Pacotão de Moro é recebido com ressalvas por ex-secretários
09 fevereiro 2019 às 14h54
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Ponto mais controverso é a prisão em segunda instância, considerada por alguns como inconstitucional
Concebido pelo Palácio do Planalto como primeira grande ação do Governo Bolsonaro, o Projeto de Lei Anticrime, divulgado pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, está longe de ser unanimidade entre ex-secretários que atuaram na segurança pública e no setor penitenciário de Goiás. Quatro deles, ouvidos pelo Jornal Opção, ainda que apontem alguns aspectos positivos, por outro lado criticam a timidez no ataque a problemas estruturais e até mesmo a falta de sensibilidade política na apresentação das propostas.
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O pacote, levado a público por Moro há pouco mais de uma semana, prevê mudanças em 14 pontos dos Códigos Penal, de Processo Penal e Eleitoral e das Leis de Execução Penal e de Crimes Hediondos. As medidas buscam atacar tanto a criminalidade ordinária, essa que assusta as pessoas nas ruas (como assaltos, furtos e homicídios), quanto os chamados crimes de colarinho branco (em bom português, corrupção). Moro, inclusive, já teve de alterá-lo, para incluir reivindicações de governadores.
Um dos aspectos mais controversos do Projeto de Lei Anticrime é a prisão após condenação em segunda instância. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem, ao longo do tempo, mudado sua posição quanto ao tema. Desde 2009, o Tribunal considerava que o réu só poderia ser preso após sentença transitada em julgado. Em 2016, contudo, ao julgar o caso de um homem condenado por roubo qualificado, os ministros da corte mudaram o entendimento e admitiram que ele fosse preso antes do esgotamento de todos os recursos. O caso voltará à pauta do STF em abril.
“Tenho convicção plena de que, qualquer lei que venha a estabelecer a prisão independentemente de exauridos todos os níveis recursais previstos no ordenamento brasileiro, é uma lei inconstitucional”, diz o procurador João Furtado, que foi secretário a Segurança Pública de Goiás de janeiro de 2011 a outubro de 2012. “Essa é uma convicção de acordo com minha formação como advogado e que não foi alterada até hoje pelos argumentos apresentados pelos defensores da prisão após a segunda instância”, afirma. “O Brasil enfrenta uma onda de corrupção e desenvolve o combate à ela, mas (a prisão antes do trânsito em julgado) são medidas pontuais, excepcionais e não coadunam com a Constituição”, complementa João Furtado.
Mesmo elogiando boa parte do projeto, nesse aspecto em particular a opinião do secretário de Governo Ernesto Roller, que ocupou a pasta da Segurança Pública entre 2007 e 2010, é semelhante à de Furtado. “A única ressalva que faço (ao projeto) diz respeito às matérias de natureza processual. (O projeto) pretende vitimar a amplitude da defesa, o princípio da não culpabilidade consagrado na Constituição Federal”, diz.
“Entendo que não podemos submeter uma pessoa à prisão sem que aja pelo menos uma revisão do julgamento em primeira instância, como se percebe com a proposta de que crimes julgados pelo Tribunal do Júri tenham a execução da pena de forma imediata”, explica Roller. Atualmente, é possível recorrer em liberdade de uma condenação pelo Tribunal do Júri, que julga crimes dolosos contra a vida, como homicídio, o que, em casos rumorosos, costuma causar comoção na população.
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Para Ricardo Balestreri, secretário de Segurança Pública e Justiça de Goiás entre 2017 e início de 2018, ex-secretário Nacional de Segurança Pública e atual secretário da Cidadania do Pará, a prisão em segunda instância representa uma excessiva flexibilização de princípios constitucionais. “Não passa de um casuísmo para responder questões políticas. Mover a Constituição, interpretar a Constituição conforme interesses políticos casuísticos é sempre um perigo porque responde-se aos casos que estão sendo contemplados, mas retira-se direitos inalienáveis do conjuntos da população”, afirma.
“Politizar a interpretação das leis é profundamente temerário e inadequado do ponto de vista de uma democracia constitucional”, alerta. Balestreri acredita que somente uma nova Assembleia Constituinte poderia modificar o entendimento sobre a possibilidade de prisão imediata ou em segunda instância.
Presidente da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Goiás, Edemundo Dias, que foi secretário de Justiça (2003-2008), secretário de Administração Penitenciária (2011-2014) e diretor-geral da Polícia Civil (2011), acredita que Sérgio Moro pecou estrategicamente e tecnicamente na elaboração do projeto, o que pode causar dificuldades política para aprová-lo. Para Dias, o ministro errou ao não dialogar previamente com os congressistas, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, integrantes da OAB e outras instituições. “Parece que todo o projeto foi encaminhado com muita pressa. Há pontos que podem ferir alguns preceitos constitucionais”, avalia, ao lembrar que há mais de 200 matérias sobre o assunto tramitando no Congresso. “Muita coisa que já está lá poderia ser aproveitada”, avalia.
Segundo Edemundo, há um clamor social que levou o Governo a tentar dar uma resposta rápida. “Mesmo que esse clamor popular exija medidas duras, no meu ponto de vista faltou combinar com os russos. No caso, os russos é o sistema prisional”, diz, em uma relação com a folclórica declaração do atacante da Seleção Brasileira Mané Garrincha que, nos preparativos para a Copa de Mundo de 1958, questionou as instruções do técnico Feola antes do jogo contra a União Soviética com a pergunta: “O senhor já combinou com os russos?”
De acordo com Edemundo, o Brasil o déficit prisional e o número de mandatos em aberto no País são empecilhos para políticas que culminem em mais prisões. “Toda medida que incentive o aumento de prisões vai esbarrar no sistema prisional e sua total falta de estrutura”, acredita. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, estima que exista uma carência de mais de 350 mil vagas nos presídios em todo o Brasil. No projeto de Moro, um dos pontos prevê incentivos para que os Estados construam mais presídios de segurança máxima para criminosos de alta periculosidade.
Professor de Direito Constitucional e Teoria da Constituição, o ex-secretário da Segurança Pública Jônathas Silva (2002-2005) também é cético em relação a algumas propostas do Projeto de Lei Anticrime. “Não é só aumentar a pena. Não é por aí. Temos problemas. Muitas vezes o sistema judiciário é deficiente nos julgamentos. Temos problemas sérios na Polícia Judiciária. Qual o percentual de crimes que são solucionados?”, questiona.
Sobre a prisão em segunda instância, Silva tem um pensamento diferente aos dos outros secretários ouvidos. “O sistema tem muito recursos. Nesse aspecto o Moro mandou bem”, afirma, sobre a intenção do ministro de explicitar a possibilidade de prisão após julgamento de colegiado – um dos centros da polêmica envolvendo o encarceramento do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, condenado em primeira instância justamente pelo atual ministro de Justiça e Segurança Pública.