Rio Verde figura no topo das listas de cidades mais ricas do agronegócio brasileiro, puxada no ranking pelas extensas plantações de soja, milho, cana e agroindústrias a perder de vista. As fazendas elevam o PIB da cidade com mais de 225 mil habitantes, com uma rede comercial e hoteleira que atrai compradores de toda parte do País. Texas brasileira, capital da região Sudoeste de Goiás, reduto bolsonarista — estas são algumas das alcunhas que a cidade carrega. Mais recentemente, a cidade também a ser conhecida por ser sede de uma igreja Assembléia de Deus que oferece a chamada ‘cura gay’.

O pastor Wellington Rocha, que foi vereador duas vezes na cidade, uma pelo MDB e outra pelo PSD, é enfático ao dizer que a igreja oferece apenas abrigo e acolhimento para quem está à procura. Ele teve contato com Karol Eller, influencer bolsonarista que tirou a própria vida um mês anunciar ter passado pela cura gay. Wellington Rocha conta que Karol Eller relatou se sentir infeliz com a própria sexualidade. Segundo ele, Eller contou ter sido abusada pelo pai e enfrentado problemas com drogas nos Estados Unidos.

Wellington Rocha afirma que não discrimina seus fiéis homossexuais, mas diz a eles que “é preciso que se adequem às normas e culturas da coletividade”. O pastor afirma: “Para frequentar a igreja sem problemas, é preciso andar de acordo com as normas. É preciso sim fazer mudanças.” 

Ao ser questionado sobre a oferta do serviço de reorientação ou reversão sexual nas dependências do templo, o pastor diz:  “É uma escolha. Viver no pecado é uma escolha”. Wellington Rocha atribui a morte da influencer à depressão, e não ao suposto tratamento realizado no retiro. O “homosexualismo” (palavras do pastor) não era o grande problema de Karol, em sua percepção. 

Wellington Rocha afirmou à reportagem que Karol Eller já havia escrito sua carta de despedida duas semanas antes de chegar a Rio Verde para o retiro. Afirmou ainda que chegou a ouvir de trechos desse adeus lidos por Karol Eller. Ela teria recebido abrigo após anunciar, em uma live nas redes sociais, que ‘não suportava mais’. 

A influencer de direita, já dava sinais sobre o suicídio que seria cometido dalí a algumas semanas durante sua estadia no retiro Maanaim, que acontece uma vez por mês. “Lá é assim, a gente prega a palavra de Deus, ministra, fala sobre paternidade, sobre o perdão”, garante o pastor.

O site do retiro descreve a experiência como “um momento que você tem a oportunidade de estar separado para um experiência com Deus, vivendo um tempo de edificação, restauração, libertação e tempo de intimidade maior com Deus”.

Influencer Karol Eller, conhecida por seu apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) | Foto: Divulgação Redes Sociais.

Conhecendo Karol Eller

Wellington Rocha afirma ter tido seu primeiro contato com Karol Eller durante uma live. Ele conta que estava em uma chácara com outros pastores e parte do seu rebanho, quando começou a se sentir mal e foi para casa, ainda na madrugada. Ao chegar em casa, seu estado febril não o deixou dormir. Recebeu a notificação da live e, ao assistir, ouviu o desabafo e despedidas da Influencer Eller. Pediu para participar do ao vivo para fazer uma oração por ela. “Consegui acalmá-la e depois da live ela pediu meu contato e de lá pra cá conversamos bastante”, conta.

O contato se transformou em amizade que culminou em um convite para que ela fizesse parte do retiro Maanaim. Neste retiro, Karol Eller receberia bençãos e teria convívio com outros membros da igreja. “A homosexualidade dela foi o assunto que menos discutimos. Ela confessou que queria formar uma família, ter filhos, mas não queria adotar. E mesmo assim, a gente sabia que ela mantinha contato com a ex-namorada”, relata.

Karol Eller chegou a Rio Verde com uma bagagem de problemas psicossociais, já tendo sido diagnosticada com depressão e ansiedade. Os vícios da jovem de 36 anos também foram notados pelas pessoas que conviveram com ela durante os três dias de retiro. O fumo e os jogos de aposta, que acarretaram em dívidas com agiotas e donos de cassinos que a perseguiram até os seus últimos dias.

As dívidas de Eller chegaram a ser quitadas pelos membros da Igreja, que se reuniram para uma vaquinha, conta Wellington Rocha. De acordo com o pastor, o valor devido ultrapassava R$ 20 mil e a influencer não tinha como pagar o montante. “A gente a tranquilizou quanto a isso; dissemos que ela podia devolver a vaquinha quando conseguisse. Só com essa ajuda ela já ficou muito bem, ficou alegre, voltou a socializar e brincou com a gente”, conta o pastor que ainda deu um celular para que ela fizesse uma rifa.

“Eu a adotei como uma filha”, diz pastor Wellington Rocha sobre Karol Eller | Foto: Raphael Bezerra / Jornal Opção

Ajuda psicológica e espiritual

Wellington Rocha relata uma conversa que teve com Karoll Eller enquanto estavam no retiro. Ela teria afirmado ao pastor que queria renunciar às práticas [homossexuais] e aos ‘pecados. “Eu disse assim: Karol, tem certeza? Porque é uma coisa muito difícil”, teria explicado o pastor. Ao continuar a conversa, ele lembra que a bíblia “condena o ‘homosexualismo’”, mas que não é uma imposição. “É como quando você vai entrar em uma empresa e te dizem: aqui na firma é o seguinte, tem que usar uniforme laranja e calça azul”, compara.

Ao perceber a delicada situação da influencer, o pastor conta que buscou ajuda com uma psiquiatra para auxiliar no tratamento da jovem. Antes de chegar a Goiás, ela já havia se consultado com profissionais e tido remédios psiquiátricos pagos pela igreja, segundo afirma Wellington Rocha.  “[A morte] não foi culpa da igreja. O que nós fizemos com aquela mulher foi simplesmente ajudar”.

“Quando descobrimos o quadro depressivo, decidi tentar envolver ela em brincadeiras e cantar e tal; falar de política, por exemplo. Eu a adotei como uma filha. Quando você tem um filho, você aceita o filho do jeito que ele é. No caso da Karol há muita especulação para encontrar um culpado. É muito maldoso. O que eu e a igreja fizemos por ela, inclusive financeiramente, foi ajudar”, conta.

Projeto da ‘cura gay’ nasceu de deputado goiano

O termo “cura gay” é usado para se referir à práticas pseudocientíficas que visam mudar a orientação sexual ou a identidade de gênero de pessoas LGBT+. Essas práticas são baseadas na ideia de que a homossexualidade é uma doença, um transtorno ou uma escolha, e que pode ser revertida por meio  de terapias, intervenções religiosas ou outras formas de coerção.

No Brasil, o tema começou a ser discutido no Congresso Nacional em 2013, quando o deputado João Campos (PSDB-GO) apresentou um projeto de decreto legislativo que pretendia suspender uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe os psicólogos de participarem de terapias de conversão. O projeto ficou conhecido como “PL da Cura Gay” e gerou uma grande polêmica na sociedade civil e na mídia. Após pressão, o projeto foi arquivado pelo próprio autor.

No entanto, a questão não foi encerrada. Em 2017, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, concedeu uma liminar que autorizava psicólogos a atenderem pacientes que buscassem tratamento para mudar sua orientação sexual. A decisão foi vista como uma violação da resolução do CFP e um retrocesso nos direitos humanos. O CFP recorreu da decisão e conseguiu derrubá-la em 2018, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

A ciência, por sua vez, é categórica ao afirmar que a homossexualidade não é uma doença, um transtorno ou uma escolha, mas sim uma variação natural da sexualidade humana. Diversas organizações internacionais de saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Associação Americana de Psiquiatria (APA) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), reconhecem que a homossexualidade é uma expressão saudável da sexualidade e que não há evidências científicas que sustentem a eficácia ou a ética das terapias de conversão.

Há estudos que mostram que essas práticas podem causar danos psicológicos graves aos indivíduos submetidos a elas, como depressão, ansiedade, baixa autoestima, isolamento social, ideação suicida e tentativas de suicídio. Além disso, essas práticas violam os princípios éticos e os direitos humanos das pessoas LGBT+, ao negarem sua dignidade, sua identidade e sua liberdade.

Deputados pedem investigação e indiciamento

Três parlamentares do PSOL, Erika Hilton (SP), Pastor Henrique Vieira (RJ) e Luciene Cavalcante (SP), solicitaram ao Ministério Público Federal (MPF) uma investigação sobre a igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, Goiás, por suspeitas de promover a chamada “cura gay”. A ação, apresentada nesta segunda-feira, aponta a igreja como responsável pelo retiro ‘Maanaim’, onde supostamente são realizadas terapias de “conversão sexual,” visando alterar a orientação sexual de jovens LGBT para heterossexualidade.

A denúncia destaca o caso da influencer bolsonarista Karol Eller, falecida na semana passada após declarar que havia “renunciado à homossexualidade” após participar de um “retiro religioso.” Os parlamentares argumentam que as práticas de “cura gay” são consideradas tortura e agressão contra a comunidade LGBTQIAPN+, cujas características são inerentes e não passíveis de alteração.

O documento protocolado no MPF ressalta que as “terapias de conversão” são proibidas pelo Conselho Federal de Psicologia e sugere que a Assembleia de Deus de Rio Verde seja responsabilizada por possíveis crimes de homofobia, tortura psicológica e incitação ao suicídio.

Encontre ajuda

Centro de Valorização da Vida (CVV): O CVV é uma associação civil sem fins lucrativos que visa a prevenção ao suicídio. A organização possui diversos meios de contato, como e-mail, chat e até postos presenciais, mas o mais disseminado é o telefone: 18812.

DisKardec: O DisKardec é um serviço independente que visa o atendimento fraterno por bate-papo ou telefone para que as pessoas possam desabafar.

Pode Falar: Apoiado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o Pode Falar é um canal de ajuda em saúde mental para pessoas entre 13 e 24 anos.

Em Goiás

Centros de Atenção Psicossocial (Caps): Os Caps são unidades de saúde especializadas em saúde mental 3.

Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e de Pronto Atendimento (UPAs): As UBSs e UPAs oferecem atendimento médico à população.

SAMU 192: O SAMU oferece atendimento pré-hospitalar à população.