aumente também a área cultivada. Esta é a dramática questão: como convencer o produtor a não desmatar mais do que já desmatou?
No início do povoamento mais acentuado de Goiás e Mato Grosso, quando da chamada Marcha para o Oeste, ainda nas décadas de 60 e 70, havia algo inconcebível de ser pensado hoje em dia: os fazendeiros ganhavam bônus para desmatar. Já passou da hora de fazer exatamente o contrário: o poder público precisa se mostrar claramente disposto a premiar quem recuperar o que foi destruído em sua propriedade. Algumas iniciativas nessa linha já existem, inclusive já testadas em Goiás, como o programa Produtor de Água (para recuperação e preservação de nascentes), da Saneago, que deveria receber mais impulso e recursos. São ações ainda tímidas.
Ou Goiás e o Centro-Oeste contêm o avanço da fronteira agrícola para garantir o próprio futuro ou o lucro de hoje será o prejuízo de amanhã. Pelo ritmo em que andam proliferando as notícias sobre a falta d’água, já passa da hora de medidas mais concretas e efetivas. A temporada chuvosa começa agora, mas as águas de novembro a março não podem encobrir a necessidade de um plano sólido e estruturado para que as terras e as águas do Cerrado sejam respeitadas.