Queda da audiência da TV Anhanguera pode ser um problema definitivo

07 abril 2019 às 00h00

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A TV Record cresceu em Goiás, e até supera a concorrente. Mas o problema da emissora do Grupo Jaime Câmara vai além da disputa local, dizem especialistas
Ana Luíza Andrade
A crise que assombra a TV Anhanguera já há alguns anos, está com cara de um dramalhão mexicano sem solução. Mesmo após a reformulação dos programas da emissora e a tentativas frustradas de se aproximar mais do público, a afiliada da Rede Globo ainda sofre para manter a reputação de outrora, quando reinava com folga nas casas goianienses.

A Record TV Goiás está no encalço da liderança, na média das 7h às 24h, na praça de Goiânia. Os dados do instituto de pesquisa Kantar Ibope Media, atualizados no período de 1 de janeiro a 27 de março deste ano, revelam que a emissora está a 1 ponto de distância da afiliada da Rede Globo.
A Record TV fecha o período com 9 pontos de audiência domiciliar, contra 10 pontos da TV Anhanguera e 8 pontos da TV Serra Dourada. A diferença de apenas um ponto entre uma concorrente e outra expõe a vulnerabilidade da audiência, que sofre oscilações diárias, e divide a preferência do telespectador.
Vencida pela TV Record
Na programação local os dados favorecem ainda mais a Record TV Goiás, que consolidou jornais líderes de audiência, como o “Balanço Geral-Goiás”, apresentado por Oloares Ferreira, que impera isolado em sua faixa horária de exibição. O mesmo acontece com o programa apresentado por Silvyê Alves, no “Cidade Alerta-Goiás”, que sai na frente com uma vantagem ainda maior de audiência: cerca de 5 pontos em relação a segunda colocada — a TV Anhanguera.

O tradicional jornal de bancada da emissora, o “Goiás Record”, apresentado pela dupla Fernanda Arcanjo e Carlos Magno, vence a disputa com cerca de 3 pontos à frente da segunda colocada. Já os demais jornais locais da emissora seguem na vice-liderança, bem próximos da primeira colocada.
Embora a TV Anhanguera ainda se mantenha no topo na média geral, as oscilações diárias dentro da própria grade expõem a fragilidade de uma hegemonia em franca decadência. Os espectadores mudaram, a televisão não é mais a mesma e a emissora, que costumava ostentar uma bandeira suntuosa de campeã, agora arfa para se manter à frente da disputa acirrada por audiência. Qual a origem desta crise e qual a dificuldade da emissora para se adaptar à nova realidade?
Fenômeno globalizado e posicionamento
Especialistas concordam que o movimento não é apenas local, mas um fenômeno global explicável pela mudança de oferta e consumo dos produtos audiovisuais. No Brasil, o acesso maior a tevê por assinatura, a democratização da internet e a popularização dos serviços de streaming são os principais fatores apontados pelo encolhimento da audiência da televisão aberta. Em âmbito regional, o fenômeno da TV Anhanguera também pode ser observado em outras praças da Rede Globo, como São Paulo, Bahia e Brasília.
Ou seja, o cardápio da concorrência televisiva aumentou substancialmente e agora todas as emissoras lutam para oferecer o “melhor” prato aos consumidores que se mantêm fiéis. Para tanto, é preciso conhecer o cliente e apresentar a refeição à moda do freguês.

A professora Ângela Teixeira de Moraes, doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ressalta que as emissoras locais disputam o mesmo público alvo. “A TV Anhanguera tinha um público que era mais a classe média e a classe alta. Esse público migrou rapidamente para outras fontes de informação. Aí o que resta pra TV Anhanguera? Ela tem que buscar um público que não era dela. E esse público já tinha sido construído pela TV Serra Dourada e pela TV Record.”
A intimidade da Record Goiás e da TV Serra Dourada com as classes C, D e E é uma pedra no sapato da TV Anhanguera, que sofre para tentar agradar o público e, ao mesmo tempo, o padrão impessoal da Rede Globo. É justamente este suposto anacronismo global que revela a falta de perspectiva das afiliadas em relação à nova realidade do mercado. O que fazer? Dizem que o cliente tem sempre razão, mas o paradoxo patrão-empregado-cliente parece ser mais delicado e amplo.
O publicitário e marqueteiro Marcus Vinícius Queiroz (ajudou a eleger um presidente na Colômbia) destaca a falta de posicionamento e personalidade da empresa da família Marinho, que desencadeia uma desorientação generalizada nas emissoras locais. Na visão do publicitário, a TV Anhanguera até tenta copiar, superficialmente, o roteiro sensacionalista das concorrentes, “embora não tenha nem conteúdo editorial nem ancoragem para isso”.

É o “nem cá, nem lá” — que confunde e incomoda o telespectador. “O apresentador Oloares Ferreira, por exemplo, domina o jornalismo popular e consolidou um tipo de personalidade-identidade no programa ‘Balanço Geral’. A jornalista Silvyê Alves também reforça o posicionamento do jornalismo que a Record implantou. O SBT apostou muito num tipo de jornalismo, se posicionou e não mudou. Então também está colhendo essa falta de personalidade — como a TV Globo”.
A professora Ângela Moraes acrescenta que a identificação do telespectador com a Record Goiás e a TV Serra Dourada está mais próxima do paladar das classes que rendem audiência para as tevês abertas, em função da experiência que essas emissoras cultivaram nos últimos anos. A principal disputa acontece nos telejornais exibidos ao meio-dia.
“Os profissionais da Record e do SBT são muito mais comentaristas — ao passo que na TV Anhanguera os comentaristas são mais comedidos. Essas duas outras emissoras têm um know-how um pouco mais superior que a própria TV Anhanguera. Ela trabalha com os mesmos funcionários, desde a época que era mais classe média e classe alta, faixas B e A. Então elas têm muito a se adaptar ainda neste processo”, postula a professora da UFG.

O jornalista e publicitário Rosenwal Ferreira corrobora a tese da falta de familiaridade da afiliada global com o público alvo e atribui a debilidade da emissora à escolha de seus profissionais. “A TV Anhanguera cometeu um erro de avaliação ao trazer profissionais de fora que não conhecem, com profundidade, os humores, o equilíbrio, o jeito de ser do goiano. Nós temos regionalização e expectativa particulares —que são diferentes das dos Estados fronteiriços. Os profissionais de fora, embora excelentes, não conhecem o jeito local, e por isso há um distanciamento de informação, de análise, que não tem caixa de ressonância na comunidade”, pontua Rosenwal Ferreira, que apresenta um quadro no “Balanço Geral”.
Outro ponto importante destacado pelo jornalista é o investimento. Rosenwal Ferreira aponta que, onde a TV Anhanguera falhou, a Record Goiás “percebeu e entrou na gaveta”. Enquanto a concorrente realizou grandes investimentos, tanto na infraestrutura quanto na folha de pagamento, o Grupo Jaime Câmara deixou de aplicar na própria rede.

“Quem entra no estúdio da Record vê um jornalista atrás do outro. Percebe que a emissora está ebulição — com todo mundo trabalhando feliz e ganhando bem. Na Serra Dourada, [há] um estúdio um pouquinho melhor, mas com poucas pessoas na redação, muitos trainees, muita gente começando. Já na TV Anhanguera, do Grupo Jaime Câmara, pode-se verificar que o estúdio está defasado, há pouquíssimas pessoas na redação e o pessoal está desmotivado. Frise-se que tenho respeito tanto pela empresa quanto por seus funcionários”, relata Rosenwal Ferreira.
Ângela Moraes concorda com a questão do investimento e aponta que a solução está na contratação de novas pessoas, que atendam a ao perfil diferenciado que o mercado está exigindo. “Embora o padrão Globo não permita que a tevê se aproxime tão igualmente do estilo jornalístico da Record. Tem esse ‘senão’ — que resulta num jornalismo mais comedido.”
Internet e concorrência acirrada
Uma cena comum nos dias de hoje: jovens sentados em frente à televisão ligada. A energia a toda, o programa rolando, um jornalista inconformado tenta chamar a atenção da “galerinha” de casa: há um buraco na rua X, a fila no cais de algum posto de saúde dá voltas no quarteirão, é hora da xepa! E nada. Por algum motivo, a plateia do sofá parece dispersa, distante, desconectada da programação. Está concentrada demais com alguma coisa no celular. Os dedos deslizam na tela, a televisão não encontra resposta. O jovem incomodado com os gritos do apresentador desliga o equipamento e coloca uma música. A internet, sem alarde, conquista mais uma vez o coração da rapaziada.

É perceptível. O consumo de audiovisual dos jovens é outro. Redes sociais, bate-papos, serviços de streaming, como Netflix e Popcorn… A lista é inquestionavelmente ampla frente à limitação das tevês abertas. Até mesmo das tevês fechadas, que, apesar de sua versatilidade, não parecem páreo para a variedade encontrada na internet — que é uma espécie de “loja” de tudo (como a Amazon).
A disputa pelos telespectadores — os que sobraram — mostra-se dura, inclusive dentro das próprias redes (observe-se que o “Em Pauta”, da GloboNews, começa a fazer sombra para o “Jornal Nacional” — e ambos são da Rede Globo).
A diferença é que, na tevê, um canal exige muito mais atenção que a web, na qual o indivíduo pode navegar entre uma aba e outra em uma fração de segundos. Na internet, os olhos consomem a informação sem exigir muita energia do espectador.
Ângela Moraes vai além e adianta que, em breve, “a gente vai ver uma redução de audiência em todas as tevês de uma maneira geral”. A professora-doutora estima que, “dentro de vinte anos, nós vamos ter um formato completamente novo”. A audiência, portanto, será cada vez mais baixa — e, sim, de todos, não só da Globo e da TV Anhanguera. O “mundo novo” terá uma audiência mais compartilhada e, portanto, menos elástica para a rede “A” ou “B”.
Se antes a televisão era única e sem concorrentes — “reinava sozinha e soberana” —, hoje a realidade mostra-se desfavorável. “A oferta e a audiência são muito diversificadas, e a atenção do público fica muito dividida”, constata Ângela Moraes.
Marcus Vinícius observa que “todas as pesquisas indicam que o público de 16 a 24 anos não assiste televisão aberta”. O publicitário amplia o debate e aponta outros motivos para a mudança no comportamento do telespectador, que se afastou da Rede Globo e de suas afiliadas. Dentre os pontos levantados, Marcus Vinícius aborda o resgate do discurso moralista da família e considera que o modelo de jornalismo global “vive um fim de ciclo”.
“As novelas estão sendo questionadas pelo neo-moralismo brasileiro — em todos os aspectos. A Record apresenta temas mais ‘família’, temas bíblicos… A novela que conta a vida de Jesus, por exemplo, se encaixa um pouco no que o telespectador está buscando na televisão. A programação de Telecine da Globo é a mais defasada do mundo. Então, se quer assistir um filme , a pessoa recorre à Netflix, a outro segmento, e até mesmo às televisões fechadas. Uma análise da programação da Globo, da Record, do SBT e da Band indica que a Globo está perdendo até no futebol”, assinala Marcus Vinicius.
Rosenwal Ferreira observa que há um clima de hostilidade em relação à empresa da família Marinho nas redes sociais. Apesar de reconhecer a relevância da emissora para o campo midiático, o jornalistas sublinha que a Rede Globo falhou ao não compreender “os humores da nação” e atua “na contramão do que grande parte da população brasileira pensa”.
“As pessoas começaram a ficar com ojeriza do padrão globo de expressão. O ingrediente extra é a dificuldade de a própria Globo se encaixar no pensamento de boa parte da sociedade brasileira, que começou a ter uma visão um pouco mais conservadora da conjuntura nacional, uma posição anti-esquerda. A Globo entrou em rota de colisão com o país”, argumenta Rosenwal Ferreira. “A sociedade migra para a direita e a rede da família Marinho desvia-se para a esquerda.”
Essa inflexibilidade da emissora, na opinião do jornalista, se trata, na verdade, de uma confusão de audiência com credibilidade.
“Perde-se e ganha audiência. Mas audiência nem sempre significa sucesso consolidado. Existem programas com baixíssima audiência e grande credibilidade. Perder credibilidade é uma coisa muito difícil de ser recuperada. A Globo, mais do que perder audiência, perdeu credibilidade junto a expressiva parte da população. E, insisto, recuperar a credibilidade é uma das coisas mais difíceis que existem no jornalismo”, sugere Rosenwal Ferreira.
Celular “devora” televisão
A televisão ainda ocupa um lugar de destaque na sala de estar dos brasileiros. A disposição dos móveis, o sentido e a orientação do próprio ambiente, tudo ainda é organizado ao redor do equipamento, que já foi considerado o grande coração do lar, onde a família reunida aglomerava-se, pelo menos uma vez por dia, para compartilhar um momento de interação que fosse.
O horário do jornal — sobretudo o “Jornal Nacional”, uma espécie de “Voz do Brasil” do setor privado — era sagrado. Como uma missa, as oito em ponto, milhões de brasileiros, em comunhão respondiam mentalmente ao “Boa noite” do apresentador. A televisão reinava absolutamente sozinha. A cada ano, novos modelos, dispositivos e programas indicavam que a máquina continuava nova. Sempre jovem, se reinventando. Ninguém parecia forte o suficiente para tomar seu lugar.
Sorrateiramente, a internet ganhou espaço na vida das pessoas — e, claro, não só no Brasil. Nossa família, nossos amigos, os contatos profissionais, todos estão lá, ativos, navegando na rede. A um toque da interação instantânea. A televisão ainda está no mesmo lugar, ocupando um lugar de destaque no ambiente, mas nossos olhos agora dividem-se entre a tela do celular e o som da tevê, que fica cada vez mais distante, como um aperitivo a que recorremos vez ou outra ao lembrarmos da fome.
A maneira como consumimos a informação evoluiu. Não estamos mais interessados apenas na qualidade do conteúdo, mas na experiência oferecida. Quem vende mais? O cardápio da internet é avassalador. Dividimo-nos entre páginas. Em cada uma delas, encontramos uma mídia diferente. A verdade é que o espectador cansou de ser apenas um mero telespectador. Não quer apenas receber a informação passivamente, mas compartilhá-la, criticá-la, debatê-la. A informação, hoje, está nas mãos do consumidor. Nossos dedos representam poder, faturamento. O controle remoto já não tem o mesmo apelo. Já o celular…