Disputa por espaço em um universo nem sempre leal e ético, mas que conquistou jovens de todo o Brasil e parece se consolidar ainda mais nos últimos oito anos

Dupla Zé Neto & Cristiano foi a mais tocadas nas rádios do Brasil em 2016, com a música “Seu Polícia” | Foto: Divulgação

A não ser que você tenha se desligado completamente do que acontece no mundo e em sua ci­dade desde o final da primeira década dos anos 2000, provavelmente você ouviu ou conhece alguns dos artistas do estilo chamado sertanejo universitário. O rótulo tem sido o responsável pelos principais sucessos da música brasileira nos últimos oito anos, e em 2015 e 2016 se tornou uma unanimidade entre as 100 canções mais executadas nas rádios do País.

Os versos “Sofrimento é ma­to/Co­ração em pedaços/Com­pre­enda por favor/O meu amor me deixou”, do refrão da música “Seu Polícia”, da dupla de São José do Rio Preto (SP), Zé Neto & Cristiano, dominaram o Brasil em todas as suas cinco regiões. Não há como escapar da melodia fácil de decorar da canção que trata de um homem que se separou recentemente da mulher. De acordo com a Crowley Broadcast Analysis Brasil, empresa considerada a mais confiável no País quando se trata de ranquear as canções mais executadas, “Seu Polícia” foi o som mais tocado nas rádios brasileiras entre no ano passado.

A dupla paulista faz parte do grupo de artistas empresariados pelo escritório goiano WorkShow, de Wander Oliveira, que divide os contratos da dupla com a gravadora Som Livre. A WorkShow é uma das quatro principais empresas do mercado da música comercial no Brasil. Ao lado da AudioMix, FS Produ­ções Ar­tísticas e Mega Produções Artísticas, a empresa lidera o ranking das músicas mais executadas e ouvidas no Brasil no ano passado e nos dois primeiros meses de 2017.

E não é por acaso que a segunda música mais ouvida em 2016 em todo o País venha da mesma Work­Show. “Infiel”, da goianiense Marília Mendonça, de 21 anos, grudou na cabeça do brasileiro. “Iêê, infiel/Eu quero ver você morar num mo­tel/Estou te expulsando do meu coração/As­suma as consequências dessa traição” são versos que passaram por seus ouvidos em algum momento do ano passado, admita ou não.

Nos anos 1990, Goiânia tinha apenas uma casa noturna assumidamente de música sertaneja, a Pirâmide Cowboy, na Avenida Jamel Cecílio, no Jardim Goiás. Mas o momento dessa boate era outro, quando o sertanejo vivia o auge do chamado sertanejo romântico, considerada a segunda fase do estilo musical, que nasceu da cultura caipira. O gênero romântico do sertanejo, surgido na década de 1980 com duplas como Chitão­zi­nho & Xororó, Leandro & Le­onardo e Zezé Di Camargo & Lu­ciano, chegou em alguns momentos ao todo do mercado musical na década seguinte, mas nunca alcançou o status de cultura jovem predominante.

Preconceito
O caipira, que estudiosos do gênero dizem ter surgido da definição indígena como referente ao interior do Brasil, teve seu predomínio nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A evolução da música caipira em sertaneja aconteceu entre as décadas de 1940 e 1950, quando pessoas do campo se mudaram para a cidade e suas canções retratavam a saudade do meio rural.

Se a moda de viola, surgida da an­dança dos bandeirantes que abandonaram as bandeiras e se fixaram no interior de diferentes Estados durante os ciclos do ouro e do café, retratava a vida bucólica do campo, o sertanejo mostrou a evolução desse estilo. Enquanto o sertanejo produzido no meio urbano mostrava um campo saudoso no qual a pessoa não mais vivia, o sertanejo ro­mântico, quatro décadas depois, ganhou o apelido pejorativo de música de corno. Até Monteiro Lobato, em 1914, escreveu um artigo no jornal O Estado de S. Paulo no qual se referia ao sertanejo como um jeca tatu.

Aquelas duplas do sertanejo romântico, muitas delas em atividade no mercado musical, rejeitam a evolução do estilo, que se tornou universitário e passou a contar com público maior, tendo inclusive aceitação entre os jovens, que antes rejeitavam a figura de atrasado ou interiorano que era negativamente ligada às pessoas que gostavam ou vivenciavam a cultura do sertanejo romântico.

Gusttavo Lima, mineiro que mora em Goiânia, estourou quando o sertanejo universitário surgiu e continua no topo | Foto: Divulgação

Evolução
O que aconteceu com a música sertaneja, que in­cluiu em seu estilo traços da cultura popular ao migrar para os grandes centros urbanos, foi expandir o que era caipira para os festivais da canção das décadas de 1960 e 1970, com Renato Teixeira sendo regravado por cantoras como Elis Regina. “Romaria” foi cantada por uma das cantoras símbolo da MPB em 1977.

O próximo passo foi a inclusão das guitarras e instrumentos do pop rock, por exemplo, e uma aproximação maior com o country dos Estados Unidos nas melodias do sertanejo romântico. Canções como “É o Amor”, cantada por Zezé Di Camargo & Luciano em 1991, demonstraram a força de um estilo que teve sua força reafirmada com a dupla Bruno & Marrone com “Dormi na Praça”, música gravada em 2000.

Apesar de “Eu não vou negar que sou louco por você/Tô maluco pra te ver/Eu não vou negar” ter rendido inclusive convite para encontrar o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC), no Palácio do Planalto, o love metal sertanejo brasileiro nunca alcançou a glória que o sertanejo universitário encontrou no mercado a partir de 2009. E vale lembrar que, desde então, o estilo se fixou nas paradas, ganhou os jovens de diversas classes sociais e de lá não mais saiu. Já são oito anos com artistas, sejam eles em duplas ou carreira solo — caso de Gusttavo Lima — que ninguém tira o sertanejo universitário do topo.

Balada boa
Gusttavo Lima, que hoje tem 27 anos, é mineiro de Presidente Ole­gário, mas fez sucesso em Goiâ­nia. A versão baladeira de Luan Santana saiu do escritório AudioMix, pelo qual estourou em 2009. A canção “Rosas, Versos e Vinhos” mostrava um Gusttavo Lima diferente daquele que surgiu do Trio Remelexo. Tra­balhado por personal stylist, o cantor se tornou o homem do cabelo arrepiado, malhado e tatuado da música “Balada”. Assim, o artista surfou no sucesso da era das onomatopeias no sertanejo universitário; “Balada” é bem isso: “Tchê tchererê tchê tchê/Tchererê tchê tchê/Tchererê tchê tchê/Tche­reretchê/Tchê, tchê, tchê/Gusttavo Lima e você”.

Do sucesso internacional “Ai Se Eu Te Pego” à glória feminina

Naiara Azevedo (meio) e a dupla Maiara & Maraísa surgiram no momento em que as mulheres ganham espaço no sertanejo | Foto: Divulgação

Gusttavo Lima permanece entre os mais bem sucedidos artistas do sertanejo universitário. Tanto é que das 100 músicas mais tocadas em todo o Brasil em 2016, três são dele – “Que Pena Que Acabou” (10º lugar), “Homem de Família” (16º) e “Jejum de Amor” (86º) –, além da participação em “E Aí”, de Matogrosso & Mathias. Em 2015, foram duas canções dele entre as 100 mais executadas e duas participações em músicas de outros artistas.

Uma dessas participações de Gusttavo Lima aconteceu na canção “Implorando Pra Trair”, de Michel Teló, que em 2011 levou o sertanejo universitário ao patamar de música mundial. O hit “Ai Se Eu Te Pego” ganhou versões em muitos idiomas, com uma gravada em inglês pelo cantor paranaense de Meianeira, mas que fez sucesso no Mato Grosso do Sul, por onde passou pelo Grupo Tradição antes da carreira solo. Michel Teló vive o desafio de ter surgido para o mercado do sertanejo universitário com a grande exposição de “Ai Se Eu Te Pego”. A dificuldade de emplacar outra música com tanto sucesso é grande.

Tanto é que os quatro escritórios que disputam a liderança no mercado vivem um clima nada amistoso, principalmente entre a WorkShow e a Audio­Mix, as du­as empresas goianas. Juntas, elas são responsáveis pelas carreiras de Jorge & Mateus, Gui­lherme & Santiago, Hum­berto & Ronaldo, Wesley Safadão, Matheus & Kauan, Simone & Simaria, Jefferson Moraes, Israel & Rodolffo, Israel Novaes, Hen­rique & Juliano, Marília Men­donça, Zé Neto & Cristiano, Maiara & Maraísa, Marcos & Fernando e Kleo Dibah & Rafael.

Domínio do mercado
A força dos escritórios no mercado brasileiro da música, que não sabe o que é crise, se evidencia na agenda exaustiva dos seus artistas e nos números nas paradas de sucesso nas rádios do Brasil. Em 2016, apenas 13 músicas não entram no estilo sertanejo. E a competição chega a ser cruel, tanto com artistas quanto contra os concorrentes. A começar pelo investimento feito em um artista para tentar criar um novo sucesso.

O Jornal Opção conversou com pessoas que fazem parte de diferentes partes do mercado da música sertaneja, desde pessoas responsáveis pela montagem de palco e montagem de equipamentos até gente ligada a escritórios que empresariam artistas na cidade. Pode até acontecer, mas é quase uma ilusão imaginar que o sucesso dos artistas do sertanejo acontece na sorte ou fruto do acaso.

Acreditar que uma dupla ou um cantor solo surge de apresentações em bares, como nas histórias do tempo do sertanejo romântico, é quase um delírio em 2017. Para se firmar no sertanejo universitário, um empresário precisa comprar a ideia de que um artista é bom, cuidar da carreira dele, para, quando ele se destacar, ser contratado por um grande escritório. Aí sim vem o investimento pesado.

Milhões
De centenas de milhares de reais jogados em cima de um novo artista, as cifras podem rondar as casa dos R$ 3 milhões, como explica uma pessoa ligada a um desses escritórios. Até surgir um Henrique & Juliano, por exemplo, muita gente costuma trabalhar com a dupla ou o artista. Desde o corte de cabelo ao aspecto físico, profissionais decidem o timbre de voz, que tipo de roupa usar, até se a pessoa deve usar brinco, piercing ou tatuagem. Parece exagero, mas não é.

O estilo musical que atrai jovens de todas as classes sociais, e que incialmente só retratava festa, bebida alcoólica e pegação, há alguns anos conta com redes nacionais de casas noturnas e festivais ligados aos principais escritórios, como é o caso do VillaMix e do Festeja. Além de personal stylist e produtor musical, empresário, secretária e outros profissionais mais próximos, a equipe de um cantor sertanejo universitário gira em torno de 20 pessoas mais próximas, fora os profissionais contratados para cada apresentação.

E os contratos não param na equipe direta do artista. Tem dinheiro para pagar a inserção na rádio (jabá), na TV, a participação em programas para produzir quadros ex­clusivos, DVDs. Quando um cantor chega ao sucesso, ele já tem seu DVD ao vivo e milhares de visualizações no YouTube ou execuções de suas músicas em plataformas de audição online, como o Spotify.

Como a venda do disco físico não é mais o forte do mercado, os shows são o grande produto.
A goiana Marília Mendonça, por exemplo, começa nesta semana uma agenda de shows que tem seis dias sem intervalo de apresentações em quatro cidades diferentes. Ela vai a Salvador (BA), onde faz shows nos dias 23, 24 e 25 de fevereiro, segue para Recife (PE) no domingo 26, desembarca em Luís Correia (PI) no dia seguinte, e fecha a rotina sem direito a folga na mineira Abaeté no dia 28.

Fim do preconceito

A goiana Marília Mendonça é dona dos hits “Infiel” e “Eu Sei De Cor” | Foto: Divulgação

O que o mercado do sertanejo universitário soube trabalhar, duas décadas depois do início da fase romântica do estilo, foi uma abertura maior para a mistura com outros estilos. Os artistas do segmento universitário do sertanejo misturam axé, funk, forró, arrocha, pop, rock e uma imagem menos rural que atrai principalmente a nova classe média.

No artigo científico “Sertanejo Universitário: Expressão e Valores de Jovens Urbanos no Brasil Con­temporâneo”, da professora do departamento de Comunicação da UFMG Vera Regina Veiga França e do mestre em Comunicação Social pela UFMG Vanrochris Helbert Vieira, a discussão sobre um público amplo é feita. No texto, a aceitação do estilo sertanejo como parte da cultura da maioria dos brasileiros a partir do estilo universitário vem do surgimento de uma nova classe média, que passou a ter o poder de compra maior.

“Além disso, o país passa por uma fase politicamente estável, desde o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso em 1995. As temáticas das músicas populares, nesse momento, focam-se, de modo geral, em questões de cunho individual, de forma diferente do que aconteceu, por exemplo, nos períodos de ditadura e redemocratização do país, especialmente através do rock e da MPB”, descrevem Vera e Vieira.

Estilo de vida esse que é evidenciado em declarações feitas pelo cantor paranese Israel Novaes, que mora em Goiânia. “Quando um relacionamento acaba, a maioria cai na cachaça, eu não, vou para a academia, compro roupa nova e, se der, até troco de carro. Fico até melhor do que era antes”, diz à revista Contigo!.

Rivalidade
A rivalidade entre escritórios que empresariam artistas é tão grande que há a tentativa de fazer com que shows de duplas do concorrente não aconteçam. Existe também a tática de marcar datas de grandes artistas em cidades nas quais outra empresa tem evento agendado e obrigar determinados contratantes a não contratar cantores de outros empresários.

Em 2012, o goiano Jorge, de Itumbiara, da dupla Jorge & Mateus, desabafou em entrevista ao UOL. “O mercado nosso é podre, podre. Onde já se viu essa competição que acontece hoje entre duplas, entre escritórios? Nossas carreiras não são um jogo, ninguém tá competindo, ninguém vai ser campeão no fim do ano se fizer mais pontos. As pessoas estão equivocadas.”

Melhora
Por outro lado, se o mercado da música sertaneja era o retrato da sociedade brasileira na representação de seus símbolos so­ciais, inclusive da reprodução do machismo, 2016 viu a mulher ganhar espaço. E com letras que falam de traição, bebida, festa e outros temas que antes só eram cantados por homens. A goiana Marília Mendonça está no todo da ala feminina do sertanejo, que tem entre as cinco canções mais escutadas de 2017 a música “Eu Sei De Cor”. Ela vem acompanhada da paranaense Naiara Aze­vedo, que se mudou para Goiânia. Naiara é dona do sucesso “50 Reais”.

Entre as faixas mais ouvidas em todo o Brasil está “Loka”, das coleguinhas Simone & Simaria, de Fortaleza (CE), com participação da funkeira Anitta. De São José dos Quatro Marcos (MS) vieram Maiara & Maraísa, que estouraram depois de gravar o disco Ao Vivo em Goiânia (2016). O que ninguém sabe responder é até quando vai esse sucesso do sertanejo universitário, que tanto soube se adaptar à necessidade do mercado da música, dominou o espaço de outros estilos e caiu nas graças do público. l