Plano Diretor de Goiânia: após 5 anos de demora, uma estranha e suspeita pressa para aprovação

09 janeiro 2022 às 00h04

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A capital está nas mãos de políticos que, depois de tomarem o poder, fazem o que bem entendem com as leis que lhes caem nas mãos
Daqui a um tempo, décadas à frente, algum curioso vai pesquisar sobre a história de Goiânia, tentando entender como aquela cidade, que um dia tinha sido acolhedora, arborizada e com boa qualidade de vida, se tornou tão inóspita, sem água potável, um amontoado de prédios e loteamentos caóticos, recheada de lotes e imóveis vazios.
Em tempo: essa introdução não é uma praga que o autor do texto joga sobre a cidade, ao falar em uma Goiânia com falta d’água e aspecto de uma supervila fantasma no futuro. É o que infelizmente parece ser reservado para seus cidadãos com uma classe de políticos que, ao se apossar do poder, fazem o que bem entendem com as leis que lhes caem nas mãos de acordo com as conveniências.
Em seus estudos, o pesquisador vai certamente parar os olhos em 2022, atônito, diante do Plano Diretor que esses políticos aprovaram para aquela metrópole.
“Plano diretor” é um termo autoexplicativo: um documento elaborado com planejamento, cuja função é direcionar o rumo de uma cidade. O destino da capital de todos os goianos está traçado neste conjunto de artigos e parágrafos, que, segundo a própria lei, deve ser revisto a cada dez anos.
Deixando o estupefato pesquisador de lado e voltando ao presente, a coisa já começa errada a partir deste ponto: o descaso de quem administra ou legisla está na protelação da análise do Plano Diretor de Goiânia (PDG). A atual Câmara não deveria nem estar tendo esse tema como pauta. Conforme a versão do PDG aprovada em 2007 estabelecia, o prazo para sua revisão era de dez anos. Ou seja, deveria ter ocorrido já em 2017, com o quadro anterior de vereadores.
Pior do que esse atraso de meia década, como se não fosse tão sério assim discutir os rumos da cidade, é o que ocorreu quando agora resolveram enfim trabalhar no projeto. O documento mais importante da cidade, depois de quase cinco anos, foi aprovado pela comissão especial do Legislativo na quarta-feira, 5, terceiro dia útil do ano, sem que sua versão final para votação, totalmente distorcida da que havia sido discutida, tivesse sido apresentada à população. Isso depois de passar mais de um ano trancado no Paço Municipal, sendo manuseado por uma dezena de pessoas em um grupo de trabalho composto por técnicos da Prefeitura, vereadores e gente do ramo imobiliário.
Veja bem: depois de mais de três anos (de 2017 a 2020) de embates, discussões e audiências públicas, um seleto grupo de trabalho pouquíssimo representativo toma as rédeas do documento e faz mais de cem alterações. Essas mudanças passam pelo gabinete do prefeito, Rogério Cruz (Republicanos), sofrem modificações – com direito a acréscimo de emendas coletivas de vereadores, para evitar digitais – e então saem do Paço, no fim de novembro, diretamente para a Comissão Mista da Câmara de Goiânia, a fim de o PDG ser votado até o fim de dezembro.
De novo, pausa para pensar: depois que o então prefeito Iris Rezende, em setembro de 2020, pediu de volta ao Executivo a proposta do Plano Diretor que tinha, aquela sim, sido discutida com a cidade, com a mudança de administração ficaram mais de um ano com o projeto para devolvê-lo exigindo votação a toque de caixa, sem mais nenhum debate? Com mais de uma centena de mudanças? Com uma dúzia e meia de emendas? “Por que tanta pressa? Pra que tanta ansiedade?”, diria um ex-ministro fardado.
Aliás, para que serviram as audiências públicas dos três anos anteriores, se depois mudaram tudo dentro de uma sala na Prefeitura para levar à aprovação urgente do Legislativo? Focando um pouco mais, qual o motivo da urgência repentina sem prazo fatal no calendário que implicasse algum prejuízo à lei?
Foi o que o Ministério Público (MP-GO), algumas entidades e lideranças da sociedade civil tentaram entender. Não quiseram explicar nem debater. A ordem, combinada com o Paço, era votar rápido. Não fosse o mandado de segurança impetrado por Mauro Rubem (PT), o único legislador que claramente se posicionou contra a manobra, o plano dos colegas de votar em dezembro e ir curtir férias em seguida teria sido bem sucedido.
A liminar da Justiça fez ocorrer, a contragosto visível dos vereadores, uma audiência pública no dia 4. Mas havia um problema: o relatório final tinha acabado de ser liberado, mas os mapas com as mudanças ainda não estava disponíveis. De novo uma artimanha para que a situação continuasse obscura.
Durante a audiência, os (poucos) vereadores presentes, com exceção do próprio Mauro Rubem, obviamente, denegaram a ideia de outras audiências ou mais debates. Afinal, segundo eles, tudo já tinha sido discutido demais.
Continuando a falácia, um daqueles “representantes do povo”, de primeiro mandato, se queixou de que as pessoas que ali estavam usando a tribuna ou o microfone do acesso remoto na audiência, protestando contra a pressa na votação, nunca o haviam procurado em seu gabinete. Na hora em que alguém sugeriu que então se abrisse esse tempo para a conversa direta dos cidadãos com seus representantes, ele ficou calado. Afinal, a ordem era votar logo. E ordens são ordens, um manda e outro obedece, diria de novo aquele ex-ministro.
Respondendo ao vereador, talvez, apenas talvez [ironia], não daria para ter a conversa no gabinete porque nem o cidadão nem seu representante teriam o que discutir, porque o que foi votado nunca esteve disponibilizado à população. E aqui é preciso entender o porquê de este texto ter colocado um cenário apocalíptico para Goiânia lá na introdução. É que o relatório produzido pela vereadora Sabrina Garcêz (PSD) e aprovado na Comissão Mista tem uma série de novidades que fazem qualquer estudante de urbanismo chorar de desgosto.
Uma delas é uma mistura de ovo de Colombo com jabuticaba: pretensamente, conforme a própria relatora argumentou, impede a expansão urbana além do limite atual da mancha ocupada. Só que libera 129 quilômetros quadrados da zona rural para serem urbanizados, se houver um parecer técnico ou alguma contiguidade (área vizinha já habitada). Ou seja, Goiânia poderá começar a crescer de “fora para dentro”, se na divisa rural com algum município houver um bairro “do lado de lá” – é o caso de Goianira, por exemplo.
Outra questão: o relatório de Sabrina aprova a expansão de grandes prédios além da área atual. Ou seja, além do crescimento horizontal de até 129 km², a capital verá 30 bairros antigos crescerem para cima, também. Uma “surpresinha” nada agradável para os moradores dessas regiões, não?
Mas talvez o mais surpreendente seja a disposição em arruinar as poucas áreas de preservação permanente (APP). Na cidade cujo local de construção foi escolhido por Pedro Ludovico pela abundância de água, se aprovado o Plano Diretor como está na proposta, dentro da área urbana será possível ignorar as margens atuais de preservação de cursos d’água para botar concreto em cima.
No fim de seu mandato, quando viu que a coisa poderia descambar para esse lado, Iris Rezende recolheu a proposta de Plano Diretor que tinha enviado à Câmara. A expectativa era de que Maguito Vilela, eleito prefeito, conduziria a batuta do processo todo com sua conhecida responsabilidade como político e homem público.
As mortes de Maguito Vilela e Iris Rezende pesaram bastante para o MDB. Claro que a sigla vai se adaptar, ganhar novos ares, mas o partido em Goiás nunca mais será o mesmo sem suas duas mais emblemáticas figuras.
O que ninguém conseguiria imaginar é que a falta da dupla impactaria tanto no destino de Goiânia. Saiu Iris, não entrou Maguito e a cidade foi jogada nas mãos do vice, um ex-vereador nascido no Rio e virou político em 2012 por estratégia de uma igreja, dois anos depois de se mudar para Goiânia.
Estranhamente – ou não –, nem Iris, com toda sua experiência, carisma e habilidade, teve uma base tão grande no Legislativo municipal. O que terá levado Rogério Cruz, em seu primeiro mandato, a obter tanto apoio assim na Câmara? E, mais, quais são os interesses que levam a uma iminente quase unanimidade em favor de uma proposta de Plano Diretor tão contrária ao básico de planejamento urbano e ao que se chama hoje de “economia verde”?
O que resta à população, agora, é acordar. Muito provavelmente, a pauta só vai a plenário em fevereiro. Os vereadores, de repente, cessaram a pressa. Mas vão colocar em pauta, quando voltarem de férias, de forma urgente, “para ontem”.
E um Plano Diretor para uma cidade-metrópole é algo difícil de digerir antes e depois de aprovado: antes, por ser algo técnico demais para o entendimento da população; e, depois, por ser muito impactante para a vida da mesma população. O tempo é curto, mas é preciso reagir para mudar o cenário que aquele pesquisador da Goiânia do futuro encontrará.