Por dentro da igreja que ofereceu ‘cura gay’ a Karol Eller

22 outubro 2023 às 00h01

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Rio Verde figura no topo das listas de cidades mais ricas do agronegócio brasileiro, puxada no ranking pelas extensas plantações de soja, milho, cana e agroindústrias a perder de vista. As fazendas elevam o PIB da cidade com mais de 225 mil habitantes, com uma rede comercial e hoteleira que atrai compradores de toda parte do País. Texas brasileira, capital da região Sudoeste de Goiás, reduto bolsonarista — estas são algumas das alcunhas que a cidade carrega. Mais recentemente, a cidade também a ser conhecida por ser sede de uma igreja Assembléia de Deus que oferece a chamada ‘cura gay’.
O pastor Wellington Rocha, que foi vereador duas vezes na cidade, uma pelo MDB e outra pelo PSD, é enfático ao dizer que a igreja oferece apenas abrigo e acolhimento para quem está à procura. Ele teve contato com Karol Eller, influencer bolsonarista que tirou a própria vida um mês anunciar ter passado pela cura gay. Wellington Rocha conta que Karol Eller relatou se sentir infeliz com a própria sexualidade. Segundo ele, Eller contou ter sido abusada pelo pai e enfrentado problemas com drogas nos Estados Unidos.
Wellington Rocha afirma que não discrimina seus fiéis homossexuais, mas diz a eles que “é preciso que se adequem às normas e culturas da coletividade”. O pastor afirma: “Para frequentar a igreja sem problemas, é preciso andar de acordo com as normas. É preciso sim fazer mudanças.”
Ao ser questionado sobre a oferta do serviço de reorientação ou reversão sexual nas dependências do templo, o pastor diz: “É uma escolha. Viver no pecado é uma escolha”. Wellington Rocha atribui a morte da influencer à depressão, e não ao suposto tratamento realizado no retiro. O “homosexualismo” (palavras do pastor) não era o grande problema de Karol, em sua percepção.
Wellington Rocha afirmou à reportagem que Karol Eller já havia escrito sua carta de despedida duas semanas antes de chegar a Rio Verde para o retiro. Afirmou ainda que chegou a ouvir de trechos desse adeus lidos por Karol Eller. Ela teria recebido abrigo após anunciar, em uma live nas redes sociais, que ‘não suportava mais’.
A influencer de direita, já dava sinais sobre o suicídio que seria cometido dalí a algumas semanas durante sua estadia no retiro Maanaim, que acontece uma vez por mês. “Lá é assim, a gente prega a palavra de Deus, ministra, fala sobre paternidade, sobre o perdão”, garante o pastor.
O site do retiro descreve a experiência como “um momento que você tem a oportunidade de estar separado para um experiência com Deus, vivendo um tempo de edificação, restauração, libertação e tempo de intimidade maior com Deus”.

Conhecendo Karol Eller
Wellington Rocha afirma ter tido seu primeiro contato com Karol Eller durante uma live. Ele conta que estava em uma chácara com outros pastores e parte do seu rebanho, quando começou a se sentir mal e foi para casa, ainda na madrugada. Ao chegar em casa, seu estado febril não o deixou dormir. Recebeu a notificação da live e, ao assistir, ouviu o desabafo e despedidas da Influencer Eller. Pediu para participar do ao vivo para fazer uma oração por ela. “Consegui acalmá-la e depois da live ela pediu meu contato e de lá pra cá conversamos bastante”, conta.
O contato se transformou em amizade que culminou em um convite para que ela fizesse parte do retiro Maanaim. Neste retiro, Karol Eller receberia bençãos e teria convívio com outros membros da igreja. “A homosexualidade dela foi o assunto que menos discutimos. Ela confessou que queria formar uma família, ter filhos, mas não queria adotar. E mesmo assim, a gente sabia que ela mantinha contato com a ex-namorada”, relata.
Karol Eller chegou a Rio Verde com uma bagagem de problemas psicossociais, já tendo sido diagnosticada com depressão e ansiedade. Os vícios da jovem de 36 anos também foram notados pelas pessoas que conviveram com ela durante os três dias de retiro. O fumo e os jogos de aposta, que acarretaram em dívidas com agiotas e donos de cassinos que a perseguiram até os seus últimos dias.
As dívidas de Eller chegaram a ser quitadas pelos membros da Igreja, que se reuniram para uma vaquinha, conta Wellington Rocha. De acordo com o pastor, o valor devido ultrapassava R$ 20 mil e a influencer não tinha como pagar o montante. “A gente a tranquilizou quanto a isso; dissemos que ela podia devolver a vaquinha quando conseguisse. Só com essa ajuda ela já ficou muito bem, ficou alegre, voltou a socializar e brincou com a gente”, conta o pastor que ainda deu um celular para que ela fizesse uma rifa.

Ajuda psicológica e espiritual
Wellington Rocha relata uma conversa que teve com Karoll Eller enquanto estavam no retiro. Ela teria afirmado ao pastor que queria renunciar às práticas [homossexuais] e aos ‘pecados. “Eu disse assim: Karol, tem certeza? Porque é uma coisa muito difícil”, teria explicado o pastor. Ao continuar a conversa, ele lembra que a bíblia “condena o ‘homosexualismo’”, mas que não é uma imposição. “É como quando você vai entrar em uma empresa e te dizem: aqui na firma é o seguinte, tem que usar uniforme laranja e calça azul”, compara.
Ao perceber a delicada situação da influencer, o pastor conta que buscou ajuda com uma psiquiatra para auxiliar no tratamento da jovem. Antes de chegar a Goiás, ela já havia se consultado com profissionais e tido remédios psiquiátricos pagos pela igreja, segundo afirma Wellington Rocha. “[A morte] não foi culpa da igreja. O que nós fizemos com aquela mulher foi simplesmente ajudar”.
“Quando descobrimos o quadro depressivo, decidi tentar envolver ela em brincadeiras e cantar e tal; falar de política, por exemplo. Eu a adotei como uma filha. Quando você tem um filho, você aceita o filho do jeito que ele é. No caso da Karol há muita especulação para encontrar um culpado. É muito maldoso. O que eu e a igreja fizemos por ela, inclusive financeiramente, foi ajudar”, conta.
Projeto da ‘cura gay’ nasceu de deputado goiano
O termo “cura gay” é usado para se referir à práticas pseudocientíficas que visam mudar a orientação sexual ou a identidade de gênero de pessoas LGBT+. Essas práticas são baseadas na ideia de que a homossexualidade é uma doença, um transtorno ou uma escolha, e que pode ser revertida por meio de terapias, intervenções religiosas ou outras formas de coerção.
No Brasil, o tema começou a ser discutido no Congresso Nacional em 2013, quando o deputado João Campos (PSDB-GO) apresentou um projeto de decreto legislativo que pretendia suspender uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe os psicólogos de participarem de terapias de conversão. O projeto ficou conhecido como “PL da Cura Gay” e gerou uma grande polêmica na sociedade civil e na mídia. Após pressão, o projeto foi arquivado pelo próprio autor.
No entanto, a questão não foi encerrada. Em 2017, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, concedeu uma liminar que autorizava psicólogos a atenderem pacientes que buscassem tratamento para mudar sua orientação sexual. A decisão foi vista como uma violação da resolução do CFP e um retrocesso nos direitos humanos. O CFP recorreu da decisão e conseguiu derrubá-la em 2018, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
A ciência, por sua vez, é categórica ao afirmar que a homossexualidade não é uma doença, um transtorno ou uma escolha, mas sim uma variação natural da sexualidade humana. Diversas organizações internacionais de saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Associação Americana de Psiquiatria (APA) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), reconhecem que a homossexualidade é uma expressão saudável da sexualidade e que não há evidências científicas que sustentem a eficácia ou a ética das terapias de conversão.
Há estudos que mostram que essas práticas podem causar danos psicológicos graves aos indivíduos submetidos a elas, como depressão, ansiedade, baixa autoestima, isolamento social, ideação suicida e tentativas de suicídio. Além disso, essas práticas violam os princípios éticos e os direitos humanos das pessoas LGBT+, ao negarem sua dignidade, sua identidade e sua liberdade.
Deputados pedem investigação e indiciamento
Três parlamentares do PSOL, Erika Hilton (SP), Pastor Henrique Vieira (RJ) e Luciene Cavalcante (SP), solicitaram ao Ministério Público Federal (MPF) uma investigação sobre a igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, Goiás, por suspeitas de promover a chamada “cura gay”. A ação, apresentada nesta segunda-feira, aponta a igreja como responsável pelo retiro ‘Maanaim’, onde supostamente são realizadas terapias de “conversão sexual,” visando alterar a orientação sexual de jovens LGBT para heterossexualidade.
A denúncia destaca o caso da influencer bolsonarista Karol Eller, falecida na semana passada após declarar que havia “renunciado à homossexualidade” após participar de um “retiro religioso.” Os parlamentares argumentam que as práticas de “cura gay” são consideradas tortura e agressão contra a comunidade LGBTQIAPN+, cujas características são inerentes e não passíveis de alteração.
O documento protocolado no MPF ressalta que as “terapias de conversão” são proibidas pelo Conselho Federal de Psicologia e sugere que a Assembleia de Deus de Rio Verde seja responsabilizada por possíveis crimes de homofobia, tortura psicológica e incitação ao suicídio.
Encontre ajuda
Centro de Valorização da Vida (CVV): O CVV é uma associação civil sem fins lucrativos que visa a prevenção ao suicídio. A organização possui diversos meios de contato, como e-mail, chat e até postos presenciais, mas o mais disseminado é o telefone: 18812.
DisKardec: O DisKardec é um serviço independente que visa o atendimento fraterno por bate-papo ou telefone para que as pessoas possam desabafar.
Pode Falar: Apoiado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o Pode Falar é um canal de ajuda em saúde mental para pessoas entre 13 e 24 anos.
Em Goiás
Centros de Atenção Psicossocial (Caps): Os Caps são unidades de saúde especializadas em saúde mental 3.
Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e de Pronto Atendimento (UPAs): As UBSs e UPAs oferecem atendimento médico à população.
SAMU 192: O SAMU oferece atendimento pré-hospitalar à população.