Com a internet e as redes, passamos a viver imersos em um mar de informação. E não ter ideia do que fazer com isso é como não saber nadar

Umberto Eco, o professor que anteviu o perigo do uso das redes sociais para espalhar boatos como o da mensagem abaixo | Foto: Divulgação

Elder Dias

“Só repassando”. A frase é quase um salvo-conduto – que, às vezes, parece (e deveria ser, como veremos) um pedido de desculpas – para compartilhamento de quaisquer conteúdos nas redes sociais e nos aplicativos de conversação de telefonia móvel, como o WhatsApp. O “só repassando” geralmente diz respeito a alguma notícia bombástica ou alguma cena chocante. Mais geralmente ainda, o indivíduo que reproduz esse tipo de mensagem não tem certeza alguma sobre a veracidade do que está espalhando.

Daria um bom trabalho científico (e creio que já haja até algum com esse enfoque em elaboração ou até já concluído) saber o que leva multidões a se deixarem seduzir pela fantasia de ser repórter por breves momentos, ainda que da forma mais precária e nociva. Se alguém desmentir a “notícia”, a resposta está pronta: “Só repassei”.

Se há alguém cuja síntese destes tempos foi vaticinadora este é Umberto Eco. Veja a íntegra do que disse o filósofo, professor e escritor italiano, no discurso ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Turim, em julho de 2015 – ele morreria em fevereiro do ano seguinte: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel.”

Seu último romance, “Número Zero”, lançado em janeiro de 2015, diz muito de sua preocupação. A ficção é sobre jornalismo e dá um retrato dele sobre a comunicação e a informação no século 21 tendo as redes sociais e a internet como um todo como seara de batalha de ideias, de notícias e de boatos. Para Eco, como disse em entrevista ao jornal “El País” era “imprescindível” que a verdade fosse buscada – mais do que isso, perseguida. Essa “caça” é o que poderia garantir, segundo o escritor, um futuro de democracia, liberdade e pluralidade.

Na quinta-feira, 23, após a morte uma briga entre grupos ligados ao tráfico dentro da Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG), em Aparecida de Goiânia, em que morreram cinco detentos, entre eles o líder de um dos bandos – Thiago César de Souza, o “Topete” –, áudios com supostamente a voz de bandidos aliados do morto começaram a circular no WhatsApp. Havia neles uma ameaça de “tocar o terror” na capital goiana, especialmente na região sudoeste, principal território da gangue. Não adiantaram as comunicações oficiais da Polícia Militar, garantindo se tratar de trote: as pessoas mudaram seus programas, faculdades dispensaram estudantes das aulas, feiras livres não se realizaram, como de costumo. A sociedade atendeu ao toque de recolher dos supostos bandidos. O boato venceu a sensatez.

É um paradoxo: as pessoas se sentem informadas por um áudio de origem desconhecida e, por causa dele, sentem-se no dever de repassar a “notícia”; ao mesmo tempo, se confrontadas com uma fonte oficial – seja uma autoridade do governo ou um cientista, por exemplo –, reagem com um pé atrás. Não que devessem acreditar cegamente no que porventura afirmasse alguém portador de certa qualificação para tal tema, mas o que faz, então, levar adiante uma informação não confirmada? O sentimento de estar prestando um favor? Dando sequência a uma corrente de solidariedade? Ajudando a solucionar um crime? No fundo, há um embrião de repórter em cada um. Como diz Eco, todos se sentem capazes de exercer a função de jornalista, porque a todos é dada uma quantidade imensa de informação todos os dias.

Mais do que quaisquer outras pessoas, são os repórteres propriamente ditos que estão mais cheios de dados e informações. Embora alguns incorram na vaidade de publicar um fato em primeira mão sem os devidos cuidados, a ética diz que tudo deve ser primeiramente checado de forma arguta.

Ainda que não com a presteza e a profundidade de um profissional da comunicação, quem se sente jornalista poderia da mesma forma incorporar também essa função do ofício de repórter: a checagem. Mecanismos não faltam, na própria internet. O maior e mais acessível deles é o Google, que pode ser usado a qualquer momento em qualquer plataforma – computador de mesa, laptop, smartphone, tablete etc.

Foto: Reprodução

O Google evitaria um boato que circula com vigor no WhatsApp, apesar de ter origem bem antes de o aplicativo ser imaginado. Segundo a “notícia”, o Congresso Nacional estaria votando o fim do 13º salário, o que já teria sido votado e aprovado pela Câmara e seguiria, então, para o Senado. Uma notícia crível para muitos, já que há uma reforma trabalhista em andamento no Legislativo nacional. Mas bastaria um pouco de atenção e informação atualizada para saber da fraude: alguns dos deputados citados já morreram, outros não se reelegeram e há até um entre os nomes que está preso na Operação Lava Jato. Dois partidos também não existem mais: o PPB (hoje PP) e o PFL (que virou DEM).

Seguindo com os preceitos de Umberto Eco, com a internet e as redes sociais passamos a viver imersos em um mar de informação. Não saber o que fazer com isso é como não saber nadar. Repassar uma suposta notícia como algo verdadeiro, sem a devida confirmação, é como se debater para se livrar da água. O que se consegue, no máximo, é aumentar o próprio pânico e o das pessoas que consegue atingir.

Trabalhar com o excesso de informações usando a tática de jogar para o próximo rapidamente o que se recebe, como se fosse uma batata quente, não é nada mais do que se robotizar. Contribui mais para a ignorância e para o medo do que para o conhecimento. É tênue a linha entre “repassar” e “compartilhar”, mas pode ser esta: a segunda atitude faz a partilha do comum e demonstra envolvimento com uma causa; já a primeira é uma repetição, uma reprodução, uma reverberação. Um eco que Eco jamais recomendaria.