Tanisha Laquanda, em seu processo de montagem | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

Matéria publicada originalmente em 26 janeiro 2020*

“Don’t be a drag, just be a queen”, já cantava a diva pop norte-americana Lady Gaga em seu hit Born This Way. Numa tradução livre, algo como “Não se esconda, apenas seja uma rainha”. E para quem performa nas noites como uma “rainha que não se esconde”, a expressão é levada ao pé da letra. O termo drag queen pode ser definido como uma expressão artística onde um indivíduo, normalmente do sexo masculino, se traveste de mulher recorrendo a salto alto, maquiagem forte, roupas chamativas e exageradas com muito brilho e o máximo de adereços possíveis.

Mas não pense que a arte drag é uma modinha passageira que surgiu repentinamente com a Pabllo Vittar. O termo “drag” teve origem no teatro dos EUA no ano de 1870, e era usado para descrever atores que se vestiam com roupas do sexo oposto. Já no Brasil, os precursores desse tipo de arte apareceram nos idos anos 1970 em pequenos grupos com as chamadas transformistas.

Hoje em dia, as drag queens estão totalmente sob os holofotes. Elas se montam e saem na noite armadas de piadas ácidas, gargalhadas, muito glitter e talento para passos sincronizados e dublagem de divas pop. Roniel Xavier, de 24 anos, é uma delas. O rapaz de corpo esguio e tatuado vive em Goiânia com a mãe aposentada e o irmão, e conforme vai chegando a noite de sexta-feira, a maleta de maquiagem se abre, a peruca começa a ser preparada e surge Tanisha Laquanda, uma das drags que reinam nas noites LGBT da capital goiana.

A jovem Tanisha se define como uma fashion queen espalhafatosa. Em cima de um salto agulha, trajando um look de ofuscar globo de vidro e usando uma peruca metade loura metade verde, ela se apresenta em boates e espaços de eventos em Goiânia com performances que misturam comédia e o famoso lip sync (interpretação artística em que a drag dubla uma música, geralmente pop, enquanto dança).

Tanisha considera sua personagem seu verdadeiro ‘eu’. Uma de suas principais inspirações é o reality show Rupaul’s Drag Race, programa norte-americano onde um grupo de drags competem entre si por um prêmio de 100 mil dólares. Talvez possa ser a fonte inspiradora de seu sonho. Tanisha almeja, um dia, apresentar um talk show. Para ela, além de (única) profissão, fazer drag “é tudo, é seu mundo”. Quando sai montada para a noite, não existe hora ou dia de voltar para casa. “Uma vez saí de casa na quinta-feira e só voltei na segunda. Viro a noite, durmo na casa de amigas, é assim”, revela. Apesar de ter assumido a homossexualidade aos 15, Tanisha existe há quatro anos, quando Roniel começou a se montar. No início da carreira, ela foi ajudada pela sua mãe drag Beelina Marhuá. Essas “mães” iniciam as jovens drags na ‘noite’, dando dicas de maquiagem, performance, comportamento, conselhos, tudo o que uma queen precisa saber quando começa. “Ela [Beelina] me ajudou desde o começo: como por a base, como arrumar a peruca, a roupa, tudo”, relembra Tanisha.

“Drag é meu mundo, é tudo pra mim”, diz Tanisha | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

A drag conta que a mãe, com quem mora, além de aceitá-la, deu total suporte desde o início. Ela lembra da ocasião em que revelou ser drag queen, e a reação confusa e ao mesmo tempo receptiva da mãe. “No começo ela ficou em dúvida, porque ela não sabia o que era. Ela me olhou assim e perguntou “Quê que é isso?”. Eu expliquei direitinho pra ela, e hoje ela me apoia demais”, conta. Com ternura, Tanisha fala sobre a primeira vez que a mãe a viu se apresentar. “Eu escolhi um lugar bem grande, um evento grande pra levar ela, foi numa chopada. Lembro que eu estava lá, me apresentando, todos aplaudindo e ela no cantinho, assistindo e filmando pelo celular. Depois da apresentação, ela chegou em mim e me parabenizou. Foi um dos melhores dias da minha vida”.

Entretanto, nem tudo é glamour e brilho no mundo drag. A desvalorização da classe e as dificuldades da profissão são alguns dos empecilhos que fazem com que, segundo Tanisha, o cenário drag esteja em queda. Em meses bons de agenda cheia, ela revela que chega ganhar cerca de R$ 2 mil. Porém, há outras que se apresentam esporadicamente para perceber um rendimento de R$ 600 por mês. “Existe muita desvalorização, muita ignorância do que a gente faz. Tem gente que quer nos contratar para animar a festa, fazer apresentações e nos pagar com bebidas, por exemplo. Eu amo o que eu faço, mas o que eu faço é caro. Eu tenho perucas de 800 reais, as coisas de drag não são baratas”, desabafa.

A exposição ao mundo das drogas

Quem se aventura pelo esplendor da noite está sujeito a todo tipo de situação – boas e ruins, prazerosas e perigosas – e a exposição, com consequente uso, às drogas ilícitas é uma dessas que podem parecer prazerosas mas que não acabam bem.

Tanisha expõe que é praticamente inevitável trabalhar na noite e não ter contato com entorpecentes, direta ou indiretamente. Em uma rede social, a drag revelou que já teve contato com alguns tipos de drogas em boates que se apresentou, e que algumas de suas experiências terminaram de forma desastrosa. Segundo ela, o uso de drogas acaba acontecendo tanto pela exposição contínua às substâncias quanto pelo “preço mais em conta”. “A droga custa vinte reais e a bebida sessenta, pra começar a ficar bêbada. Então você fala ‘vou ficar doida com vinte em vez de ficar com sessenta’, e você acaba experimentando droga. Trabalhando na noite, muitas vezes te oferecem de graça”, relata.

Em uma de suas noites como drag, Tanisha recorda como ficou ao usar uma droga conhecida como “key”, substância sintética oriunda de um anestésico normalmente aplicado em cavalos. “Eu fui andando na boate segurando nas paredes, até que achei uma amiga, segurei no braço e disse ‘me ajuda, que eu to no buraco!’ Vomitei, fiz um ‘regaço’, acabei com tudo. Foi horrível”.

Quando olha para as experiências passadas, Tanisha faz um alerta e põe na balança os riscos do uso de entorpecentes: “Quando eu conto, é engraçado. Mas quando acontece, não é. É uma experiência de quase-morte e, possivelmente, morte. Dá medo. Tem toda uma juventude, gente de 15, 16 anos, que está entrando no mundo da noite agora, e espero que eles não passem por isso. Não queiram passar por isso, não é engraçado. Não romantizem drogas, não é uma coisa legal”, conclui.

Preconceito existe tanto no mundo heterossexual quanto no mundo gay

Quem vê Wellington Oliveira, de 26 anos, andando pela rua com seus 1,93 de altura talvez não imagine que, aos fins de semana, os traços másculos do rosto do rapaz são cobertos por blush, batom e máscara de cílios. O jovem alto e corpulento é Fiorella, uma drag que também faz sucesso nas noites LGBT de Goiânia.

Fiorella é o que se chama de beauty queen, ou seja, “rainha da beleza”, um tipo de drag que trabalha mais com o impacto visual, e não comedy queen, voltada para a comédia e piadas ácidas. Fiorella existe há dois anos mas, ao contrário de Tanisha, não é ela quem paga as contas do rapaz por trás da maquiagem. Wellington é maquiador profissional e, segundo ele, faz da arte drag um hobby.

Ela conta que quando revela para alguém que é drag queen, a incredulidade é instantânea. “As pessoas acham que to brincando, falam que não acreditam. Então mostro uma foto e a pessoa diz que jamais imaginaria, porque ela [Fiorella] não parece nada comigo [Wellington]. Acho que é porque está atrelado àquela coisa de o gay que faz drag, automaticamente tem que ser gay afeminado”, diz.

Assim como Tanisha, Fiorella deixa claro que apesar do brilho e da diversão, para estar no mundo drag é preciso ser forte e saber lidar com os infortúnios da área. O preconceito é um deles. Ela narra que certa vez estava indo de uma balada para outra junto com uma amiga num carro de aplicativo, quando experimentou uma situação de intolerância. “A gente estava rindo muito, conversando muito no banco de trás, e aí ele encostou num posto de gasolina, mentiu que estava passando mal, porque no começo da corrida ele parecia bem, deu essa desculpa e perguntou se a gente não se importava de descer. Daí deixou nós duas ali no meio da rua, num posto de gasolina, e saiu cantando pneu. Claramente ele estava irritado com aquilo”, recorda.

Porém, o preconceito contra o mundo drag não está restrito aos heterossexuais. Fiorella expõe que ele também existe no meio gay, o que acaba afetando a vida sentimental dessas artistas. “Às vezes eu conheço um cara, rola um clima massa, a gente se vê algumas vezes e eu conto que faço drag. Depois disso, eu nunca mais vejo essa pessoa. Eles tentam fingir na hora uma reação de que ta tudo bem, mas depois não dão continuidade [na relação]. E isso é de praxe”, conta. Entretanto, Fiorella é categórica ao afirmar que não cede a caprichos, e quando há a necessidade de escolha entre fazer drag ou a exigência de algum affair, a resposta é óbvia: “Não vou deixar de me montar porque alguém não consegue lidar com isso”.

Quanto ao ato de fazer drag, Fiorella resume como seu “momento de criar”. “Eu levo em torno de 50 minutos pra maquiar uma cliente, e a minha maquiagem eu faço em duas, três horas. É um momento pra mim. Eu não me sinto mulher, eu não quero ser uma mulher, mas é um momento exclusivo pra fazer algo que eu gosto”, explica. Para ela, uma drag tem êxito quando ela se desvencilha totalmente da imagem dela de homem.  “Eu vejo que eu consigo isso, consigo construir um novo rosto em mim, e isso é muito gratificante. A drag é algo que ninguém consegue tomar de mim”, arremata.

Drag queen, travesti e transexual: entenda a diferença

Apesar de, para leigos, drags, travestis e mulheres trans aparentarem ser “aspectos” distintos da mesma coisa, elas definitivamente não são, e há gigantescas diferenças entre uma e outra.

Doutora em Antropologia e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Luciene Dias ajuda a compreender o que é o quê. Ela explica que a trans é uma mulher que não nasceu com o órgão feminino, mas que passou pelo processo de transgeneridade uma vez que se mostrou com a identidade de gênero feminina em todos os outros aspectos. “A pessoa trans possui uma orientação que a conduz a provocar modificações mais estruturais [em seu corpo]. É uma questão mais ligada à existência”, descreve.

Já a travesti, segundo Luciene, vigora num processo em que a mesma “rejeita a percepção binária, e trabalha o seu corpo mais no campo da performance de gênero”. Apesar de ser definida com uma identidade de gênero feminina, a travesti não sente desconforto em manter sua genitália masculina.

A drag, conforme explicado pela professora, chega como performance artística, com a necessidade de publicizar a feminilidade de gênero. Porém, Luciene enfatiza que isso não está necessariamente ligado à sexualidade e ao gênero, mas sim à uma forma de arte. Ou seja: apesar de o público drag ser composto por homens gays em sua maioria, mulheres e homens heterossexuais, caso tenham talento, também podem se aventurar pelo mundo dos saltos exagerados, maquiagens com glitter e roupas ao estilo “cabaré”.