“PEC Kamikaze” alivia crise momentaneamente, mas evapora a longo prazo
31 julho 2022 às 00h00
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Economistas criticam o precedente de gastar extraordinariamente em ano eleitoral e a falta de especificação da origem do dinheiro
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 123/22, chamada de “PEC Kamikaze” ou “PEC das Bondades”, distribuirá mais R$ 40 bilhões em benefícios aos mais pobres. Para entender os impactos da medida nas finanças das famílias e do País, o Jornal Opção ouviu economistas críticos e favoráveis à medida.
A despesa anormal foi aprovada apressadamente e é considerada uma medida eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL), que tenta se aproximar de seu principal adversário, Lula (PT), na dianteira segundo pesquisas de intenção de voto para a Presidência. Juridicamente, a PEC é problemática por conceder uma série de benefícios sociais às vésperas das eleições, em um momento em que é proibido criar novas despesas em benefícios sociais. O Planalto, proponente da emenda, driblou a lei eleitoral (L9504) ao decretar “estado de emergência” no país, sob o pretexto dos altos preços de combustíveis, e assim permitindo gastos extraordinários.
Como será distribuído o dinheiro
- Ampliação das parcelas mensais do Auxílio Brasil, de R$ 400 para R$ 600 e cadastro de 1,6 milhão de novas famílias.
- Voucher de R$ 1 mil para caminhoneiros autônomos e taxistas.
- Ampliação de R$ 53 em auxílio-gás – valor de aproximadamente metade de um botijão de 13 kg segundo a ANP.
- Compensação aos estados para transporte gratuito de idosos – medida que já estava prevista em lei.
- Repasse de R$ 500 milhões ao programa Alimenta Brasil – o PAA ou Alimenta Brasil foi reduzido de R$ 586 milhões em 2015 para R$ 58,9 milhões em 2021. Até maio deste ano, apenas R$ 89 mil do orçamento federal estavam aplicados.
- Subsídio de R$ 3,8 bilhões em créditos tributários a distribuidores de combustíveis para manutenção da competitividade do etanol sobre a gasolina.
Estudo feito pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) mostrou que a fila de espera do Auxílio Brasil está crescendo novamente. São 2.788.362 famílias que atendem aos requisitos para receber o benefício mas não recebem os valores desde abril deste ano. Apenas esta despesa deve consumir R$ 26 bilhões da Pec Kamikaze.
Opinião dos economistas
Aurélio Troncoso, Coordenador do Centro de Pesquisas Econômicas e Mercadológicas na Faculdades Alves Farias (ALFA), afirma que, apesar das críticas jurídicas e políticas, a PEC é economicamente positiva por aliviar a situação de vulnerabilidade dos mais pobres em momento de crise. O economista tem expectativa de que a redistribuição de renda combata a inflação e favoreça a retomada do crescimento no final de ano.
“O Brasil enfrenta a inflação de custo”, comenta Aurélio Troncoso. “Isso acontece quando o aumento de preços é causado por falta de insumos – os produtos chegam caros às prateleiras por conta da alta no valor de combustíveis, energia elétrica, gás natural. A situação obrigou os empresários a administrar os preços, repassando aos consumidores suas despesas mais altas.”
“Agora, com o controle nos valores dos insumos, os preços param de subir. Em médio prazo, é improvável que os preços dos produtos diminuam, mas empresários terão margem para aumentar salários. Já estamos percebendo isso por meio dos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Há alta nos registros de pedidos voluntários de demissão – isso acontece quando as pessoas estão deixando seus empregos em troca de um trabalho com salário mais alto.”
Aurélio Troncoso afirma que existe uma pressão pela readequação no poder de compra. “Todos perdemos renda durante a crise econômica gerada pela pandemia. Após esses anos de paralisação industrial, os insumos voltam a chegar e a demanda cresce com os salários. A inflação impedia a compra excessiva; agora, o fator que impedirá a satisfação dessa demanda é a taxa básica de juros, que está acima de 12%. Espero que a Selic caia, pois ela impede o empréstimo para investimentos.”
O economista, entretanto, enxerga problemas quanto à origem do dinheiro. Sem justificar a fonte dos recursos para cobrir as despesas inesperadas, o texto da PEC coloca a demanda sobre orçamento extraordinário – isto é, crédito adicional para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. “O governo não pode dispor de orçamento sem explicar a origem dos gastos. Como o Congresso aprovou, o orçamento votado até o final deste ano terá de justificar a retirada de recursos outras áreas.”
Outra perspectiva
Everton Sotto é professor e vice-coordenador do Curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Goiás (Face-UFG). O economista também afirma que a origem do dinheiro deveria preocupar o Ministério da Economia, sob risco de violar a lei de responsabilidade fiscal. “Poucos anos atrás, o Brasil parecia ser radicalmente fiscalista, mesmo quando a rigidez vinha em detrimento da população. Hoje, tudo aparentemente está permitido.”
A medida, de fato, deve aliviar a pressão sobre as famílias mais pobres, mas apenas provisoriamente, diz Everton Sotto. “Se houvesse de fato uma preocupação com esse problema, a questão estaria sendo tratada desde o começo da pandemia, com os motivos do problema sendo atacados de forma estrutural. Mas, convenientemente, o governo só percebeu que a situação é ruim na véspera das eleições. O alívio já é algo, mas o Produto Interno Bruto (PIB) não cresce assim, com políticas provisórias e passageiras.”
Tampouco, a inflação será controlada por meio do abate dos preços dos combustíveis e gás, segundo o economista. Everton Sotto compara a “PEC Kamikaze” com as medidas de liberação de saque de FGTS, capazes de provocar otimismo em curto prazo, mas insuficientes para dinamizar a economia de forma duradoura. “É uma política midiática e eleitoreira. A economia do país é da ordem de nove trilhões de reais, então R$ 50 bilhões têm efeitos muito pequenos se distribuídos sem critérios ou objetivos específicos.”
A iniciativa é insustentável, segundo Everton Sotto, e conta com origens de receita que ainda não se consolidaram, como o memorando de investimento extrangeiro e privatização de áreas como telecomunicações com foco na tecnologia 5G. “É uma medida tão excepcional que não deveria ter sido tomada. Desorganiza de uma forma que será desafiadora para futuro governos”
Por último, Everton Sotto manifesta preocupação com o precedente criado. “Essa PEC pode gerar uma tradição de desrespeito às leis fiscais e eleitorais. O que impede que outros governos façam gastos extraordinários em anos eleitorais? Infelizmente, a Câmara e Senado parecem estar mais dedicados com as eleições do que com a saúde econômica do país.”