Produção agroecológica do MST abastece o mercado interno e chama a atenção do mundo

25 setembro 2022 às 00h00

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Em entrevista ao Jornal Nacional no dia 25 de agosto, o candidato à presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma defesa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que espantou alguns brasileiros. Para muitos, a imagem do movimento ainda está associada à invasão de terras e ao conflito rural, mas, à jornalista Renata Vasconcellos, Lula lembrou que o movimento é o maior produtor de alimentos orgânicos voltados ao mercado interno. Para entender a realidade e a atividade do movimento, o Jornal Opção visitou o Assentamento de Canudos, próximo a Palmeiras de Goiás, onde 314 famílias trabalham em 12.757 hectares de terra.
Origem de Canudos
Na manhã do dia 6 de outubro de 1997, a fazenda Palmeiras, da família de Colemar Rezende (então presidente da União Democrática Ruralista), foi ocupada pela primeira vez. 124 famílias usaram seus próprios recursos para reivindicar a área, que consideravam improdutiva. Por nove dias, fazendeiros, a Polícia Militar e políticos pressionaram pela saída das famílias, que eram apoiadas por religiosos dominicanos.
Hoje líder do movimento, Valdir Misnerovicz havia chegado recentemente ao estado, transferido do Rio Grande do Sul para ajudar na ocupação. Ele conta que, após três anos de pressão, quatro expulsões e retornos à fazenda, e uma detenção de 30 dias na delegacia de Trindade, a expropriação das terras e autorização da posse dos assentados finalmente foi aprovada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em janeiro de 2001. As análises do Incra concluíram que o latifúndio era improdutivo e os três proprietários foram indenizados em R$ 10 milhões (valor equivalente a R$ 60 milhões hoje).
O Incra determinou que 52% dos 12,7 mil hectares fossem destinados para Reserva Legal e Área de Preservação Permanente. Para a efetivação do assentamento de Canudos, as famílias beneficiárias assinaram o Termo de Ajustamento de Compromisso e Conduta, denominado TAC, proposto pelo Ministério Público, em que se comprometiam a preservar o meio ambiente e áreas naturais do assentamento.
Até 2016, Valdir Misnerovicz se dedicou à militância no MST e aos estudos, tendo concluído seu mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mas, naquele ano, durante processo de reintegração de posse de terreno ocupado da Usina Santa Helena, um incidente obrigou o líder do MST a retornar à Palmeiras de Goiás.
Apesar do acordo entre o proprietário do imóvel em Santa Helena e as famílias que o ocupavam, o proprietário autorizou o despejo de agrotóxico sobre a lavoura de milho agroecológico feita pelas famílias. O ato revoltou os acampados, e o tumulto resultou em um trator queimado. Foi a partir deste episódio que um juiz de Direito da comarca de Santa Helena determinou a prisão de quatro militantes, além de qualificar o MST como organização criminosa. Aquele foi o primeiro caso no Brasil de tentativa de enquadrar alguém na lei de organização criminosa (Lei 12.850).
Valdir Misnerovicz foi acusado dos crimes de esbulho possessório e formação de organização criminosa. Após ficar seis meses no presídio em Aparecida de Goiânia, Valdir Misnerovicz foi impedido de exercer qualquer atividade relacionada à manifestação ou mobilização política. Por isso, a direção do movimento sugeriu que o representante se assentasse em uma área sobrante de dez hectares em Canudos, para implementar a concepção de agroecologia como matriz produtiva que o movimento defende, sem agrotóxicos ou fertilizantes químicos.
Desde novembro de 2019, Valdir Misnerovicz se dedica a instalar o sistema agroflorestal (SAF), que reúne as culturas de importância agronômica em consórcio com a plantas que integram o Cerrado. Em 14 de setembro de 2021, o processo foi concluído e os acusados foram considerados inocentes. Com a absolvição, Valdir Misnerovicz ganhou novamente seus direitos políticos e hoje é candidato a deputado federal por Goiás, e tenta conciliar as atividades da campanha eleitoral com a manutenção da área, que batizou de Unidade Colmeia.

Unidade Colmeia
“Aqui temos o sistema de agrofloresta”, diz Valdir Misnerovicz, apresentando o local. “É uma combinação de plantas nativas e de alimentos. Bananeira, ipês, cravo, laranja, tamarindo, goiaba. Entre as árvores, temos a horta. Nessa couve, os pulgões atacaram. Combater a praga sem defensivos agrícolas; o que rendeu melhores resultados foi a urina de vaca e a pimenta malagueta. Também usamos como controle biológico as joaninhas e o bicho lixeiro (Chrysopidae), que comem os pulgões. Para a lagarta-cartucho e a lagarta-do-milho, usamos a microvespa Trichogramma, que parasita os ovos das pragas.”
A Unidade Colmeia adquire os insetos usados para controle biológico de laboratórios particulares interessados em testar a eficácia dos produtos. Institutos de pesquisas públicos também usam o local para conduzir pesquisas in loco. Há convênios com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Universidade de Brasília (UnB), Senac e agrônomos autônomos.
Apenas duas pessoas são responsáveis pela produção de 130 variedades de alimentos ao longo do ano e de 600 quilos de hortaliças, frutos e raízes semanalmente. Para sustentar a produção, o modelo escolhido foi o CSA (Commodity System Approach no original, ou Comunidade que Sustenta a Agricultura em uma versão brasileira). No modelo, consumidores pagam um valor mensal de R$ 180 para receber os alimentos orgânicos semanalmente.
“Temos atualmente 54 consumidores”, afirma Valdir Misnerovicz. “Distribuímos a produção na igreja São Judas Tadeu, em Goiânia, onde os próprios participantes levam suas cestas e podem pegar o que quiserem. O excedente é doado. Além disso, pedimos que os consumidores venham pelo menos uma vez a cada seis meses nos ajudar com a produção em um mutirão na Unidade Colmeia. O objetivo principal é conhecer o processo, trazer os filhos para ter contato com a terra. Acreditamos que o envolvimento com o projeto é uma etapa importante.”
Replicar o exemplo
Com área e força de trabalho restrita, Valdir Misnerovicz diz ter consciência de que a Unidade Colmeia é apenas exemplo prático do modelo defendido pelo MST. “Todo o esforço do Movimento com a reforma agrária é pela implementação da ecoagricultura, da agricultura familiar para abastecimento do mercado interno. É isso que o movimento defende em suas páginas online e seus documentos oficiais. Você nunca encontrará a defesa de químicos ou o incentivo à maior produção à custo do meio ambiente. Entretanto, o movimento não é uma seita e os agricultores são livres para fazer o que preferirem.”
Valdir Misnerovicz afirma que demais agricultores assentados agem com liberdade, sem necessidade de aderir a agroecologia, mas que a experiência bem sucedida da Unidade Colmeia é um incentivo. “Nosso aprendizado ajuda a desmistificar a ideia de que a sustentabilidade significa perda econômica. O pacotão de químicos em monocultura podem fazer sentido imediatista, mas em médio prazo esse modelo exaure o solo, desequilibra o ambiente, e inviabiliza a atividade para as próximas gerações.”

“A prova disso é o fato de que arrendatários de terra fazem monocultura de soja por alguns anos e deixam um deserto para trás em busca de novas terras”, diz Valdir Misnerovicz. “Cerca de 40% das terras agricultáveis do planeta hoje são inviáveis. Nós temos de refletir o que queremos deixar para as próximas gerações. O modelo agroecológico se sustenta economicamente e, ao contrário das monoculturas para exportação, faz sentido sustentável e social – para não falar na qualidade nutricional dos alimentos.”
O modelo agroecológico foi apresentado na COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, na Escócia, em 2021. Levado pelos pesquisadores da UnB que têm uma parceria com a Unidade Colmeia, o estudo de caso atraiu a atenção de representantes de países como a África do Sul. Por meio dos pesquisadores da UnB, o embaixador Vusi Mavimbela e o corpo diplomático sul africano entrou em contato com Valdir Misnerovicz e foi conhecer o assentamento. “Eles ficaram encantados, não só pela produção mas pela proteção ao meio ambiente. A África do Sul tem o potencial de aplicar o modelo a mais de 300 mil unidades de produção. Após as eleições, firmamos um compromisso de ir ao país apresentar o nosso modelo”, diz.
Políticas públicas
A Unidade Colmeia só deixará de ser um exemplo isolado de heroísmo para se tornar um modelo replicável quando houverem políticas públicas de incentivo, afirma Valdir Misnerovicz. Atualmente, agricultores optam pelo modelo convencional pelas facilidades de crédito e de financiamento para sementes, insumos, máquinas e terras.
“Cooperativas entregam agrotóxicos e fertilizantes para agricultores que se comprometem a retribuir parte da produção em sacas de soja – pronto, o fazendeiro fechou o negócio sem precisar gastar um centavo. Enquanto esse tipo de facilidade não existir para incentivar o modelo sustentável, o meio ambiente vai continuar sendo degradado.”
Um exemplo de alternativa é o que Valdir chama de transição agroecológica. A ideia consiste em oferecer maior representação no fundo de participação dos municípios (FPM) para as cidades que incentivarem a agroecologia por meio de secretarias municipais de agricultura, assistência e consultoria técnica aos agricultores. Concomitantemente, aportes financeiros regressivos são oferecidos em troca de parte da produção para a merenda escolar e outras finalidades.
Políticas semelhantes já foram implantadas no país. No Brasil, os programas que atacaram a fome diretamente foram o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Banco de Alimentos. Essas políticas tinham como princípio a aquisição de alimentos de produtores familiares e distribuição para a população em situação de insegurança alimentar.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) suspendeu os pedidos de investimento de agricultores familiares via Pronaf em abril de 2019 e apenas retomou parcialmente neste junho de 2022. O PAA ou Alimenta Brasil foi reduzido de R$ 586 milhões em 2015 para R$ 58,9 milhões em 2021.
Na última terça-feira, 20, António Guterres, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), afirmou em seu discurso de abertura da Assembleia Geral que o mundo está ameaçado por uma crise na produção de alimentos. Em função da guerra com a Ucrânia, a Rússia, maior fabricante de fertilizantes do mundo, reduziu sua exportação de insumos.
Valdir Misnerovicz afirma que a fome já é uma realidade no Brasil, e deve se acentuar. Segundo ele, os assentados são pressionados a arrendar suas terras para o plantio de soja para exportação e a produção de alimentos para o mercado interno está ameaçada. “Além disso, vivemos a maior crise ambiental da história. Quem pode nos apontar as soluções é a Ciência, que está sendo ridicularizada no Brasil. Se não revertermos esse quadro agora mesmo, as consequências serão graves. Eu sou mestre em Geografia, então seria cômodo ficar aqui olhando o quadro e escrevendo artigos, mas isso é pouco. Precisamos agir agora.”
