Relatos de um dos maiores sequestros de Goiás
19 novembro 2016 às 11h25
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No fim da década de 1980, o Estado parou para acompanhar as notícias do rapto de Said Agel Filho. 27 anos depois, veja como está o “menino Said”
Marcos Nunes Carreiro
A noite mal caíra sobre Goiânia e Said, acompanhado de seu tio Paulo, atravessava a calma rua do Setor Bueno onde morava com os pais, atendendo ao chamado de um amigo. Tendo chegado da aula de caratê há pouco tempo, ele achou que seria bom brincar um pouco. Os três estavam ali, no meio da rua, quando o Gol GTS grafite parou.
“Oi”, disse o homem de dentro do carro. “Nós somos amigos do seu pai e viemos te buscar. Ele está te esperando ali no bar”. “Mas meu pai está aqui em casa”, respondeu o garoto. O tio e muito menos o amigo de Said imaginavam o que iria acontecer e, por isso, nenhum dos dois teve tempo para reagir de maneira apropriada. O garoto foi puxado para dentro do carro, que arrancou e sumiu logo que virou a esquina.
— Quem são vocês? O que querem?
Sem resposta. Com um capuz na cabeça, jogado no assoalho do carro que parecia estar em alta velocidade, Said insistia nas perguntas, mas só ouviu a voz de um interlocutor quando disse que estava apertado e precisava ir ao banheiro.
— Faça aí mesmo.
Desesperado com a situação, o menino obedeceu, molhando a calça do kimono que ainda vestia. Não falou mais e a ordem cumprida foi tudo o que ouviu durante o trajeto de aproximadamente meia hora. O silêncio só se quebrou quando o carro foi desligado quase ao mesmo tempo em que um portão se fechou e as portas do Gol se abriram. Assustado, Said ainda precisou dar alguns passos no escuro para recuperar o direito à visão. Não que houvesse muito para ver: um quartinho, um colchão e uma janela. Era tudo o que ele veria nos próximos dias.
A essa altura, Said e Eneida Agel já sabiam do rapto do filho, informados por Paulo, o tio do garoto que viu toda a ação. Porém, o primeiro contato só veio no dia seguinte, quando um saco cheio de munição foi achado na porta da residência do casal, o que indicava que aquele ano de 1989 poderia não acabar bem. Dentro, um bilhete avisando do sequestro e informando que logo instruções seriam mandadas, o que de fato ocorreu ainda naquele dia com uma ligação. O menino estava bem, mas uma alta quantia de dinheiro deveria ser deixada, em um saco de lixo, dentro do “o” do letreiro do Shopping Flamboyant.
Demorou um pouco, mas a família Agel conseguiu levantar a quantia para atender à exigência. A operação foi feita. Porém, colocado o dinheiro no local indicado, policiais esperavam para ver quem iria até o local. Não demorou muito para que um indivíduo aparecesse e os policiais agissem, capturando-o. Era apenas alguém que havia parado para urinar e o erro policial quase causou um desastre. Contrariados, em nova ligação, os sequestradores avisaram: tudo dali em diante deveria ser feito sem a interferência da polícia, ou o garoto morreria.
O que eles não sabiam era que Said Agel, o pai, que era advogado e conhecia muitos delegados, ligou para os amigos da polícia assim que soube do sequestro e, àquela altura, uma estrutura já havia sido montada para encontrar Said Agel Filho. Mas já desconfiavam.
Certo dia, com as negociações ainda em andamento, Eneida atendeu ao chamado de alguém que batia à porta de sua casa e se deparou com uma loira querendo dar solidariedade à família. A mãe, embora tenha conversado com a mulher durante alguns minutos e recebido com gratidão suas bondosas palavras, fechou o portão sem saber quem era a pessoa com quem dialogara. Tratava-se da esposa de Escorpião, o líder da quadrilha que estava com seu filho. A mulher foi ao local sondar como estava as investigações do caso, mas saiu sem ter conhecimento de que muitos policiais estavam dentro da casa, trabalhando.
Durante todo o tempo, Said era mantido no quartinho em que foi colocado logo no primeiro dia do sequestro. Sua primeira ação, mesmo assustado, foi se livrar da calça molhada e ficou apenas com um short que vestia por baixo do kimono. Depois se deitou no pequeno colchão e lá ficou por muito tempo, até que uma mulher encapuzada entrasse com um copo de água e um pouco de carne com farinha seca. Depois que a sequestradora saiu, o garoto comeu sem saber que passaria muito tempo sem consumir mais nada a não ser água.
Na quarta-feira, 2 de agosto de 1989, um homem, encapuzado como a mulher do dia anterior, entra no quarto, dizendo que a ideia inicial era libertá-lo naquele dia, mas que os planos mudaram e, por isso, ele tinha que gravar um vídeo. A quadrilha tinha realmente a intenção de liberar o menino naquele dia, mas, na noite anterior, a entrega do dinheiro que foi deixado no letreiro do Shopping Flamboyant não funcionou e eles descobriram que a polícia estava a par do caso, embora não soubesse o quanto. Por isso suspenderam a libertação e deram início a um novo plano: pressionar ainda mais a família.
Assim surgiu a ideia do vídeo, que serviria para atender a uma reivindicação dos pais do garoto, que queriam uma prova de que ele estava vivo, e também para pressioná-los a entregar o dinheiro logo. O homem que estava no quarto com Said era chamado de Escorpião e chefiava a quadrilha. Ele viu que o garoto não passava bem e aproveitou a oportunidade.
— Fale pro seu pai que você está ruim, que está com febre e quer ir embora logo.
Said, que já não comia há algum tempo, realmente estava febril. Antes de gravar o vídeo, deram a ele um remédio para tirar a febre e depois ligaram a câmera. Naquele mesmo dia os pais receberam uma fita VHS que mostrava a imagem de um menino de nove anos, sujo e magro, chorando muito e pedindo para ir embora. Foi assim que as negociações foram retomadas e, mesmo depois de dias, não chegaram a um acordo.
Aproximadamente uma semana após o sequestro, a polícia conseguiu identificar, com o auxílio da empresa de telecomunicações do Estado, a Telegoiás, o local de onde estavam sendo feitas as ligações da quadrilha. Tratava-se de um telefone público nas proximidades do Hospital Neurológico de Goiânia, no Setor Bueno. Policiais enviados ao local para observar quem usava o aparelho, viram o momento em que um membro do grupo de sequestradores foi fazer contato com a família. Seguiram-no e descobriram a casa onde ele estava ficando, mas, sem o devido planejamento, renderam o indivíduo e acabaram iniciando uma intensa batalha.
A troca de tiros entre policiais e sequestradores, em plena luz do dia, foi longa e três dos sequestradores morreram. Um quarto, que estava chegando ao local no momento em que a polícia rendeu seu parceiro, viu os três serem mortos e, não sendo percebido, fugiu. Seu nome era Gilberto. Um policial levou um tiro de fuzil e, devido ao ferimento, precisou amputar a perna.
Quando entraram na casa, a polícia percebeu que não era aquele o local onde Said era mantido. Contudo, descobriram que os três sequestradores mortos, que estavam fortemente armados, eram irmãos e vinham do Paraná. Identificaram um deles como Escorpião, o líder da quadrilha, e no bolso de sua calça estava o cartão de uma empresa de aluguel de automóveis. Na empresa, a polícia descobriu que ele havia colocado um endereço de referência para alugar um Gol GTS. Nessa casa estava Said.
Enquanto os policiais planejavam o resgate do menino Said, Gilberto voltava para o cativeiro onde era mantido o sequestrado. Tendo visto toda a ação da polícia, ele estava irado, não apenas porque tinham descoberto um dos esconderijos da quadrilha, mas porque tinham matado seus três irmãos. Gilberto era o quarto de quatro irmãos, cujo líder era justamente aquele a quem chamavam Escorpião.
Assim, Gilberto entrou com violência no cativeiro.
— O que está acontecendo aqui?
— Vamo matar o menino! Vamo matar o menino! – disse Gilberto.
— O quê? Por quê?
— Mataram meus irmãos! Vamo matar o menino agora!
— Eu nunca matei criança, Gilberto! – disse uma mulher.
— Não, não vamo matar o menino! – disse outra mulher.
— Vamo sim! Mataram meus três irmãos!
Said, que ouviu toda a discussão, se desesperava dentro de seu cárcere, achando que iria morrer. Felizmente, para ele, Gilberto era o único que queria assassinar o refém, devido à morte de seus irmãos, e acabou convencido a não fazê-lo no momento. A noite foi tensa e, pela manhã, uma das mulheres entrou no quarto e entregou um copo de suco de laranja para Said. Ele desconfiou, pois nunca lhe haviam dado suco. Não queria beber, mas, pressionado, experimentou a bebida. De imediato, ficou tonto e parou.
— Toma esse suco! – ordenou a sequestradora encapuzada.
Com medo, voltou o copo à boca, mas no momento em que ia tomar o restante do suco envenenado a janela do quarto se estilhaçou e vários tiros foram ouvidos. O quarto onde estava sendo mantido foi inundado de balas, mas nenhuma atingiu Said ou à sequestradora, que pegou o menino e saiu com ele para a sala. Nesse instante, Said pôde ver o rosto de três homens, entre eles Gilberto, e da outra mulher. Pegos de surpresa, eles não tiveram tempo de colocar os capuzes.
A quarta-feira, 9 de agosto de 1989, foi um caos. Aquele era o primeiro sequestro no qual a polícia de Goiás se envolvia, logo, ninguém sabia como lidar com a situação. Como o caso tomou proporções nacionais, não apenas a polícia estava no local, mas também muitos jornalistas e todas as autoridades da segurança pública do Estado, que tentavam assumir o comando da circunstância. Em resumo, havia gente demais em frente àquela casa no Jardim América.
A libertação
No dia 1º de agosto de 1989, o Marcos Martins Machado se reapresentou à Polícia Civil de Goiás, voltando de uma licença-prêmio, e foi lotado na Delegacia de Investigação Criminal (Deic), uma delegacia que estava sendo remontada. A essa altura, o nome Said Agel Filho não saía das manchetes dos jornais e, por isso, era tomado como prioridade pela polícia.
Marcos, que era um delegado novo, mas que já levava certa fama por resolver homicídios, foi designado para resgatar o menino, mesmo sem ter nenhuma experiência em sequestro. Ninguém em Goiás tinha. Assim, em 9 de agosto, o dia que a polícia chegou ao cativeiro de Said, Marcos pegou uma equipe e seguiu para o local. Chegou a tempo de ver os policiais atirando e uma granada sendo lançada em direção ao cativeiro, o que causou o estilhaçar de uma janela.
Houve confusão. Após o cessar dos tiros, uma negociação foi iniciada, mas o conflito de poderes e a quantidade de pessoas no local atrapalhou o entendimento entre sequestradores e policiais. Marcos não conseguiu comandar a operação, afinal, seus superiores estavam lá e, portanto, nenhuma estratégia eficiente conseguiu ser elaborada. A negociação durou mais de 15 horas e, no fim, a situação acabou se tornando ainda pior.
Dentro da casa, os cinco sequestradores, três homens e duas mulheres, viraram sofás, mesas e todos os móveis possíveis para formar uma espécie de barricada para se defender de possíveis novos ataques da polícia. Sentaram-se todos no chão e Said foi colocado no colo de um dos homens, que ficou com uma arma apontada para a cabeça do menino durante todo o período que durou o cerco ao cativeiro. Com a TV ligada, eles podiam acompanhar toda a movimentação da polícia do lado de fora, que era mostrada ao vivo por todos os jornais da cidade. Foi assim que os sequestradores conseguiram evitar uma invasão tramada por uma equipe de policiais.
Depois de uma longa e improdutiva negociação, três jornalistas se ofereceram para tomar o lugar de Said, o que foi aceito pela polícia e pela quadrilha. Um carro-forte foi entregue aos sequestradores, junto com um resgate de 100 milhões de cruzados novos pagos pela família Agel. Por volta das 22 horas, quatro sequestradores e as três jornalistas já estavam dentro do carro-forte; faltava Gilberto. Ele ficou segurando o menino, a quem só soltou momentos antes de entrar no veículo e fechar as portas. Said correu em direção à multidão, foi amparado por um delegado e entregue aos pais. Ao fim de uma semana, Said estava finalmente livre.
“O caso Said foi um divisor de águas na polícia goiana”
À libertação de Said Agel Filho, seguiram fatos que beiram ao fantástico de Murilo Rubião e dos quais pouco se sabe de fato. Após libertarem o menino, os sequestradores fugiram, com três reféns, em um carro-forte. Tentaram entrar no aeroporto de Goiânia, mas foram impedidos e a perseguição se arrastou pelas estradas de São Paulo até chegar ao Paraná. O motorista do carro-forte foi abandonado no caminho quando a quadrilha descobriu que se tratava de um policial de Goiás.
Apenas no Paraná os sequestradores soltaram os reféns, quando entraram em um avião e partiram rumo ao Paraguai, de onde foram repelidos a tiros. Voltaram para o Brasil, pousaram em Toledo (PR), roubaram um carro e tentaram novamente fugir para o Paraguai. Daí em diante já não há clareza sobre a história.
A polícia descobriu, depois, que a quadrilha foi atraída para Goiás depois de ler uma reportagem publicada na revista “Veja”, em 1989, que falava sobre o desenvolvimento da capital goiana. O título da matéria era “Goiânia, a Dallas brasileira”. Isso fez com que os criminosos pensassem que Goiânia era uma cidade onde havia muitos ricos e que seria, portanto, um excelente lugar para a realização de sequestros.
Os sequestradores se mudaram para Goiânia e passaram a monitorar a família Agel. Said relata que, nas ligações feitas pela quadrilha, antes que o esconderijo fosse descoberto e três dos criminosos fossem presos, eles explicaram superficialmente como chegaram a ele. “Um dos critérios usados para me sequestrar foi o fato de minha mãe aparecer muito, na época, em colunas sociais. Eles vinham nos monitorando há tempos e sabiam que eu era o único filho homem da família. Chegaram a dizer em uma das ligações: ‘Pegamos seu único filho homem’”. Said tem uma irmã mais velhas e duas mais novas.
Depois, vendo as fotos dos sequestradores, Said conta ter percebido que já tinha os visto antes. “Antes do sequestro, alguns deles conversaram comigo no zoológico. Então, eles já estavam seguindo os meus passos e me sequestraram quando tiveram oportunidade”, conta o hoje coordenador do programa Cidadão Participativo da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego).
Formado em Direito pela Universidade Paulista (Unip) e servidor da Alego há 12 anos, Said recebeu a reportagem e, com calma, contou toda a sua história. Com 36 anos de idade, casado com a psicóloga Ana Lídia e pai de dois meninos, Said Agel Neto e João Rafael Said, de 6 e 4 anos, respectivamente, ele conta que, após o sequestro, ele ficou muito traumatizado e que tinha medo de tudo.
“Na primeira noite que dormi em casa, minha mãe apagou a luz e eu acordei de madrugada querendo que acendessem a luz para eu ter certeza de que estava em casa. Eu já saía na rua com medo e eu não consegui conversar com as pessoas. Tentei fazer acompanhamento psicológico, mas desisti na primeira sessão. Foi tanta pressão, que eu saí pior. Mas Deus me enviou uma psicóloga, que é minha esposa, e que cuida de mim”, diz sorrindo.
Membro da Igreja Videira, ele atribuí a cura de seus traumas à sua aproximação de Deus e da igreja e diz: “Vi o agir de Deus em toda essa história. Às vezes, as pessoas veem a minha história como tragédia, mas eu vejo como livramento e que Deus usou isso para me resgatar e me mostrar o Seu amor. E, por meio desse amor, eu fui me libertando de muitos traumas que estavam enraizados em mim”.
As consequências do caso
Atual secretário de Articulação Política da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), o delegado Marcos Martins Machado é, ainda hoje a maior referência quando o assunto é sequestro. Na época, admite, ele não tinha nenhuma experiência. Ninguém tinha. E essa falta de expertise fez com que muitas coisas saíssem erradas.
Por isso, logo em 1990, um ano depois do caso Said Agel Filho, Marcos se inscreveu no primeiro curso dado no Brasil voltado para o assunto, disponibilizado pela Academia Nacional de Polícia, na Polícia Federal, em Brasília. Lá, recebeu suas primeiras instruções sobre, por exemplo, gerenciamento de crises e resolução de crime de extorsão mediante sequestro. Foi a primeira turma do curso, que contou também com alunos de outros países.
Desde então, Marcos se especializou no assunto, chegando a fazer junto ao Federal Bureau of Investigation (FBI), nos Estados Unidos. O resultado dos cursos foi o aprimoramento das polícias goianas. Marcos afirma:
“No serviço público, você tem que aprender e passar para frente. Foi por isso que eu formei o Grupo Antissequestro, o Grupo Anti-Roubo a Banco e o Grupo Tático 3 (GT3). Se tivéssemos esses grupos na época, a situação não teria se agravado como aconteceu. Não teríamos trocado um refém por três, Said não teria saído correndo como ele fez e o que foi um risco danado de morte. E tudo isso só foi possível porque eu estava lá no dia e vi as deficiências da polícia nesse caso. Por isso eu digo que o Said foi um divisor de águas na história da Polícia Civil de Goiás. O caso fez com que as autoridades da polícia goiana buscassem preparar melhor os seus quadros. Eu fui atrás e me preparei. Hoje, estamos prontos”.