As cervejas artesanais e especiais caíram no gosto dos brasileiros e têm se tornado parte da cultura. Produtores e cientistas afirmam que ainda há muito espaço para o crescimento deste mercado

Linha Asturia, da cervejaria Klaro Chopp, insere a marca no mercado de cervejas especiais | Foto: Reprodução / Vitor Mercez

Nos últimos dez anos, o mercado brasileiro de cervejas especiais tem crescido exponencialmente. O interesse crescente no produto tem a ver com uma mudança de cultura que pode ser percebida nas ruas da cidade, onde é cada vez mais comum encontrar bares dedicados ao ramo. Mesmo grandes fábricas de marcas já consagradas no ramo das cervejas e chopes tradicionais têm dedicado esforços a criar linhas artesanais – como é o caso da Klaro Chopp, com sua linha Asturia. 

Enquanto em 2009 eram 70 cervejarias, o último levantamento da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) aponta 700 fabricantes, fora os não registrados. Apenas em 2019, ano em que o estudo foi publicado o crescimento no número de fábricas foi de 35%. Este crescimento está longe de encontrar seu pico, segundo cervejeiros artesanais e tradicionais ouvidos, já que apenas 2,5% da cerveja consumida no Brasil é artesanal – para comparação, essa proporção é de 20% nos Estados Unidos. 

Francielo Vendruscolo é Professor da Escola de Agronomia da Universidade Federal de Goiás (UFG). O Doutor em Engenharia de Alimentos tem experiência na área de processos biotecnológicos e cervejas artesanais, além de ser o idealizador e coordenador do Projeto Cervejamos, que tem por objetivo difundir a cultura da cerveja artesanal. O professor afirma que a própria definição de cerveja artesanal tem a ver com a característica única do produto:

“Cervejas Artesanais são aquelas produzidas sem sofisticações industriais, sem registro no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), sem intenção de comercialização, apenas consumo próprio. Pela dificuldade de controlar os fatores do processo, o cervejeiro dificilmente conseguirá repetir a mesma receita com as mesmas características sensoriais”, diz Francielo Vendruscolo. Ele traça uma diferença entre Cervejas Especiais, que possuem um padrão de identidade (mesmas características em lotes diferentes), registro no Mapa e têm intenção de serem viáveis comercialmente, mas que também tentam atender consumidores que valorizam a apreciação sensorial.

Como começar

Vitor Mercez, responsável pela cervejaria Asturia, criada em 2013, explica que seu interesse pelo produto artesanal começou cedo: “Minha família iniciou a Klaro Chopp há 15 anos em Goiânia, e desde meus 18 estou dentro da fábrica. Fiz cursos de degustação, não só pelo interesse do paladar, mas também para entender melhor o que fazemos, e acabei me interessando pela arte”. Ele conta que, além da linha Asturia, a Klaro Chopp também usa sua fábrica para produzir cervejas para marcas terceirizadas, chamadas “marcas ciganas”, que têm o rótulo, mas não o meio de fabricação.

Henrique Augusto Martins entrou no mundo das cervejas pela degustação | Foto: Reprodução / Arquivo

Um destes rótulos é a Lola, criada pelo jornalista Henrique Augusto Martins. Ele conta como conseguiu profissionalizar seu hobby e empreender neste mercado: “Comecei degustando, como quase todo mundo começa. Vamos evoluindo nosso paladar e chega um ponto em que começamos a ficar curiosos com as possibilidades da produção. Descobri que dava pra fazer em casa, juntando amigos, montando associações, compartilhando equipamentos”.

O conselho de Henrique Augusto Martins para os que se interessam pela produção amadora é justamente conversar com alguém que já produza e se aproximar de congregações de cervejeiros, como a Acerva ou a Abracerva – ambas com representação em Goiás. Entretanto, empreender no mercado é um pouco mais arriscado e complexo. Henrique Augusto Martins afirma que produzia a modesta quantidade de 20 litros por vez lote quando, no evento de cervejas especiais Piribier, seu produto chamou a atenção do responsável pela fábrica da Klaro Chopp, Reginaldo Mercez. “Ele nos convidou para produzir em sua fábrica. Começamos sem saber como vender, fazer a distribuição ou o marketing.”

Este fator, segundo Vitor Mercez, é o principal desafio para aqueles que estão começando. “Muita gente produz cerveja como hobby e está legal, tem aceitação dos amigos e familiares. Mas, quando tenta empreender, acaba fracassando porque falta a parte profissional. Então, meu conselho para quem quer começar é estudar bastante, estudar a parte mercado também”.

Como fazer uma cerveja única

Embora as cervejas possuam apenas quatro ingredientes essenciais – água, malte, lúpulo e fermento – cervejeiros podem controlar diversas etapas do processo para tornar seu produto único. Escolha dos maltes e lúpulos, características da brasagem, uso de diferentes técnicas de lupulagens e obediência aos padrões de qualidade e higiênico sanitários fazem a diferença entre um rótulo e outro. 

Além disso, explica Francielo Vendruscolo, existem diversos subtipos de cervejas dentro de duas grandes famílias: a das ales e a das lagers: “Cervejas Lagers, também conhecidas como cervejas de baixa fermentação, são fermentadas entre 7 e 15°C por leveduras de baixa fermentação que se encontram, predominantemente, na parte inferior do tanque de fermentação. As Cervejas Ales, conhecidas como cervejas de alta fermentação, são fermentadas entre 16 e 24°C. São produzidas com leveduras de alta fermentação que se encontrarão, predominantemente, na parte superior do tanque de fermentação.”

“Para quem quer tentar empreender, aconselho a estudar bastante o mercado também”, diz Vitor Mercez | Foto: Reprodução / Luan Rampazzo

Henrique Augusto Martins afirma que a possibilidade de criar receitas é praticamente infinita. Ele cita como exemplo a witbier, uma ale belga feita de trigo e temperada com sementes de coentro e cascas de laranja. “A primeira cerveja da Lola foi uma witbier. Eu adicionei na minha receita casca de limão siciliano ao invés da de laranja e lúpulo tcheco para criar um sabor particular”.

Outro exemplo: “Nosso paladar evolui, então minha cerveja favorita eventualmente muda”, diz o jornalista cervejeiro, “mas atualmente gosto das mais ácidas. Temos uma sour beer, que é a que mais gosto. Ela tem acerola e maracujá e é feita com dupla fermentação – primeiro fermentação lática, com produção de ácido lático, depois fermentação normal”.

Por que sair da zona de conforto?

Vitor Mercez diz que, em sua opinião, os festivais começaram a mudança cultural que promoveu a apreciação da cerveja. “O vinho já tem essa cultura há muito tempo, com figuras como os enólogos. Um produto superior às cervejas tradicionais abre portas, como a harmonização com comidas, etc”. Entretanto, Vitor Mercez acredita que o maior obstáculo a ser superado permanece sendo o de convencer consumidores de cervejas tradicionais que consumir um produto mais caro pode valer a pena.

“Precisamos aprender a catequizar o público que gosta das cervejas tradicionais, esse é o maior desafio”, diz Henrique Augusto Martins. Para converter quem consome cervejas industriais clássicas, algumas estratégias têm se tornado populares. “Se vamos vender em supermercados onde há pessoas de todos os níveis socioeconômicos, temos de ter um promotor de vendas fazendo degustação gratuita, explicando nuances do produto”.

Quando perguntado por que cervejas especiais são melhores do que as mainstream, o engenheiro de alimentos Francielo Vendruscolo explicou a diferença na composição das duas bebidas: “Algumas cervejarias optam pela adição de cereais não malteados com a finalidade de reduzir o preço final. Cervejas especiais, em sua maioria, utilizam apenas maltes e não fazem uso de cereais não malteados. Quando atrelado à utilização de lúpulos adequados e adicionados em diferentes momentos do processo de produção, acabam conferindo características sensoriais superiores às cervejas tradicionais”.

A contaminação da Backer, ou, é perigoso tomar cervejas especiais? 

Após pacientes se internarem com síndrome nefroneural em Minas Gerais, descobriu-se que cervejas especiais da fabricante Backer estavam contaminadas com mono e dietilenoglicol. Investigações ainda não foram concluídas e até o momento quatro pessoas morreram por terem ingerido as substâncias usadas como fluído de refrigeração no processo produtivo.

O engenheiro de alimentos Francielo Vendruscolo explica que cervejarias já utilizam fluidos alternativos para a refrigeração, como soluções hidro alcóolicas (mistura de água e álcool etílico). “Não existem agentes tóxicos envolvidos diretamente na produção, mas existem óleos e lubrificantes, detergentes, sanitizantes que podem direta ou indiretamente, contaminarem a cerveja. Antes de comentar sobre os riscos de novas contaminações pelo dietilenoglicol, é preciso aguardar a conclusão da investigação que esclarecerá a natureza da contaminação”.

Henrique Augusto Martins levantou, junto à Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), se alguma cervejaria goiana utiliza o monoetilenoglicol ou o dietilenoglicol: “Não é comum. Em Goiás, nenhuma cervejaria a utiliza, pelo menos entre as associados à Abracerva. Sei que a utilização do dietilenoglicol no Brasil é rara, pois esta é uma substância cara comparada com a alternativa da mistura na proporção de 30% etanol e 70% de água, que cumpre a mesma função sem o risco de contaminação cruzada”.

Isto não significa que não existam riscos, explica Francielo Vendruscolo. Cervejas Especiais comercializadas, entretanto, devem pussuir registro no Mapa e obedecer os Procedimentos Operacionais Padronizados, se adequando aos requisitos mínimos exigidos pela legislação, o que garante sua segurança ao consumidor. Quanto às genuinamente artesanais, produzidas sem registro no Mapa e cujo principal objetivo não é a comercialização, mas o consumo próprio, Francielo Vendruscolo aconselha:

“É Importante seguir condições higiênico-sanitárias adequadas, acondicionar os insumos em local fresco e seco, lavar e higienizar os utensílios com água quente ante e após a utilização, lavar corretamente as garrafas, tomar cuidado com o uso de detergentes e sanitizantes tóxicos, pois muitos cervejeiros artesanais optam pela utilização de sanitizantes utilizados por industriais que requerem Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) para manipulação e utilização”.

Projeto Cervejamos

Professor Francielo Vendruscolo ministra cursos para ensinar a Arte de fazer cerveja artesanal | Foto: Reprodução / Arquivo

O Projeto Cervejamos é um projeto de Extensão desenvolvido na Universidade Federal de Goiás coordenado por Francielo Vendruscolo. Foi iniciado em novembro de 2016 com o intuito de divulgar a Arte da Cerveja Artesanal na Região Centro-Oeste. Dentre as principais atividades, há a ministração de cursos de curta duração para ensinar a Arte de fazer a cerveja artesanal, permitindo que os inscritos consigam desenvolver suas próprias cervejas. 

O coordenador explica: “Associamos a Ciência e Tecnologia e utilizamos alguns conceitos de matemática, física, química e biotecnologia nas atividades desenvolvidas. Também buscamos ofertar palestras e atividades relacionadas aos amantes da cerveja artesanal. O projeto foi muito bem aceito pela Comunidade, as atividades desenvolvidas atingiram participantes de vários municípios Goianos e muitos ex-alunos estão desenvolvendo suas próprias cervejas. Alguns deles, inclusive, passam por aqui e deixar algumas amostras para degustação!”