Teorias da conspiração se espalham e país não atinge meta de vacinação
21 julho 2019 às 00h00
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Parte da culpa pela queda na cobertura vacinal é o fato de que não se convive mais com doenças evitadas pelas vacinas, bem como teorias de que a imunização causa males
Desde 2015, a cobertura vacinal vem caindo em todo o Brasil. Há quatro anos, 93,5% da população-alvo foi vacinada em Goiás, enquanto no ano passado a cobertura atingiu apenas 71,4% das pessoas priorizadas. O país inteiro repete essa realidade: com exceção da BCG, todas as vacinas do calendário infantil ficaram abaixo da meta (95%) no último ano, segundo dados do Programa Nacional de Imunizações.
Profissionais afirmam que diversos fatores contribuem para esse fato. A erradicação de doenças como sarampo e poliomielite cria a falsa sensação de que vacinas não são mais necessárias, enquanto os 26.827 casos da doença entre 1968 e sua erradicação em 1989 formavam um quadro assustador de crianças com dificuldade de locomoção que incentivava pais imunizarem seus filhos.
A meta de 95% não é por acaso. Caso a taxa seja atingida, a transmissão de infecções é muito reduzida pelo efeito da imunidade de rebanho. Isto é, mesmo que nem todos estejam vacinados, um portador de vírus ou bactéria patogênico não encontrará outra pessoa desprotegida e a doença não se espalhará. Desta forma, mesmo aqueles não vacinados ficam protegidos.
Por isso, a imunidade de rebanho é ao mesmo tempo em um trunfo da infectologia e uma fragilidade: com pessoas não vacinadas beneficiadas, é possível encontrar quem diga: “não vacinei meus filhos e eles nunca adoeceram, logo, vacinas são inúteis”. Entretanto, com baixa imunização, basta que uma pessoa contraia uma doença para que ela se espalhe muito rapidamente. É o que aconteceu na Europa com o sarampo em 2017, segundo a BBC.
Narrativa paralela
O movimento antivacinação também tem se tornado um problema crescente, sendo incluído na lista dos dez maiores riscos à saúde global da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2019. A ideia de que vacinas fazem mal foi foi importada juntamente com outras teorias da conspiração dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em 1989, o médico britânico Andrew Wakefield forjou uma pesquisa e emplacou sua publicação no periódico Lancet. Ele associou o autismo à vacina tríplice viral em 12 pacientes, mas teve sua fraude descoberta ao ser constatado recebia pagamentos de advogados que processavam os fabricantes das vacinas.
Wakefield teve sua licença cassada e a Lancet removeu sua publicação e publicou um pedido de desculpas pelo ocorrido. Entretanto, a associação entre autismo e vacinas ficou. Seu estudo falso se propagou, dando origem ao movimento dos anti-vaxxers nos Estados Unidos e causando medo infundado de vacinas por todo o mundo. Propiciada pela internet, uma modernização da teoria antivacina tem se espalhado, envolvendo Bill Gates, eugenia e a esterilização disfarçada da população.
A estória não fica restrita à internet; um médico crítico às vacinas, que não trabalha na área da imunização e que não quis se manifestar, indicou à reportagem do Jornal Opção uma série de vídeos no YouTube em que a “verdade” oculta é revelada. Os vídeos ligam fatos em uma narrativa improvável, sem consideração pela navalha de Occam e que desconsidera evidências contrárias. Nela, compostos tóxicos são camuflados nas vacinas por filantropos que, na verdade querem lucrar espalhando doenças à população. Não há interesse em mostrar como as vacinas fazem mal, a quantas pessoas, sob quais condições, ou mesmo testar as hipóteses propostas.
Problema reconhecido, mas ignorado
A infectologista Renata Bernardes, comenta: “É um problema de internet, mas é onde as pessoas se informam atualmente. Fake News recebida por uma pessoa próxima pelo WhatsApp tem mais apelo do que a informação de um médico confiável. Essa geração perdeu o medo por falta de contato com doenças graves.” Outro fator que afasta pessoas das vacinas é o medo de efeitos colaterais, mas segundo Renata Bernardes, reações graves são extremamente raras. “Para serem liberadas à população, vacinas passam por muitos testes que provam que seus benefícios são superiores aos malefícios”.
Renata Bernardes ressalta que a situação atual não é culpa da população. Em sua opinião, faltam campanhas que comuniquem a importância da vacinação como um todo, ao invés de campanhas específicas para vacinações sazonais, como acontece atualmente. A médica também enumera a cobrança do cartão de vacinação como pré-requisito para matrícula escolar como uma medida que era eficiente, mas vem sido abandonada.
A Secretaria de Estado da Saúde de Goiás reconhece que teorias da conspiração são um problema, mas ainda não há dados para mensurar quanto do problema se deve às Fake News. A comunicação da SES-GO afirma: “É fato que o movimento anti-vacina é expressivo em países da Europa e Estados Unidos, e vem crescendo em outros países como o Brasil. Este movimento está elencado entre os fatores para a baixa cobertura vacinal, porém não temos dados para informar se ele contribui de forma expressiva para essa queda nos números de vacinados no estado e no país”.
Filósofo da ciência explica por que teorias da conspiração
Cristiano Novaes de Rezende é professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), atuando na área da Teoria do Conhecimento. Rezende auxilia a compreender por que o conspiracionismo sobrepõe o peso das evidências e como notícias falsas em redes sociais vêm complicando a atuação de profissionais sérios.
Por que a ciência é mais confiável do que outras formas de conhecimento? Por que alguém deveria dar mais ouvidos a cientistas do que a anônimos na internet?
A ciência é a forma de conhecimento que é capaz de responder à pergunta “como se sabe?”. Ou seja, ela é responsável não apenas pelo resultado, mas também pelo método – palavra que deriva do termo grego “caminho”. Nesse sentido, ela tem responsabilidade pelo que diz. Quando prova algo, é capaz de dizer como isso foi encontrado. O anticientificismo se concentra unicamente nos resultados, mas é irresponsável quanto aos métodos.
É possível explicar por que terraplanismo, anti-vacina, negação do pouso na lua, do aquecimento global – por que tudo isso está se tornando popular?
Essa é uma pergunta muito complexa, não dá para dizer de forma rápida. Mas eu acho que há uma “borramento” das fronteiras entre conhecimento científico e opinião. Há uma espécie de privatização do conhecimento, no sentido de que um grupo se identifica com uma determinada posição e, no interior desse grupo, membros apoiam uns aos outros mantendo uma verdade como construto.
É possível discriminar três concepções de verdade: a primeira é a coerência. Por exemplo, uma igualdade em uma expressão matemática. Dois mais dois é igual a quatro. Essa expressão não necessariamente aponta para algo fora dela mesma, mas é verdadeira. Depois temos a verdade como correspondência, que é a verificação dos fatos objetivos, que a Terra gira em torno do Sol. A terceira concepção é a verdade como construto simbólico; no caso, das experiências humanas como participantes de uma comunidade que entram em acordo sobre determinados conceitos. Me parece que há uma confusão entre a correspondência e construto simbólico. São pessoas que fazem parte de comunidades em que, para receber apoio, é necessário sustentar essas “verdades”, que são muito mais questão de construção do que de correspondência com a realidade.
É comum encontrarmos pessoas que creem em conspirações nos veículos de comunicação, já que chamam a atenção. Na realidade, na comunidade científica, eles são raros
Um dos fatores que explica isso é a privatização e mercantilização do conhecimento. O princípio segundo o qual o freguês sempre tem razão faz parte da lógica do mercado. Com o conhecimento tratado como mercadoria, haverá de haver também cientistas dispostos a satisfazer a demanda de opiniões anticientíficas.