Planos diretores precisam de melhor redação para não serem “driblados”
10 outubro 2015 às 13h29
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Municípios padecem com leis urbanísticas vulneráveis porque quem as elabora não se atém de forma adequada a questões do Direito Urbanístico, área ainda pouco explorada no Brasil
Elder Dias
Em 2017, uma missão vital para Goiânia estará nas mãos dos vereadores eleitos meses antes: proceder a revisão do Plano Diretor da capital. Como prevê o Estatuto da Cidade e o próprio documento, o instrumento que rege o ordenamento territorial da cidade deve passar por esse processo a cada dez anos, sendo permitida uma atualização no intervalo desse período.
O atual Plano Diretor, em vigor desde 2007, é incensado por todos: políticos, construtores, técnicos e urbanistas tendem a considerar que a lei é boa. Pode não ser tanto assim. Foi o que deixou entrever a fala do advogado Toshio Mukai, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Administrativo, Urbanístico e Ambiental durante sua passagem por Goiânia, na última semana. Durante sua palestra no Seminário de Política Urbana “Pensar a Cidade”, promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-GO), ele disse em alto e bom som: “A verdade é que vocês, urbanistas, não sabem fazer plano diretor.”
O recado está dado: é preciso que, ao traçar diretrizes urbanísticas, antes se tenha a letra da lei como base de apoio para o que será elaborado. “É preciso que haja juristas que busquem atender o estado de direito na Constituição”, ressalta Mukai. Afinal, de nada adianta um Plano Diretor bem intencionado e aparentemente bem redigido se tudo isso puder ser atropelado. E como isso pode ocorrer? Pelas artimanhas dos profissionais do Direito. É que, para “driblar” o que está escrito em estatutos e normas diretrizes, como é o caso de um Plano Diretor, advogados e juristas a serviço de empresas podem usar (e usam) de princípios baseados em um instrumento soberano: a Constituição Federal.
Há muitas lacunas e inconstitucionalidades em vários dispositivos legais sobre questões urbanísticas e ambientais, diz Toshio Mukai. E ele cita um fato interessante: a Lei Complementar 140, de 2011, que mudou a legislação ambiental, cobriu uma deficiência legal de 30 anos, período em que os municípios não tinham competência para legislar sobre o meio ambiente. Um período, portanto, aberto a muita distorção.
Legislação nos municípios
Um dos problemas levantados por Toshio Mukai sobre a questão é a fragilidade técnica dos municípios brasileiros em relação às leis urbanísticas e ambientais: “Grande parte dos municípios não têm capacitação profissional para elaborar legislação ambiental. Dos mais de 5,5 mil municípios que temos, só cerca de 2,2 mil têm legislação ambiental”, informa. “Sobre a questão de estrutura para a área ambiental, estamos tentando fazer esse diagnóstico nos municípios goianos, mas muitos prefeitos nem chegam a receber o ofício. Precisamos reconhecer como está Goiás em relação ao meio ambiente”, informa a arquiteta Regina de Faria Brito, coordenadora da Comissão de Política Urbana e Ambiental do CAU-GO.
O professor Everaldo Pastore, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), arquiteto, ambientalista e coordenador da Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente (Arca), diz que uma solução é que o Estado dê suporte às prefeituras com um corpo técnico competente. “Isso ficaria muito mais barato do que cuidar das consequências dos desordenamentos ambientais.”
Pastore considera que o surgimento do CAU traz novos rumos para a questão urbanística em todo o Brasil. “Isso tem uma importância histórica. Quando há algum deslize, como advogado ou médico cada qual tem sua ordem para responder pelo que fez. As cidades nunca tiveram amparo, porque o Crea [Conselho Regional de Engenharia e Agronomia, que até 2011 abrangia também os arquitetos e urbanistas] nunca se preocupou em saber se os planos das cidades são feitos de forma técnica legal. Isso agora vai mudar.”
Regina concorda que é preciso que a classe se ocupe mais da forma técnica, inclusive para os embates políticos — como o da elaboração do próximo Plano Diretor de Goiânia. “O setor imobiliário é organizadíssimo e já está pensando em como agir em qualquer situação que lhe interesse.”
Há algumas semanas, a arquiteta Maria Ester de Souza, também vice-presidente do CAU-GO, foi bem clara ao Jornal Opção sobre como terminam as batalhas contra a investida de verticalização de antigos bairros residenciais por grandes empreendimentos. “O céu é o limite. Basta ter o terreno.”
É bem verdade que a lei, amparada na própria Constituição e no Estatuto da Cidade, busca ampliar e democratizar cada vez mais esse tipo de debate. Tanto é que há a previsão de que nenhuma obra de alto impacto na área urbana se dê sem a realização de audiências públicas. O problema é que elas acabam não sendo conduzidas da forma como deveriam: viram apenas atos formais. “As audiências públicas existem como uma exigência da lei. Mas, de fato, não existe nelas a participação popular, geralmente estão presentes apenas os interessados diretos. No fim, quem a lei está beneficiando? Ela está resolvendo problemas ou está aumentando esses mesmos problemas?”, questiona Regina.
O fato é que o cenário para 2017 já está colocado: Goiânia, uma cidade que cresce mais do que se desenvolve, que enfrenta um processo descontrolado e irracional de verticalização e que atualmente tem cada vez mais entupidas suas principais artérias de mobilidade. Sem tirar o olho da letra da lei, pelo contrário, mas é preciso ser na prática uma cidade bem mais sustentável do que tem sido em teoria.