Proposta no Congresso muda radicalmente a polícia brasileira

17 abril 2014 às 14h34

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Projeto prevê a desvinculação das polícias militares das Forças Armadas por meio da desmilitarização, carreira única, ciclo completo e ouvidorias independentes. Segurança pública será pauta certa do debate eleitoral nas eleições presidenciais

Frederico Vitor
Em tempo em que a violência atinge patamares alarmantes, não há dúvida de que as mazelas da segurança pública estão entre os problemas que mais afligem os brasileiros. Prova disto é que desde 2012 são registradas taxas superiores a 50 mil assassinatos anualmente no Brasil. Fatalmente, a criminalidade terá largo espaço no debate eleitoral deste ano e, em meio as discussões acerca do tema, surge a velha ideia de readequação ou transformação do aparato policial. Uma destas medidas é a Proposta de Emenda Constitucional 51 (PEC 51), que visa alterar radicalmente a configuração atual das polícias, como por exemplo, a desmilitarização da Polícia Militar (PM) e sua fusão com a Polícia Civil, além de autonomia para os municípios criarem suas próprias corporações policiais.
O projeto é de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) — pré-candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro —, e contou com o auxílio de Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, antropólogo e autor de vários estudos e livros na área de segurança pública, dentre eles o sucesso editorial “Elite da Tropa”, obra que deu origem aos filmes Tropa de Elite 1 e 2, campeões de bilheteria do cinema nacional.

O fim das fardas, dos quartéis e da rígida hierarquia similar ao do Exército é o item da proposta que mais gera polêmica. A desmilitarização da PM é um clamor existente nas fileiras das PMs, principalmente em meio aos praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes), que compõem o grosso da tropa — os oficiais pensam o contrário. A PEC 51 prediz que o Estado deve organizar as polícias como órgãos de natureza civil, cuja função é garantir os direitos dos cidadãos, atuando ostensiva e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal. Noutras palavras, fim da PM e a fusão de seus quadros com a Polícia Civil, gerando uma nova corporação. A nova polícia trabalharia em ciclo completo, ou seja, passaria a fazer todo o circuito policial: policiamento ostensivo, preventivo e investigativo.
Atualmente no Brasil, a Constituição Federal dispõe sobre duas corporações policiais estaduais de ciclo incompleto, prevendo o exercício da polícia judiciária pelas polícias civis e a função de polícia ostensiva e preservação da ordem pública para as PMs. O ciclo completo de polícia é o fluxo da operação policial que se inicia com o atendimento de uma ocorrência criminal, passando pela produção de todos os documentos, provas e diligências necessárias. O trabalho é concluído pela polícia e posteriormente entregue à Promotoria Pública, que oferece a denúncia à Justiça, ou seja, com o promotor processando e o magistrado — juiz de Direito — julgando o criminoso.
Nas condições atuais, tanto a PM como a Polícia Civil atuam de forma isolada, tendo como único contato o momento da apresentação dos presos em flagrante pelos policiais militares nas delegacias da Polícia Civil, para as providências de polícia judiciária cabíveis.
Carreira única
Há também um ajuste que prevê a instalação de uma carreira única. Para o agente de segurança pública chegar ao topo da hierarquia deve, primeiramente, começar sua carreira pela base. Hoje, na PM, há duas carreiras distintas, divididas entre oficialato e praça. Os oficiais são incorporados pelas academias de polícia militar, cujo curso varia de dois a quatro anos, dependendo do Estado.
O indivíduo começa como cadete durante fase acadêmica e se lança no seio da tropa como aspirante a oficial. Ao término do curso de formação, e após um ano no posto de aspirante, o militar vai galgando no decorrer dos anos os postos de segundo-tenente, primeiro-tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel, o topo da hierarquia militar nas PMs e Corpo de Bombeiros Militar.
Os praças, todavia, são divididos entre soldados de 2ª e de 1ª classe, cabo, 3º sargento, 2º sargento, 1º sargento e subtenente. Acontece que há casos — não muito raros — de militares que passaram mais de 20 anos sem subir de graduação, ou seja, estagnam por duas décadas como soldados sem perspectivas de promoção.
Tal fato explicita a falta de plano de carreira nas PMs. Em boa parte dos Estados, há a possibilidade do militar entrar como soldado e se “aposentar” como major, pelo sistema chamado de posto acima — lei estadual que garante promoção automática quando o militar vai para reserva. Todavia, isto tem sido uma exceção, não uma regra.
Na Polícia Civil há uma hierarquia menos sistematizada se comparado ao militarismo. Os quadros são separados entre os delegados de polícia, escrivães e agentes. O cargo de delegado é privativo a bacharéis em Direito.
Para escrivães e agentes, se exige o nível superior em qualquer graduação. Portanto, a Polícia Civil se organiza em: delegados de polícia da classe especial, 1ª Classe, 2ª Classe e 3ª Classe. Escrivães de classe especial, 1ª classe, 2ª classe e 3ª classe. Do mesmo modo se hierarquizam os agentes (classe especial, 1ª, 2ª e 3ª classe).
Polícias dos municípios
Um dos itens da PEC 51 discorre sobre a autonomia dos entes federativos. Os Estados e o Distrito Federal teriam poder para estruturar seus órgãos de segurança pública, inclusive quanto à definição da responsabilidade dos municípios. A PEC 51 transformaria as guardas municipais em polícias municipais, modelo parecido ao existente nos Estados Unidos, onde as prefeituras têm seus próprios departamentos de polícia. De acordo com o projeto, esta mudança se daria mediante ampla reestruturação e adequação do processo de qualificação dos guardas municipais, conforme parâmetros estabelecidos em lei.
Mais: as municipalidades com mais de 1 milhão de habitantes decidiriam se o Estado ou a prefeitura local seriam as responsáveis por prover de segurança pública. Conforme o caso, as polícias estaduais, os corpos de bombeiros, as polícias metropolitanas e as polícias regionais subordinam-se aos governadores dos Estados e do Distrito Federal. As polícias municipais e as polícias submunicipais subordinam-se ao prefeito do município, ou seja, existiriam mais do que uma única polícia municipal, dependendo da característica e necessidade de cada cidade. O Corpo de Bombeiros — também desmilitarizados — se incumbiria da execução de atividades de defesa civil.
Corregedoria forte

O controle da atividade policial seria a cargo de uma ouvidoria externa, constituída no âmbito de cada órgão policial, dotada de autonomia orçamentária e funcional, incumbida do controle da atuação do órgão policial e do cumprimento dos deveres funcionais de seus profissionais.
De acordo com Luiz Eduardo Soares, que fez parte da construção da PEC 51, se a proposta for aprovada, estará decretado o fim do sistema institucional considerado um legado da ditadura, que tem impedido a democratização do País, sobretudo para os grupos sociais mais vulneráveis. Reportagem do site da Federação Nacional dos Policiais Federais registra fala dele: “Estará aberta a porta para a transformação profunda das culturas corporativas que impedem a identificação dos agentes da segurança pública com os valores da cidadania”.
O deputado estadual Mauro Rubem (PT) afirma que a proposta do senador Lindbergh Farias é apenas um passo para se resolver o problema, mas não é uma saída definitiva. Para o parlamentar, a PEC 51 é a oportunidade de se fazer profunda reforma no sistema policial, como a implantação do ciclo completo que acabaria com a divisão de tarefas que, segundo ele, resulta em ineficiência. “Ao desmilitarizar se retira este ranço da ditadura. Nisto sou favorável.”

“PEC 51 é contrassenso, não um avanço”
Apesar do aspecto revolucionário e moderno da PEC 51 há correntes, inclusive de dentro do Congresso, que se opõem à proposta do senador Lindbergh Farias. O deputado federal goiano João Campos (PSDB) afirma que a unificação das polícias, dentre outras medidas, é uma boa tese, mas por si só não se resolve o problema. Ele argumenta que existem cinco PECs que versam sobre a unificação e desmilitarização das corporações, mas que nenhuma teve avanço desde os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT). O parlamentar ressalta que a única política que alcançou algum resultado foi a integração entre as polícias, mesmo assim, longe do ideal.
João, que é delegado de polícia, diz que criar polícias municipais, dependendo da característica da municipalidade com mais de uma corporação dividida em regiões, é algo inconcebível e contraditório. O parlamentar ressalta que o problema é estrutural e que faltam recursos para que as polícias possam vencer a escassez de efetivo e que adotem novas tecnologias para o aperfeiçoamento do trabalho policial.
João vê na ausência de regulamentação que imponha limites de atuação de cada polícia, bem como a cooperação mútua, como entraves ao bom desempenho das polícias desejado pela sociedade. “A PEC 51 não é a solução. A saída é aperfeiçoarmos o modelo já existente, inserindo-o ao processo de integração. Com estas reformas haveria meios de operacionalidade do atual modelo das polícias brasileiras.”
“Militarização não é problema”
A reportagem entrou em contato com Associação dos Oficiais da Polícia e Corpo de Bombeiros Militar de Goiás (Assof-GO), mas não obteve retorno para que a classe pudesse se manifestar a respeito da PEC 51. A Associação dos Oficiais da Polícia Militar do Distrito Federal (Asof-DF) publica nota totalmente contrária à PEC 51. De acordo com o artigo, a proposta dá como ponto de partida a desmilitarização, como se a PM, por ser militar, é, por si só, um demérito, o que obviamente para Asof não é verdade.
Os oficiais citam como exemplo as dezenas de polícias militares ao redor do mundo, especialmente na Europa e América Latina, que funcionam normalmente. O problema da criminalidade no Brasil, apontado pela classe, não é devido ao fato da principal força policial ser militar e sim pelas leis e procedimentos criminais que são lentos, burocráticos e caros. “A preocupação do legislador deveria ser a diminuição da impunidade e da burocracia processual, além de melhorar a eficiência das ações investigativas policiais”, diz o texto da Asof.

A associação dos oficiais de Brasília ainda contesta a ideia de criação de polícias municipais, já que isso poderia gerar custos exorbitantes ao erário. A Asof também entende que a PEC 51 tem como principal objetivo a desmontagem do aparato policial com objetivos políticos. “Outro mito desta PEC é que ela unifica e simplifica o sistema policial brasileiro. Além de não ser verdade, ela quer fazer exatamente o oposto, ou seja, passar a estrutura policial de 57 polícias para milhares, o que, fatalmente, devido à limitação de verba para sustentar essa estrutura, refletirá nos salários e garantias de carreira para os policiais.”
Segurança pública terá peso no debate eleitoral em 2014

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), compilados pelo Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil, mostram que o País é o sétimo colocado no mundo em casos de homicídios. A cada 100 mil habitantes, 27,4 são vítimas de crimes. No caso de jovens entre 14 e 25 anos, o número aumenta para 54,8.
Segundo o estudo, esses índices são explicados pela incidência de problemas estruturais de origem política, econômica e social, como desigualdade e falta de acesso a serviços básicos combinados ou não a conflitos armados, como os que acontecem na Guatemala, em El Salvador e na Venezuela. No caso dos homicídios de jovens, o Brasil tem taxa mais de 500 vezes maior do que Hong Kong, 273 vezes maior do que a da Inglaterra e do Japão e 137 vezes maior do que a da Alemanha e da Áustria.
Números de guerra
Na semana passada também foi divulgado o relatório elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, baseado em dados oficiais disponíveis até 2012, o qual aponta que 11% dos homicídios cometidos no mundo foram consumados no Brasil. De acordo com o estudo, o País possui um índice de 25,2 assassinatos por 100 mil habitantes. Com 1,09 milhão de homicídios entre 1980 e 2010, o Brasil tem uma média anual de mortes violentas superiores à de diversos conflitos armados internacionais.
Também na semana passada, foi divulgada uma pesquisa realizada pela Datafolha: um em cada cinco brasileiros foi vítima de pelo menos um tipo de crime entre abril de 2013 e o mesmo período deste ano. Já 21% dos brasileiros admitem conhecer algum amigo ou parente que também foi vítima de violência. O estudo foi realizado entre os dias 3 e 4 de abril em 162 municípios das cinco regiões e foram entrevistadas 2.637 pessoas.
Entre os entrevistados, roubo, assalto e agressão foram os tipos de violência mais citados com 14%, seguido por invasão de residências com 9% e por último ficou o sequestro relâmpago com 1%. A pesquisa constatou que os crimes ocorreram com maior incidência com os jovens entre 16 e 24 anos (28%).
Como se observa é inevitável que a pauta segurança pública e violência urbana não seja um dos temas centrais nos debates eleitorais tanto para os Executivos federal e estadual, quanto ao Legislativo. Neste período pré-eleitoral, já há vozes de partidos que protagonizam a política nacional sinalizando para o aprofundamento desta problemática. O ex-governador de Minas Gerais Antônio Anastasia (PSDB) declarou recentemente à imprensa nacional que a escalada da violência no Brasil será o tema nuclear nas eleições deste ano e que o candidato à Presidência da República de seu partido, o senador mineiro Aécio Neves, vai priorizar políticas voltadas à área.
O deputado federal Vilmar Rocha (PSD-GO), que tem tratado do tema no Congresso Nacional, afirma que um dos recados das ruas, nas manifestações de junho do ano passado, foi a sensação de insegurança que vive hoje o brasileiro. O parlamentar ressalta que a ausência de políticas públicas de todas as esferas de governo voltadas para segurança vai se tornar pauta prioritária no Congresso e no debate eleitoral de 2014. “Há um número grande de matéria em tramitação em relação a segurança pública.”
Vilmar lembra que na semana passada assinou apoio a uma PEC que cria o Fundo Nacional de Segurança, que é uma velha tese de que o governo federal deve destinar mais verbas para segurança.
Entretanto, Vilmar Rocha diz que os projetos hoje em discussão na Câmara dos Deputados precisam passar por um debate mais aprofundado para checar a eficiência e consistência das matérias. Segundo ele, os parlamentares devem pegar os projetos e questionarem se de fato seria a solução em caráter emergencial ou em médio ou longo prazo. “Avalio que a unificação das polícias é um tema, mas a ser discutido em médio prazo. O governo federal deve colocar dinheiro na segurança pública, esta tarefa não pode ser delegada unicamente aos Estados.”