Startup goiana combate mercado negro de atestados médicos falsificados
23 junho 2019 às 00h00
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O aplicativo Atestify emite atestados digitais que podem ter a veracidade confirmada por QR Code, com a câmera do celular. Embora o sistema seja simples, suas contribuições ultrapassam a eliminação de fraudes
Em 2017, o anestesista Remulo Orlando Borges teve os documentos e seu carimbo do Conselho Regional de Medicina roubados. Meses depois, departamentos de recursos humanos de diversas empresas o procuraram para verificar se atestados que haviam recebido em seu nome eram verdadeiros. Foi assim que o médico descobriu o grande mercado negro de atestados falsificados e percebeu a forma arcaica com que a veracidade de documentos é apurada.
Um ano depois, em um curso sobre inovação em saúde no Sebrae-GO, Remulo Borges concebeu uma forma de resolver o problema. Ele se associou ao médico José Antonio de Oliveira e ao desenvolvedor de software Giuliano Rezende, que submeteram a ideia ao processo de incubação no Centro de Empreendedorismo e Incubação da Universidade Federal de Goiás (Cei UFG). A startup do trio, chamada Atestify, emite atestados digitais seguros, verificáveis por médicos e empregadores.
Segundo levantamento da Federação do Comércio do Estado de Goiás (Fecomércio GO), cerca de 30% dos atestados médicos emitidos no Brasil são falsificados. Eles podem ser comprados por cerca de R$ 50 na internet e em filas de Cais; por funcionários preguiçosos e por detentos do regime semiaberto para se ausentar de complexos prisionais; e podem ainda ser feitos sob encomenda, em nome de médicos célebres, já que os dados necessários para a emissão são públicos. Apenas o carimbo e a assinatura precisam ser forjados.
A prática de falsidade ideológica nos atestados médicos infringe o artigo 302 do Código Penal Brasileiro, prejudicando empresas e órgãos públicos. O prejuízo anual com a perda da produtividade pelo absenteísmo de funcionários é de R$ 33 bilhões em todo o Brasil, R$ 1 bilhão apenas em Goiás. Se forem somados a estes dados os números de atestados graciosos – aqueles em que o paciente finge sintomas para ganhar uma dispensa – o prejuízo é incalculável.
Verificação digital
Os números impressionantes fizeram com que Estados, como o do Espírito Santo, tornassem lei a emissão de atestados médicos com código de verificação digital. A medida praticamente impossibilita a falsificação e facilita a vida de empreendedores. Em Goiânia, em 2017, uma lei semelhante de autoria da vereadora Dra. Cristina Lopes (PSDB) foi aprovada na Câmara Municipal. Vetada pelo então prefeito Paulo Garcia (PT), o veto foi derrubado em plenário, mas, finalmente, a proposta foi considerada inconstitucional pela Subprocuradoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO).
A principal justificativa para a inconstitucionalidade foi o chamado vício de iniciativa, pois “compete privativamente ao Prefeito exercer a direção superior da administração municipal e dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração municipal”. Além disso, o orçamento para aplicação da medida também foi utilizado como argumento. “A exigência da expedição de atestados digitais em toda a rede hospitalar pública […] implicou em despesa para o erário, sem a correspondente previsão orçamentária”. A plataforma Atestify surge um ano após a publicação do parecer, em junho de 2018, e pode ser utilizada gratuitamente por instituições de saúde. Portanto, no nível dos municípios, a única barreira restante para sua adoção é o fato de que o interesse pelo aplicativo tem de vir do Executivo.
Prefeituras do interior já utilizam o aplicativo
O modelo que Remulo Borges, José Antonio de Oliveira e Giuliano Rezende encontraram para distribuir a plataforma foi contactar prefeitos de cidades do interior de Goiás e convencê-los dos benefícios de sua inovação. A cidade de Paraúna, no Sudoeste goiano, tem cerca de 11 mil habitantes e foi a primeira a adotar a iniciativa. Além de permitir que setores de RH pesquisem facilmente a veracidade de atestados, o aplicativo fornece dados sobre a saúde às secretarias em tempo real.
“Em um mês de atividade em Paraúna, emitimos 300 atestados”, afirma Remulo Borges. “Lá, cerca de 80% dos profissionais da saúde estão usando o Atestify. Começamos pela saúde municipal, mas se é gratuito e toda cidade está emitindo, as clínicas particulares adotam por osmose. As empresas empregadoras cobram do sistema de saúde particular; pega até mal emitir atestados escritos. As pessoas perguntam, ‘por que você não emite atestados seguros?’”
Entretanto, a maior contribuição do aplicativo talvez seja o monitoramento de dados, segundo Remulo Borges. “Percebemos quais doenças afastam mais as pessoas do trabalho, o que ajuda gestores a tomar decisões. Dengue e doenças ortopédicas afastam trabalhadores por muito tempo. Pode-se fazer campanhas específicas e observar seus resultados pelo aplicativo. Percebemos que segunda, quinta e sexta-feira são dias com muito mais emissão de atestados. Doença não escolhe dia. São atestados graciosos. Uma medida educativa conscientizando acerca do porquê não se deve fazer isso daria resultados”.
Segundo Ednamar Dias dos Santos, representante do Cei UFG, a mesma lógica pode ser aplicada a empresas particulares. “Se uma empresa tem os atestados recebidos bem organizados, pode perceber que seus funcionários adoecem mais de condições respiratórias, por exemplo, e estudar maneiras de diminuir contágio entre trabalhadores ou ventilar melhor os ambientes. Isso gera produtividade com o tempo”.
Remulo Borges adiciona ainda que o aplicativo constrói uma base de dados com o tempo. Assim, gestores públicos da área da saúde podem conferir o histórico de médicos e notar quais são aqueles mais liberais, que concedem atestados mais facilmente e trabalhar sua conduta. Bem como é possível conferir o histórico de pacientes e saber de antemão quais são aqueles com alto padrão de afastamento, mas que não têm doenças crônicas, o que indica probabilidade de graciosidade.
Duas outras cidades do interior goiano já se interessaram pela plataforma e passam por treinamento para sua implementação. O aplicativo pode ser utilizado gratuitamente por instituições de saúde, médicos e pequenas empresas. De grandes empresas é cobrado de R$ 20 a 150 mensais, de acordo com a demanda.
Cei UFG
Emília Rosângela Pires da Silva, gerente do Centro de Empreendedorismo e Inovação, afirma que o programa de incubação apoia microempresas inovadoras em seus primeiros anos por meio de consultoria, cursos, qualificações e fornecimento da estrutura da Universidade Federal de Goiás. O Cei UFG já incubou 25 empresas desde 2008 e 23 destas estão atualmente no mercado com autonomia financeira.
Os responsáveis pela Atestify entraram no programa por meio de edital com apenas uma ideia, que foi desenvolvida e agora se encontra em fase de teste. “Acompanhamos as empresas em incubação”, afirma Emília Pires. “Temos um programa de lições aprendidas; levamos empresários experientes para dar aconselhamento. Se a empresa apresentar maturidade em forma de resultados, ela é graduada e estará pronta para ir ao mercado.”
Além da incubadora, o Cei UFG é responsável pelas Olimpíadas de Empreendedorismo e pelos cursos UFG Startup LAB e ufg empreende. Emília Rosângela Pires afirma: “Queremos trabalhar a formação empreendedora. Empreendedor não é só quem cria um aplicativo, a pessoa pode estar no serviço público ou empregada por uma empresa e ser empreendedora. A característica que define o empreendedorismo é a busca ativa pela solução de problemas. Pode ser tentar ganhar dinheiro, mas pode ser resolver problemas da sociedade”.