Por dentro das comunidades ciganas de Goiás
24 dezembro 2023 às 00h01
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“Queremos ser mais vistos pelo poder público. Queremos deixar de ser um povo invisível aos olhos das autoridades. Nós temos título de eleitor, portanto votamos e escolhemos nossos representantes. Em épocas de eleições eles vêm em nossas comunidades e se comprometem a fazer políticas públicas em prol do povo cigano, mas, depois que ganham, somem. Ainda somos vistos com muito preconceito pela sociedade”.
Alexsandro Castilho, líder da etnia kalderash
A palavra “cigano” é uma abreviação de “egípcio”, nome com que os imigrantes rom foram chamados pela primeira vez na Europa. Acreditava-se que eles vinham do Egito. A palavra francesa gitan, a espanhola gitano e a portuguesa “cigano” também têm essa etimologia. Os ciganos, entretanto, não são egípcios. Estudos históricos, linguísticos e genéticos sugerem que os ciganos, ou rom, roma ou romani, emigraram do norte da atual Índia, das regiões do Punjab e Rajastão, entre os séculos VI e XI, cruzaram então o Oriente Médio e entraram na Europa.
Esse desconhecimento, que ainda perdura, faz com que o cigano seja visto de modo estereotipado e preconceituoso. Os ciganos não são um povo homogêneo, entretanto. No Brasil, se dividem em pelo menos três etnias: Kalderash, Sinti e Calon (ou Colon). Há registros históricos de sua chegada ao Brasil com navegantes portugueses desde o século XVI. As autoridades de Portugal viam nos seus territórios ultramarinos uma oportunidade de se livrar desses indivíduos, que eram considerados indesejados.
Para conhecer um pouco mais sobre a realidade das duas etnias predominantes em Goiás, Kalderash e Cólon, a reportagem do Jornal Opção fez uma visita a líderes que relataram como vivem hoje.
Etnia kalderash
Alexsandro Castilho é líder da etnia Kalderash e vive no município de Aparecida de Goiânia. É pastor evangélico e presidente da Associação Internacional da Cultura Romani. Castilho informa que existem mais de 1.500 ciganos Kalderash vivendo em Goiânia e em Aparecida de Goiânia. Em relação à religião, o pastor cigano enfatiza que a maior parte são católicos, porém, não existe uma religião específica e podem pertencer a qual acharem melhor.
A palavra romani kalderash remete à forma romena “căldare”, que por sua vez descende do latim “caldāria” e significa “caldeirão”, “balde”. Com efeito, esse subgrupo ou clã do grupo Rom é originário da Moldávia e da Valáquia, hoje Romênia, e são tradicionais na arte da ferraria, desde a confecção de armas, facas, e utensílios de cozinha, como panelas e tachos. São famosos, aliás, os tachos kalderash pela sua qualidade e durabilidade, como são famosos os próprios kalderash pela arte de trabalhar, sobretudo, o cobre.
Castilho lembra que chegou a Goiânia há 20 anos, mas os Kalderash, assim como os de outras etnias, podem ter chegado em Goiás por volta dos anos de 1930. O líder pontua que a sua comunidade ainda preserva a língua dos seus antepassados, o romanês, que ainda é falado em reuniões familiares, festas e celebração dos cultos evangélicos. “Em nossos cultos, tudo é feito em nossa língua. Porém, se tivermos um visitante gadjos (termo usado para os não-ciganos), haverá um intérprete ao lado para auxiliá-lo. Somente se número de visitantes for de três ou mais a celebração passa a ser em português.
Alexsandro relata que os ciganos nunca foram bem-vistos em parte alguma do mundo, e sempre foram marginalizados e odiados. Ele diz não entender o porquê do preconceito, já que, para ele, todos os estereótipos que designam a população cigana foram narrativas falsas.
Castilho diz imaginar que, talvez por alguns ciganos cometerem crimes, toda a população sofra as consequências. O cigano relembra histórias acontecidas com ele próprio nas andanças pelo Brasil, quando seu ofício era a venda de tachos. “Muitas vezes, chegávamos nas cidades e ouvíamos que o sossego da comunidade tinha acabado porque tinham chegado os ladrões de crianças.”
Castilho expõe que em algumas cidades os prefeitos os expulsavam do local. “Éramos vistos como trapaceiros”, diz. “Recentemente, o preconceito apenas parece ter diminuído, mas, na verdade, ainda existe de forma camuflada”. Ele conta que os ciganos Kalderash tiveram de deixar grande parte das tradições para serem aceitos na sociedade. Tanto o uso dos trajes masculinos quanto femininos foi deixado para trás.
“Hoje, as mulheres não usam vestidos longos e coloridos. Não é porque não querem, mas para evitar a discriminação e o tratamento de ladras. Sem os trajes, elas podem ir ao supermercado ou a qualquer lugar, mas se forem com os vestidos próprios das ciganas, já ficam olhando desconfiados e são vigiadas”, desabafa.
Castilho ressalta que quando viviam como nômades, a vida não era fácil. De tanto serem maltratados e expulsos das comunidades, os ciganos passaram a adquirir terrenos para colocar suas barracas, e posteriormente construiram residências fixas nos locais. “Confesso que depois que passamos a morar em casas próprias ou alugadas, as coisas melhoraram um pouco. Até os vizinhos nos vêem como gente agora. Hoje, temos uma vida social que nunca tivemos antes e somos mais aceitos.”
Contudo, Castilho reitera que ainda existem preconceitos. Quando uma cigana precisa ir à um posto de saúde, “por mais emergencial que seja a situação, ela é sempre deixada para a última posição da fila”, diz ele. “Não nos dão atenção como dão às outras pessoas”, sublinha. O líder kalderash expõe que nunca recebeu a visita de um agente de saúde em sua residência, e ouve o mesmo relato das casas de outros ciganos.
Em relação à educação e alfabetização das crianças e adolescentes ciganos, Castilho lembra que existe um preconceito instalado principalmente pelos profissionais da educação de que os jovens são problemáticos. “Certa vez, na sala em que minha filha estudava, sumiu uma borracha e a própria professora a acusou de ter roubado o objeto. Minha menina chegou em casa chorando e não quis mais voltar a estudar.” Alexsandro pontua que constantemente a garota era constrangida por ser diferente das outras. Por esse motivo, a menina deixou de frequentar a escola e os pais apenas foram descobrir o que a tinha afastado dos estudos muitos anos depois.
Castilho evidencia que a maior parte das crianças e adolescentes das comunidades são analfabetos, principalmente as meninas. “Atualmente existem muitos ciganos que estudaram e conseguiram fazer uma faculdade, mas a maioria precisa estudar em escolas particulares. O poder público deixa a desejar quando se fala na área da saúde e educação para nosso povo.”
Alexsandro Castilho denuncia que a prefeitura de Aparecida de Goiânia nunca deu nenhum tipo de apoio à etnia Kalderash. “Nos 20 anos que eu estou aqui, e nos 50 anos anteriores em que os povos vivem aqui, jamais tivemos apoio. Nunca vieram nos fazer uma visita para saber do que precisamos, exceto em épocas de eleições”, pontua.
A etnia Kalderash lutou para promulgar o dia do povo cigano no município de Aparecida de Goiânia, 27 de abril, mas a data jamais foi colocada no calendário do município como festa cultural. “Se a gente quiser comemorar, é somente entre nós mesmos. A prefeitura nunca se interessou em nos ajudar a tornar conhecida nossas festas. Não está na agenda cultural do município.”
Alexsandro explica que o grupo ainda preserva partes da cultura original, como as danças e as festas. A cultura de ciganos apenas se casarem com outros ciganos se devia ao fato de o grupo não permanecer por muito tempo em um local. Mas, hoje, essa tradição está perdendo força, pois grande parte já possui residências fixas. “O amor não conhece barreiras”, diz Castilho. Contudo, Castilho entende que ainda há uma certa resistência em relação a quebra dessa tradição por parte dos mais velhos.
Ele diz que existe uma cota 3% para os ciganos que querem cursar uma faculdade, mas a proporção é tão pequena que não chega até os Kalderash de Aparecida de Goiânia. “Eu tenho um sonho de fazer direito e luto por uma bolsa já fazem sete anos, mas até o momento não consegui”.
Castilho faz referência ao trabalho que a maioria dos ciganos exerce até os dias atuais: o comércio. Essa é uma das tradições nômades que não foi esquecida, embora também exista muito preconceito no setor. No campo profissional, Castilho cita o cantor cigano Sidney Magal que fez sucesso nos anos 80, mas depois que a mídia soube que ele era cigano, o esqueceram. “Até hoje é assim. Dão emprego para um cigano, mas quando descobrem, é demitido por medo de roubarem o estabelecimento.”
“Quando um policial vai abordar um cigano a truculência é muito grande. Se ele estiver vendendo alguma mercadoria, os policiais já fazem a apreensão de tudo, até dos carros, sem antes saber a realidade dos fatos e dar oportunidade de o cigano explicar alguma coisa.”
Castilho confessa que gostaria muito que as coisas fossem diferentes para o povo cigano, que as pessoas deixassem esses estereótipos de lado e reconhecessem os ciganos como parte da sociedade, por isso, integra grupos de ciganos que lutam contra a Romafobia (discriminação ou racismo direcionado ao povo Cigano/Roma.
“Gostaria de chegar com meu curriculum e arrumar um emprego para trabalhar sem que fosse questionado sobre minha etnia. Gostaria que pudéssemos usar nossas roupas sem que fossemos julgados negativamente. Gostaria que pudéssemos voltar a praticar nossas tradições, como já podem fazer o negro e o índio. Os governantes precisam nos enxergar, não somos invisíveis. Estamos aqui e somos de carne, osso e pele, assim como todo ser humano”, desabafa.
Etnia Calon
Júlio César, da etnia Calon, conta que no município de Trindade vivem cerca de 1.200 ciganos. Todos vivem em casas e não mais em barracas. Muitos ainda ganham a vida do jeito antigo: o comércio de animais. Outros fabricam lençóis e enxovais. Há 15 confecções ciganas Calon que geram empregos diretos e indiretos em trindade; comprando e vendendo tecidos em toda parte do país. Outros ainda são garageiros. Júlio César diz que 99% deles está na informalidade.
Júlio César revela que a cultura e as tradições dos antepassados foram se perdendo ao longo dos anos, não por vontade dos ciganos, mas por conta da perseguição. “Tivemos que mudar nosso visual e as vestimentas para sermos aceitos pela sociedade e para vender nossos produtos. Muitas vezes, a questão do traje atrapalha as vendas. As pessoas têm medo dos ciganos”, diz.
Em relação às celebrações culturais, Júlio César ressalta que tiveram que se adaptar em razão dos locais para a realização das festividades. “Antigamente, a gente chegava em um local e armava nossas barracas em terrenos baldios. Hoje, não tem mais espaços para isso, então a tradição de vários dias seguidos de festas foi se perdendo.”
O líder cigano relata que uma tradição que ainda persiste é o casamento. Para um pai, casar uma filha é questão de honra e para isso ele vende carro, casa, o que for preciso para que a filha se case e tenha uma festa digna na comunidade. “Os gastos com essas festas são muito altos. Como não temos ainda nenhum local nosso para nossas festividades, precisamos alugar.”
Há ainda a tradição da novena de Bom Jesus da Lapa, que é celebrada há 27 anos em Trindade. “Temos um projeto da construção da gruta do Bom Jesus em parceria com a igreja católica que irá melhorar a nossa economia e gerar renda para a nossa comunidade, através das visitações a esse local.”
Júlio César explica que, desde pequeno, foi ensinado por seu pai a não falar que é cigano para fugir dos preconceitos. “Essas pessoas, por não entender a cultura cigana, nos tratam de forma discriminatória. Somos ensinados a lidar com essa situação desde criança.” Ele aponta que antigamente os próprios governantes usavam os ciganos, culpando-os por quaisquer crimes que não estivesse sem solução.
A educação e alfabetização dos ciganos Calon no município de Trindade é boa, diz Júlio César, mas na questão da saúde, ainda precisa melhorar. Ele diz que quando chega um cigano viajante e precisa de um atendimento, às vezes não é atendido porque não tem endereço. “Muitos ciganos ainda são nômades. Como vão pedir comprovante de endereço para um cigano? Júlio lembra que o deputado estadual Cristiano Galindo (Solidariedade), tem um projeto de lei para facilitar essa situação e não haverá a necessidade da carteirinha do SUS no atendimento ao cigano.”
Atualmente a comunidade Calon é bem aceita pela população do bairro onde mora, diz o cigano. Júlio César sublinha que, depois de passarem a morar em casas, a comunidade passou a aceitá-los melhor. “Temos muitos amigos não-ciganos, nossos vizinhos não têm mais medo de nós, já se acostumaram com nosso jeito de ser”, expressa.
Na avaliação de Júlio César, em Trindade a comunidade Calon é bem atendida pelo poder público. Existem lideranças ciganas que lutam pelos direitos e cobram das autoridades as políticas públicas. “Nós nos organizamos e levamos nossas necessidades até os governantes, não ficamos calados”, pontua.
Júlio reitera que há cerca de dois anos as lideranças do povo Calon têm conseguido resgatar as tradições dos festejos. “Estamos entrando nos editais, indo ao governo federal, estadual e municipal para reivindicar nossos direitos. Temos uma luta pela construção de um galpão onde possamos fazer nossas festas e reuniões e graças a Deus está dando certo. O prefeito já doou o espaço e agora só falta construir.”
Elizandro Alves é cigano Calon nascido e criado em Trindade. Ela conta que vive da “gambira” (troca ou permuta) de cavalos. Tem 39 anos, é casado e tem filhos e netos. Ele explica o porquê de ser tão novo e já ter netos. “Porque na nossa tradição e cultura, as meninas se casam logo após a primeira menstruação, às vezes com 12 anos de idade e por isso têm filhos cedo.”
Ele cita que a sua geração e de seus filhos já não sofrem tanto com o preconceito, mas seus antepassados foram humilhados por onde passavam. “Hoje, temos o respeito das pessoas aqui do bairro, na escola nossos filhos são respeitados. Os evangélicos têm uma igreja própria para os cultos, que é a presbiteriana.”
Elizandro não foi alfabetizado. “Meu pai ficou indignado com o preconceito que eu e meus irmãos sofríamos e nos tirou da escola. Ele dizia que o homem precisa trabalhar para sustentar a casa. Nossos antepassados não deixavam os filhos estudarem por muitos motivos, e um era esse. Tanto que da minha geração para trás, praticamente todos são analfabetos”, explica.
Vilma Soares Costa, 38, é casada com Elizandro há 21 anos, mas diz que para os padrões ciganos, se casou tarde. Para ela, a vida da mulher no meio cigano é muito boa. “Normalmente os homens são muito carinhosos e respeitadores. Me casei com 17 anos porque optei por não me casar nova, mas a minha filha já se casou com 12 anos, por imposição nossa”, afirma.
Vilma Costa esclarece que na sua época já não existia a exigência do casamento arranjado pelos pais, então ela pôde escolher o seu esposo e diz que não se arrependeu. “Valeu a pena, minha escolha deu certo”, conta sorrindo. A mulher informa que estudou somente até a segunda série e que aprendeu muito pouco, mas sabe escrever o seu nome.
Ela explica que quando a menina completa 13 anos, os pais não as deixam mais estudar sob a alegação de que elas precisam aprender os ofícios de uma boa dona de casa, pois logo irão se casar. “Por um lado, eu acho bom, pois nos preparamos para ser uma boa esposa e só temos um homem. Se demorar para se casar, vai fazer coisas erradas. Por outro lado, eu acho ruim porque não estudamos, mas entendo que é uma tradição e a maioria dos pais não permitem que se quebre”, fala.
Vilma Costa revela que gostaria de ter estudado. No entanto, de acordo com ela, não vale a pena, pois os maridos não as deixam trabalhar. “Até queria ter estudado, mas não ia adiantar de nada, porque meu marido não ia me deixar exercer uma profissão. O homem cigano não deixa sua esposa trabalhar fora, faz parte da cultura cigana o homem ser o provedor das necessidades de casa.”
Juarez Batista de Moura pertence a etnia Calon, 59, diz que em razão de um confronto entre ciganos no Estado de São Paulo, seus avós vieram parar em Trindade. Juarez possui uma fábrica de lençol em sua própria casa e emprega tanto cigano como gadjos. Atualmente, tem uma produção de 700 lençóis por semana, que são comercializados em várias regiões. Para ele, a vida dos ciganos tem melhorado muito, apesar de ainda sofrerem preconceitos. “A mulher teve que deixar a tradição da leitura das mãos porque era taxada de feiticeira, por causa das vestimentas e jóias.”
Ismael Calon é presidente da Associação Estadual da Etnia Cigana de Goiás (Aesc Go), com sede em Catalão, no Sudeste goiano. Na cidade vivem cerca de 100 famílias, com aproximadamente 500 pessoas, onde a maioria ainda mora em barracas e em condições precárias. A Associação representada por Ismael, conta com 3 mil famílias.
A Associação tem como objetivo buscar aumentar conscientização sobre a importância da preservação da cultura cigana e trabalhar para a promoção da igualdade e da justiça social. “O governo de Catalão é omisso, os Calons sobrevivem do bolsa família do governo federal e alguns aposentados e outros precisam sair para vender balas e panos de prato”, diz Ismael Calon.
A alfabetização das crianças Calon é outro grande problema, revela Ismael, mas, segundo ele, já está em andamento juntamente com o Instituto Federal Goiano de Catalão (IF goiano), a possibilidade de alfabetização dos ciganos na própria comunidade, com instalação de local para estudarem.
Ismael Calon afirma: “Hoje no governo federal, o povo cigano teve um grande avanço, pois está ligado ao Ministério da Igualdade Racial, possuindo uma secretaria específica dos povos ciganos para defender os interesses do nosso povo.” Ismael Calon já enviou projetos pedindo uma área do governo federal para que sejam assentadas as famílias Calon de Catalão, e estão aguardando os trâmites legais para a aquisição do terreno, pois 99% dos ciganos do município ainda vivem em barracas. “Infelizmente ainda vivemos como se fossemos invisíveis aos olhos tanto da sociedade como do poder público”, declara.
Pesquisadores
Francielle Felipe Faria de Miranda é publicitária e professora-pesquisadora na área de comunicação e cultura, dedicando-se à pesquisa sobre a representação das comunidades e indivíduos ciganos nos meios de comunicação brasileiros. Franciele Miranda afirma que as comunidades ciganas enfrentam a carência de políticas públicas que garantam o acesso a direitos básicos da população brasileira. Vivem à margem da sociedade, necessitando de inclusão social, acesso à terra, território, moradia, inclusão produtiva e econômica.
De acordo com a pesquisadora, esse povo continua invisível ao poder público. As primeiras iniciativas para atender à diversidade étnica no país datam de 2003, com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR, pelo governo federal. Somente em 2014, fruto da articulação iniciada com a SEPPIR, foi publicado o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos. O entendimento de que os grupos étnicos têm particularidades a serem consideradas para garantir seus direitos à igualdade e à diferença é algo recente.
Em relação a baixa taxa de alfabetização, são vários os motivos, informa Franciele Miranda. É possível observar que as comunidades ciganas contêm um traço em comum, a transmissão e a aprendizagem dos valores da cultura são realizadas oralmente. Não havia, até bem pouco tempo atrás, valorização da escrita, pois na educação familiar os indivíduos são orientados para um determinado trabalho, em que muitos só consideram importante saber o básico, como ler, escrever e realizar cálculos.
O modo de vida nômade e seminômade de alguns grupos também gera dificuldade de seguir o calendário escolar regular. A lei assegura permanência e adaptação dos calendários, mas as prefeituras e profissionais de educação ainda não dispõem de formação adequada para apoiar as famílias, revela.
Ainda conforme a pesquisadora, soma-se a isso o fato de que a inserção no mundo do trabalho ainda aconteça pelo viés da informalidade, da tradição do casamento ser realizado ainda na adolescência, dentre outras situações específicas de cada grupo, faz com que, normalmente, os pais ciganos não tenham a vontade de enviar os seus filhos à escola. Quando as famílias são sedentárias, o acesso e a inclusão escolar enfrentam o desafio do preconceito e da adaptação da própria família nuclear da criança, que muitas vezes “aprendeu com a escola da vida” e não frequentou a escola formal.
Muitas pessoas acreditam que ciganos não existem mais, pois não encontramos ciganos no dia a dia das grandes cidades “abarracados “ou trajando as roupas que vemos nos filmes ou novelas. O fato é que, para além da invisibilidade enquanto cidadãos, é necessário observar que os grupos étnicos se acomodam socialmente e adaptam-se culturalmente, incorporando hábitos e formas de vida do local onde se encontram. Muitas comunidades tornaram-se sedentárias, trocaram os acampamentos por bairros ocupados por famílias ciganas, o violino de origem romena por música sertaneja, o comércio de cavalos pelo de carros e por aí vai. Assim, se esperarmos enxergar ciganos tradicionais, é possível que não consigamos vê-los. O que os une é o sentimento de “ciganidade”, enfatiza a pesquisadora.
Outro ponto importante para Franciele, é que em uma sociedade midiática, só “existe” aquilo que ganha visibilidade. “E aí trago outro aspecto desta reflexão, na continuidade dos meus estudos, investigo a forma como os indivíduos de origem cigana são representados pelo jornalismo brasileiro. No período estudado, raramente os ciganos ganhavam notoriedade nos veículos noticiosos, mas quando ocorria, é porque supostamente estariam envolvidos em crimes. Cerca de 60% do total das notícias analisadas.”
Contribuição da cultura cigana para Goiás
Para a pesquisadora, existe um apagamento cultural do alcance cigano na cultura e folclore brasileiro, como explica: Aluízio de Azevedo, cigano da etnia Calon, jornalista e pesquisador das comunidades ciganas destaca a influência na música, onde já foram identificadas por outros pesquisadores referências ciganas na moda de viola. Além disso, na dança temos o exemplo da catira, que surge do encontro entre indígenas, colonizadores espanhóis e ciganos no sertão de Minas Gerais e Goiás.
Há relatos da presença de grupamentos ciganos em Pirenópolis e Cidade de Goiás desde o período colonial, ligados à mineração de ouro e comércio de animais. Lideranças ciganas de Trindade-GO e residentes na cidade de Goiânia, relatam sua vinda para a região por ocasião de grandes obras de construção na fundação da cidade, tais como linha de trem e construção de prédios públicos, onde trabalharam.
“Meus familiares, na região de Itumbiara e Buriti Alegre-Go, relatavam receber grupamentos ciganos nos períodos colheita de determinados cultivos, anualmente, e pagavam por esta força de trabalho. Esta mesma história se repete em diversas outras localidades do estado.”
O professor da Universidade Estadual de Goiás, em Anápolis, que trabalha no curso de Graduação em História e na pós-graduação, no mestrado em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado., Eliézer Cardoso, explica em um estudo o porquê tantas histórias foram inventadas em desfavor do povo cigano.
O artigo que tem como título, “Quando o outro Assusta” revela esses estereótipos. A hipótese é que os colonizadores europeus, por serem numericamente minoritários, tinham medo de perder a sua identidade. Por isso, eles criaram um discurso para demonizar aqueles que eram diferentes. No caso, específico dos ciganos, esse discurso se fundamentava nos seguintes pontos: os ciganos eram ladrões, os ciganos eram um povo amaldiçoado (uma das versões é por terem forjado os cravos da crucificação de Cristo), os ciganos sequestravam crianças, os ciganos não gostam de trabalhar.
Ele evidencia que dos séculos XVIII e XIX para cá, muita coisa mudou e a configuração sociológica de Goiás é muito diferente. Contudo, os estereótipos culturais têm a capacidade de perdurar por séculos, pois eles se entranham nas tradições e instituições. “A imagem estereotipada dos ciganos – seja a da sensualidade ou da desonestidade – ainda persiste fortemente em Goiás.”
Poder público
Itumbiara
A prefeitura de Itumbiara esclarece que as comunidades ciganas do município recebem atenção por meio de diversos órgãos municipais, como a equipe da Fundação de Solidariedade (Funsol), autarquia responsável pela área de assistência e promoção social da Prefeitura, cadastrou todos os ciganos no CadÚnico, o Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal, para eles terem acesso a benefícios de diversos programas.
A Prefeitura e a FUNSOL, em parceria com o Governo de Goiás, por meio da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social (SEDS), fazem entregas regulares de cestas básicas e cobertores no período do frio. Na atual revisão do Plano Diretor Estratégico de Itumbiara, foram feitas reuniões setoriais e temáticas com quadras comunidades ciganas, nos bairros Nossa Senhora da Saúde, Parque dos Buritis 3 e Juca Arantes.
A prefeitura ainda informa que, em maio deste ano, a Prefeitura assumiu compromisso com o Ministério Público Federal / Procuradoria da República em Goiás e o prefeito Dione Araújo sancionou a lei que autoriza a destinação de áreas públicas para a comunidade cigana de Itumbiara. Espaço para construção de casas, com lavanderia e banheiros comunitários. Os ciganos (também chamados de romanis) foram convidados a participar do COMPIR, o Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial, implantado em Itumbiara neste ano.
Trindade
De acordo com a secretaria de cultura da cidade, a comunidade cigana tem sido bem atendida pela pasta. Existe o auxílio para que sejam captados recursos através de lei estadual para as festas culturais. Há também o apoio com parte de estrutura, inclusive no dia do cigano, desde material de decoração até jogos de mesa, palco, som, iluminação e shows.
Na educação, assim como todos os demais atendimentos, a prefeitura de Trindade trabalha com a inclusão das pessoas. Assim como não temos salas reservadas para autistas, Down, eles estão nas salas junto a todas as demais crianças. Na saúde, todos têm o mesmo atendimento passando pelas UBSs, são encaminhados para as especialidades.
Aparecida de Goiânia
A Secretaria Municipal de Articulação Política, por meio das coordenadorias de Igualdade Racial e Direitos Humanos, alega que buscou estabelecer contato com ciganos no município, neste ano, mas houve recusa por parte deles. A comunidade cigana na cidade, inclusive, foi convidada para fazer parte do Conselho Municipal de Igualdade Racial e, no entanto, não manifestou interesse.
As coordenadorias afirmam que houve, inicialmente, dificuldade de acesso e diálogo para construção de uma rede de apoio com a comunidade e que isso dificulta o levantamento de dados. A Secretaria reforça que o espaço segue aberto e que continua trabalhando o desenvolvimento de políticas públicas relacionadas à área da igualdade racial, desenvolvendo ações e projetos para erradicar ou minimizar qualquer tipo de racismo e discriminações.
Goiânia
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SES), a comunidade cigana é atendida normalmente tanto nas unidades de urgência quanto na Atenção Primária. Quando estão morando temporariamente em alguma parte da cidade com cobertura do Programa Saúde da Família, os ciganos são cadastrados e recebem toda a assistência prevista.
Projeto
O presidente da Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa, o deputado Cristiano Galindo (Solidariedade), apresentou um projeto de lei que visa reconhecer a importância da garantia de direitos básicos à Comunidade Cigana do Estado de Goiás. A medida dispõe sobre o direito à educação de qualidade e à democratização do acesso à saúde para esses povos, que são historicamente invisíveis aos olhos do poder público.
Segundo a justificativa do parlamentar, esses cidadãos estão inseridos em uma situação particularmente vulnerável e essa propositura é essencial para incluir essas pessoas na sociedade. A falta de documentação civil, muitas vezes, resulta em barreiras burocráticas significativas que impedem o acesso a serviços essenciais. Sendo assim, o objetivo é facilitar e garantir que os povos ciganos tenham acesso adequado à saúde e à educação.
Goiás
De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES -GO), a Gerência de Atenção às Populações Específicas têm intensificado junto aos municípios a realização do cadastro e identificação da população cigana, para garantir dados fidedignos para os indicadores de saúde e dessa forma, planejar ações mais resolutivas às populações específicas. Este ano foi iniciado o levantamento da situação de atenção à saúde da população cigana em Goiás por meio de formulário encaminhado aos 246 municípios.
Conforme dados informados pelos municípios e obtidos por meio do CadÚnico, estima-se que a população cigana em Goiás seja de 3.598 pessoas, distribuídas em todas as regiões de Saúde e em 83 municípios. Dados do e-SUS evidenciam que foram realizados 3.017 atendimentos a esta população na atenção primária em 2023. Os atendimentos podem ter sido em maior número, pois ainda há muitas pessoas dessa população que não são cadastradas como ciganas, no cadastro no e-SUS.
Os municípios ainda receberam durante o ano, visitas das equipes da gerência para identificação das necessidades de saúde desta população e para a divulgação de Nota Orientativa sobre a Saúde dos Povos Ciganos, com objetivo de fortalecer a identidade dos povos ciganos/romani.
Durante as visitas foram identificados problemas de Saneamento Básico que afetam a saúde, nos locais de moradia da população cigana. Ao mesmo tempo foi realizada interlocução e articulação junto aos órgãos competentes e municípios para a solução dos eventuais problemas que afetam a prevenção, promoção e proteção da saúde das comunidades ciganas mais vulnerabilizadas.
Foi estabelecida parceria com Associação Internacional Mayle Sara Kalí (AIMSK) visando espaço de diálogo e escuta das demandas de saúde da comunidade cigana e cooperação para qualificação, ações de combate ao racismo institucional, estigmas e preconceitos e realização de pesquisa da situação de saúde dos povos ciganos/romani e efetivação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani no Plano Estadual de Saúde 2024/2027, em consonância com as realidades locais e regionais, e no Plano Plurianual – PPA.
De acordo com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social (SEDS), as comunidades ciganas em Goiás representam 93% da população de ciganos da região Centro-Oeste do Brasil. A secretaria participa que por meio das gerências responsáveis, acompanham as comunidades ciganas do Estado desde 2019, com visitas técnicas realizadas nas comunidades, levantando-se o perfil desse povo, o que vem sendo sempre atualizado.
A pasta comunica que a maioria das comunidades são da etnia Calon, mas que existe também os da etnia Rom kalderash, a maioria vive na zona urbana, em casas alugadas e poucos têm residência própria, sendo que alguns ainda vivem em barracas em situações precárias, sem rede de esgoto, banheiros, água encanada e energia elétrica, o que os tornam ainda mais vulneráveis.
A secretaria declarou que atualmente, as comunidades mais vulneráveis continuam sendo atendidas com cestas básicas, que são as comunidades de Bom Jesus de Goiás, Buriti Alegre, Itumbiara, Morrinhos e Pontalina, e cidade que hoje concentra esta população de maior risco é Itumbiara com noventa (90) famílias em estado de extrema vulnerabilidade.
As comunidades ciganas do estado são contempladas com os programas sociais do governo disponibilizados pela SEDS, que são Mães de Goiás, Dignidade Menstrual, Crédito Social e ainda beneficiadas com os programas que fazem o recorte da igualdade racial, como no Programa Aprendiz do Futuro.
Os incentivos à cultura também estiveram presentes, em que algumas comunidades ciganas foram contempladas com os incentivos da Lei Aldir Blanc, a exemplo da comunidade de Trindade que recebeu incentivo de R$ 50.000,00 para a realização da Tradicional Festa Cigana, entre outros artistas ciganos que concorreram e receberam valores menores para fortalecimento da cultura cigana.
A Gerência articulou, no ano de 2022 com a prefeitura do município de Itumbiara a doação de terrenos para a instalação de moradias permanentes para a comunidade cigana que vive em tendas. Os terrenos foram entregues este ano e são próximos dos locais onde hoje vivem, apresentando uma grande conquista desta comunidade cigana.
Outra ação realizada por esta Gerência, foi com a prefeitura de Buriti Alegre a concessão de um terreno para a comunidade cigana incluindo a instalação de água e energia no local. Também melhores instalações para a comunidade cigana de Pontalina, que anteriormente estavam em local insalubre e posterior a interferência desta Gerência, foi providenciado novo local para melhor instalação de suas tendas.
Foi garantida representatividade para todas as comunidades tradicionais de Goiás e assento exclusivo de membro e suplente cigano no Conselho Estadual de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Combate ao Preconceito do Estado de Goiás/CEDHIRCOP. Hoje a maior comunidade cigana de Goiás está presente no município de Trindade, com aproximadamente 300 famílias ou 1.200 pessoas, seguida por Caldas Novas com 120 famílias ou 500 pessoas e Itumbiara com 90 famílias e cerca de 450 pessoas, todos da etnia Calon.
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