PEC 431, do chamado “ciclo completo”, que teve avanço em sua tramitação no Congresso, visa agregar à Polícia Militar a incumbência de investigar a ocorrência de infrações penais e a responsabilidade de presidir inquéritos policiais. Tais atribuições atualmente são exclusivas das polícias Civil e Federal

Se aprovada no Congresso, projeto dará poder de investigação às Polícias Militares
Se aprovada no Congresso, projeto dará poder de investigação às Polícias Militares | Fernando Leite/Jornal Opção

Frederico Vitor

Tramita em estágio avançado na Câmara dos De­pu­tados em Brasília, a Pro­posta de Emenda à Cons­tituição (PEC) 431/14, de autoria do deputado licenciado subtenente Gonzaga (PDT-MG), que pretende, dentre outras coisas, agregar à Polícia Militar dos Estados e do Distrito Federal, a competência de investigar ocorrências de infrações penais e a responsabilidade de presidir inquéritos policiais. Atualmente, conforme prevê a Constituição Federal, tais atribuições são exclusivas das Polícias Judiciárias, como a Civil e a Federal.

O texto do projeto tem como principal objetivo instituir o ciclo completo de polícia para todas as instituições policiais existentes no Brasil: Polícia Federal (PF), Polícia Fer­ro­viária Federal (PFF), Polícia Ro­doviária Federal, Polícia Militar (PM) e Polícia Civil. Ciclo completo consiste na atuação plena das instituições policiais, isto é, todas as polícias atuarem tanto na prevenção e na repressão, quanto também na investigação. Desta forma, tanto a PM como a PRF – que constitucionalmente realizam atualmente o policiamento presencial, preventivo e ostensivo – poderão, a partir de então, investigar e assumir uma ocorrência desde o início e levá-la até o Ministério Público (MP).

Por outro lado, a Polícia Civil e a Fe­deral passariam também a desempenhar funções típicas da PM e da PRF, como rondas e patrulhas, ações características do policiamento preventivo, presencial, ostensivo e da preservação da ordem pública. A PEC 431 tem apoio de promotores, pro­curadores, peritos e de alguns policiais civis e federais, mas enfrenta forte resistência de delegados de polícia, que são os responsáveis por conduzir todas as investigações e assinar todos os registros de ocorrência.

O autor da PEC argumenta que o modelo de ciclo completo de polícia é um padrão adotado em todo mundo e que o Brasil precisa se adequar a nova realidade policial deixando de ser uma das poucas exceções em que a polícia trabalha em ciclo incompleto. Os que são contra a proposta, argumentam que delegar à PM o poder de investigação, antes de qualquer coisa, significa uma volta ao passado autoritário, mais especificamente ao regime civil-militar que governou o País de 1964 a 1985. Isto é, lavar um cidadão acusado de um crime a um quartel, e não a uma delegacia, pode facilitar transgressões aos Direitos Humanos.

Os contrários argumentam que os policiais militares não teriam condições técnicas e estruturais de realizar investigações e inquéritos policiais. Para eles, atribuir o poder de lavrar autos de prisão em flagrante, fazer pedidos de prisão preventiva e quebra de sigilo nada mais seria que um mero capricho corporativista dos oficiais (tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel) da PM, por se sentirem em desvantagem em relação aos delegados. Os opositores da PEC 431 também apontam como solução a desmilitarização das polícias em favor da criação de uma nova polícia estadual unificada, de estatuto civilista, mais adequada aos preceitos do Estado de Direito, para então se adotar o ciclo completo.

Novo modelo

O que ainda se discute em relação a PEC 431, principalmente no que se refere ao campo de atuação das polícias, já que todas as instituições policiais terão atribuições muito parecidas, é o modelo a ser implantado. O do tipo territorial, por exemplo, prevê que a PM investigue em cidades pequenas, onde não há delegacias de polícia e tampouco delegados. Outro modelo é por categoria de delito: a PM ficaria com os mais leves, de menor grau ofensivo, deixando os crimes mais complexos e de grande monta com a Polícia Civil e Federal.

Um terceiro padrão prevê que, quando houver flagrante, a PM apresente o detido diretamente a um juiz. As ocorrências leves, crimes de pequena monta (ameaça, lesão corporal leve, uso de drogas), os chamados termos circuns­tan­ciados de ocorrência (TCOs) poderiam ser feitos pelo próprio policial militar no local da ocorrência, sem a necessidade de levar o acusado do crime até uma delegacia, economizando tempo e deslocamento até o distrito policial. Em Minas Gerais, por exemplo, Estado com o maior número de municípios no Brasil, há pouco mais de 200 delegacias para atender 853 cidades. Desse modo, a única força policial presente em todas as cidades mineiras é a PM.

Novo formato de polícia é um dos maiores anseios da sociedade
Policiais fazem abordagem em suspeitos: atualmente há no País um total de 666.479 policiais e em 2014 foram investidos R$ 71,2 bilhões na área de segurança | CB Vicente
Policiais fazem abordagem em suspeitos: atualmente há no País um total de 666.479 policiais e em 2014 foram investidos R$ 71,2 bilhões na área de segurança | CB Vicente

A PEC 431 não é o primeiro projeto apresentado no Congresso Nacional que visa mudar a estrutura de segurança pública no Brasil. Há outros, como a PEC 51, que pretende desmilitarizar as PMs, uni-las à Polícia Civil, tornando assim uma instituição una de ciclo completo, além de criar polícias metropolitanas de caráter comunitário. Mas todas as propostas têm como objetivo dar uma resposta à sociedade em relação a grave crise de segurança que vive o País. O cerne principal da discussão é qual modelo seria melhor adaptável à realidade brasileira.

Enquanto isso, os índices de criminalidade atingiram patamares tão alarmantes que o Brasil já figura entre os países mais violentos do mundo, demolindo o mito de que o brasileiro é um povo pacífico e cordial. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015, divulgado recentemente, somente no ano passado foram registradas 59 mil mortes violentas em todo o País.

Se somadas todas as categorias de mortes violentas, o Brasil teria uma taxa de 28,9 mortes para cada 100 mil habitantes, uma das mais altas do mundo, sendo um índice comparável a de zonas de guerra, como na Síria, Iraque e Afeganistão. Além dos quase 60 mil homicídios, em todo o ano passado foram registrados quase 48 mil estupros. O número pode ser ainda maior, já que em média só 35% dos crimes sexuais são notificados.

Na guerra contra o crime, a cada três horas um bandido foi morto pela polícia em 2014, o que resultou em 3.022 mortes de suspeitos em confrontos com a polícia. Todavia, o outro lado também teve considerável número de baixas, isto é, 398 policiais perderam a vida no exercício da profissão em todo o ano de 2014.

A pesquisa também traçou um quadro geral da estrutura de segurança pública no País. O Brasil conta atualmente com um efetivo de 666.479 policiais, divididos entre PM (64%), Polícia Civil (18%), Guardas Municipais (15%), Polícia Federal (2%) e Polícia Rodoviária Federal (1%). Entretanto, dos 1.081 municípios brasileiros que possuem Guarda Municipal, apenas 152 (14%) têm um plano municipal de segurança pública. Recursos para a área não faltaram. No total foram investidos R$ 71,2 bilhões em 2014, um incremento de 16,6% em relação a 2016.

A população carcerária do Brasil atingiu o número de 607.731 presos em 2014 — a terceira maior do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China —, divididos em 1.424 unidades prisionais, na maioria complexos superlotados, de estruturas deficitárias sem a mínima condição de promover a ressocialização dos detentos. Segundo projeções do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre 1999 e 2014, o número de pessoas presas triplicou. Se mantiver a mesma aceleração para os próximos anos, a expectativa é de que em 2030, a população carcerária brasileira atinja cerca de 1,9 milhão de presos.

Afinal de contas a adoção do ciclo completo para as polícias resolveria todos os problemas relacionados à segurança pública? Ceder à PM o poder de investigação traria de fato resultados práticos ao cidadão brasileiro que vive refém da violência e lançado à própria sorte, sem mais acreditar que o Estado seja capaz de preservar sua integridade física e moral diante da onda de violência que banha de sangue o Brasil? Essa discussão está em pauta não somente no Congresso Nacional, mas também nas Assembleias Legislativas.

Em Goiás, por exemplo, o Parlamento realizou há duas semanas um debate acerca do tema que reuniu deputados federais e estaduais, integrantes das Polícias Militar, Civil, Rodoviária Federal e Federal, do Tribunal de Justiça (TJ), do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil, secção de Goiás (OAB-GO). Apesar das posições divergentes das diferentes categorias, houve um consenso de que, acima de tudo, a proposta precisa ser discutida com profundidade em todo o País. Na opinião geral, a única coisa que não deixa dúvida é que o atual modelo de segurança pública precisa ser reformulado com bastante urgência.

“Ciclo completo é garantia de direitos e efetividade da atuação policial”
A PM é a única instituição policial presente em todos os municípíos brasileiros, ao contrário da Polícia Civil | Leandro Lopes/Secom
A PM é a única instituição policial presente em todos os municípíos brasileiros, ao contrário da Polícia Civil | Leandro Lopes/Secom

Os que defendem o ciclo completo de polícia argumentam que o novo sistema daria mais efetividade à atuação policial e garantiria mais direitos aos cidadãos. O modelo de policiamento não fracionado, isto é, sem interdependência de outra instituição policial para dar continuidade com a parte investigativa, é adotado por países europeus, da Ásia, das A­mé­ricas do Norte e do Sul e África. Há três países no mundo que são ex­ceções: Brasil, República de Cabo Ver­de e República Guiné-Bissau, coincidentemente todos ex-colônias portuguesas.
Em relação às polícias militarizadas de ciclo completo, ou seja, que a­tuam na prevenção e na investigação de crimes, os defensores aponta como e­xem­plos bem sucedidos a Gen­darmaria Nacional (Fran­ça), Guarda Nacional Repu­bli­cana (Por­tugal), Guarda Civil (Espanha), Ar­ma dos Cara­bi­nei­ros (Itália), Ca­ra­bineiros do Chile e a Gendarmaria Na­cional Argentina. Apesar de se­rem instituições de investidura militar prestam serviços de segurança a povos de nações de democracia consolidada. Diferentemente dessas instituições, a PM brasileira é subnacional, subordinada aos governadores de Estados. Isso tornaria seu controle mais frágil, segundo os defensores da desmilitarização.

­Estrutura e preparo

Willian Miller: “Investigação já faz parte da atividade do policial militar”
Willian Miller: “Investigação já faz parte da atividade do policial militar” | Arquivo Pessoal

Mas afinal, nossa PM estaria preparada para lidar com inquéritos? O 1º tenente da PM-GO, William Li­ra Mil­ler Silva representa o Comando da corporação no Conselho Nacional de Coman­dantes-Gerais da PM e Cor­pos de Bombeiros Mili­tares (CNCG) e diz que sim. Segundo ele, os dados das secretarias de segurança demonstram que as ocorrências de menor potencial são mais de 80% das ocorrências policiais. Mais: como não há delegacia de polícia em todos os municípios ou em determinadas regiões de grandes centros, a PM perde muito tempo no deslocamento até uma delegacia mais próxima, fora a demora por contas dos procedimentos burocráticos.

Além disto, o tenente William Miller afirma que na maioria dos Estados, a PRF já lavra TCOs, liberando as partes no local com o compromisso de comparecem em juízo conforme prevê a lei. Polícias militares de quatro Estados (RS, SC, PR e AL) já realizam o mesmo procedimento e, em Goiás em breve ocorrerá o mesmo. “Na PM já existe o inquérito policial militar (IPM), um instrumento de apuração das infrações militares com as mesmas atribuições e finalidades do inquérito policial conduzido pelos delegados. Portanto, a investigação já faz parte da atividade policial militar”, diz.

Outra dúvida que paira é se a PM abandonaria as ruas, deixando de lado a atividade ostensiva e preventiva em segundo plano, canalizando suas energias na investigação. Os entusiastas do ciclo completo dizem que haveria o contrário. Segundo o tenente William Miller, o parâmetro internacional da quantidade de policiais na atividade investigativa é de 13%, portanto o policiamento presencial não ficaria desfalcado. “A PM fica horas em deslocamentos e em procedimentos burocráticos nas delegacias, de forma que a perda de policiais na atuação preventiva, hoje em dia, é muito maior do que se adotasse o ciclo completo de polícia”, afirma.

Outro argumento em favor da adoção do ciclo completo seria o reforço que ela representaria no esforço de elucidação dos crimes, em especial os homicídios. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), apenas de 5 a 8% dos homicídios são elucidados no País. Segundo o tenente Willian Miller, tais números é um reflexo direto da não adoção do ciclo completo, já que nem todos os municípios brasileiros dispõem de delegacias de polícias, ao contrário da PM, que é a única instituição do Estado presente em todas as municipalidades, distritos e rincões do País. “Mesmo que dobre a quantidade de policiais civis ou federais o índice de esclarecimentos de homicídios elevaria no máximo a taxa de 10%. Ou seja, o problema não está no efetivo, mas no modelo de policiamento adotado no Brasil.”

“PEC 431 é artifício para dar mais poder à PM”

Para o delegado de polícia Fábio Alves de Castro Vilela, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil de Goiás (Sindepol), a PEC 431 deturpa o conceito de ciclo completo de polícia para implantar mais atribuições à PM, como o poder de investigação. Para ele, os oficiais da PM querem o poder de investigar para conduzir o cidadão para o batalhão ao invés da delegacia, remetendo aos tempos do regime civil-militar. Entretanto, interessante que os favoráveis a adoção do ciclo completo na PM, rebatem tal argumento dizendo que o relatório elaborado pela Comissão Nacional da Verdade, constatou que as torturas e assassinatos cometidos no regime de exceção ocorreram em delegacias da Polícia Civil, não em quartéis da PM.

Todavia, o delegado Fábio Vilela afirma que a implantação do ciclo completo na PM implicaria consequências graves, como o aumento da criminalidade nas ruas, já que quem deveria estar em patrulhas e no policiamento preventivo ficará dentro dos batalhões em serviços burocráticos. Uma segunda consequência seria a piora na comunicação entre as polícias. A partir do momento que se dá a oportunidade de investigar para a PM, esta tenderia a deter informações. “O que seria para ser uma parceria e integração na realidade se demonstrará numa maior divisão entre as polícias, penalizando ainda mais o cidadão que espera um serviço de qualidade”, diz.

Fábio Vilela aponta que, dentre os problemas que surgirá em razão do ciclo completo, a principal mazela seria a volta de presos aos quartéis que, diferentemente das delegacias, se tratam de uma área de segurança, cujo trânsito de pessoas é muito mais restrito. Ele lembra que após a Constituição Federal de 1988, as delegacias tiveram de ser adaptadas para o atendimento ao público, conforme a exigência dos Direitos Humanos e da própria Carta Magna, inclusive recentemente a ONU e o Ministério da Justiça recomendaram a eliminação de celas nos distritos policiais. “O ciclo completo na PM vai gerar uma megapopulação carcerária potencialmente em situação irregular e em ambientes inadequados, como as carceragens dos quartéis”, afirma.

Funcionalidade inadequada

Outro problema do ciclo completo na PM apontado pelos contrários a ideia seria a pouca independência na realização dos inquéritos policiais presididos pelos militares. Na cultura militar, a lógica do desempenho de atividade é de comando, ou seja, o soldado ou qualquer outro subalterno, por exemplo, não pode contestar uma ordem de um superior hierárquico. Já na Polícia Civil e Federal, também existe hierarquia, porém as investigações a cargo de um delegado de um determinado distrito policial ou delegacia especializada não sofrem interferência de outro delegado de distrito ou delegacia diferente, mesmo que este seja de um grau superior.

Além disso, as deliberações do curso de uma investigação são tomadas em conjunto, ou seja, o delegado acata sugestões e considerações de agentes e escrivães de polícia, numa parceria colaborativa. Quando o delegado de polícia começa uma investigação ele já o publica para que, tanto o juiz quanto o promotor de justiça, tomem ciência que a investigação está em curso. Além disto, a cada dez dias, a Polícia Civil é obrigada a comunicar ao Judiciário e o MP o andamento da investigação. “Diferentemente dos militares, em que uma ordem superior é absoluta, isto é, não cabe contestação, nas Polícias Judiciárias há maior liberdade no sentido colaborativo na condução de uma investigação”, diz.

Qual seria o caminho apontado pelos delegados de polícia contrário ao ciclo completo na PM? De acordo com Fábio Vilela, uma alternativa seria aperfeiçoar o modelo, mas com a desmilitarização da PM. Segundo ele, a PRF, que é uma polícia de caráter civilista cuja missão é o policiamento presencial, já é um modelo a ser seguido pelas PMs. Além de destituir o sistema militar das polícias estaduais, adequando-as a uma hierarquia e disciplina similar a existente em outros órgãos públicos e empresas, haveria a necessidade de criar uma política de Estado voltado ao investimento nas polícias investigativas, ostensivas e na execução penal. “Precisamos abolir a cultura militar opressora para dar espaço a uma polícia formada por homens e mulheres com os mesmos direitos e deveres dos cidadãos comuns.”