Octo Marques dedicou a vida a retratar Vila Boa, mas foi considerado incômodo por ela
09 abril 2023 às 00h00
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Em artigo recente, o artista plástico Nonatto Coelho classificou Octo Marques como o “Van Gogh do Cerrado” pela qualidade estética de sua obra. Como o Van Gogh holandês, o goiano também foi humilde, vendeu sua arte por pouco dinheiro e só teve o reconhecimento merecido após a morte. Octo Marques dedicou sua vida a retratar a cidade de Vila Boa, mas que foi considerado incômodo por ela. O Jornal Opção conversou com alunos, filhos e artistas para compreender este, que foi um dos maiores pintores da história de Goiás.
Biografia
Octo Outurino Marques nasceu na então capital do Estado de Goiás, Vila Boa, no dia 8 de outubro de 1915 – seu nome de batismo, “Outurino”, é uma referência ao mês de nascimento. Segundo registros deixados pelo próprio Octo Marques no livro autobiográfico “Casos e Lendas de Vila Boa” , de 1977, seus pais eram músicos tradicionais da Cidade de Goiás. Ele afirma ter começado nas artes plásticas aos sete anos de idade, de forma muito peculiar.
Ainda segundo os registros de seu livro de memórias, aos sete anos de idade, Octo Marques já vendia os bolos de arroz e outras quitandas que sua mãe fazia. O garoto tinha permissão para entrar na Cadeia da cidade de Goiás – atualmente o Museu das Bandeiras. Ali, conheceu um detento chamada “Velho Pedro”, que era desenhista. Conforme Octo Marques escreveu em Casos e Lendas, “este homem foi meu primeiro e único professor de desenho”.
A artista plástica Marly Soares Mendanha Bavani foi aluna de Octo Marques na Escola Veiga Valle – instituto do qual posteriormente se tornaria professora e diretora. Em função de seu projeto “Octo Marques, a Trajetória de um Mestre”, Marly Mendanha pesquisou os escritos do artista e encontrou alguns fatos curiosos: “Nos registros da Cadeia, vemos que o tal ‘Velho Pedro’ nunca quis sair de lá, mesmo depois de cumprir pena. Ele vivia lá porque se acostumou, e se recusava a deixar o lugar.”
Com a prática, o talento de Octo Marques foi se tornando reconhecido. O artista escreve que a casa de sua infância estava sempre cheia de romeiros interessados em seus desenhos. Os fiéis em procissão pediam que o jovem registrasse suas mutilações e doenças, e levavam os papéis com as ilustrações até Trindade, para serem depositados na Galeria dos Milagres. Octo Marques escreve ainda que não recebia dinheiro por esse trabalho, mas recompensa melhor: “Bolos, doces, salgados, quitandas. Eu era um menino louco por guloseimas.”
Além de desenhista, pintor e escritor, Octo Marques foi ceramista, ilustrador e gravurista. Esta última arte, o artista afirma ter aprendido com um ourives de Catalão de quem se sabe apenas o apelido – Zinza. Ao todo, produziu mais de duas mil obras. Colaborou também com jornais e deu entrevistas.
Em entrevista publicada em 30 de setembro de 1979 no Suplemento Cultural do jornal O Popular, Octo Marques foi perguntado por Augusta Faro Fleury de Melo acerca de seus planos e sonhos. Ele afirmou: “Gostaria ainda de ter uma coluna semanal no Jornal Opção, intitulada “Bilhetes de Vila Boa” – de assuntos gerais e variados.”
Vida pessoal
Octo Marques teve um filho biológico, que morreu quando era bebê, e teve cinco filhos adotivos. Um de seus filhos, conhecido na cidade de Goiás como ‘João Gambá’, foi tema de um documentário de Marly Mendanha.
https://www.youtube.com/watch?v=9TWbcMl1e9o
Marly Mendanha se lembra da personalidade de Octo Marques: “Era uma pessoa humilde, simples. Todos que convivemos com ele nos lembramos que era uma pessoa tranquila, avessa aos conflitos. Nunca foi vaidoso ou se vangloriou do reconhecimento que recebeu como artista.” Ela recorda dois episódios em especial com o artista – um triste, outro cômico.
“Um dia, na escola Veiga Valle, nós estávamos conversando”, conta Marly Mendanha. “Octo me disse, ‘Ó, Marly, se eu pegar uma tela dessas minhas e pedir no mercado para trocarem por comida, eles não trocam’. Eu achei isso triste, porque deixou claro que Octo já tinha tentado trocar sua arte por alimentos e não conseguiu. A batalha para sustentar a família com arte com certeza não foi fácil, mas isso fez parte de sua vida e caracteriza sua obra, independente das dificuldades.”
“Situações engraçadas aconteciam sempre que ele ia se referir à própria arte. Ele chamava os próprios desenhos de ‘rabiscos bisonhos’, considerava sua pintura provinciana. Uma vez, em sua casa, eu disse: ‘Octo, vou trazer minha máquina fotográfica para fazermos umas fotos juntos’, e ele respondeu: ‘se você não se importar de sair com um feio…’.”
Expressão e recepção
Quanto ao conteúdo de suas telas, gravuras, cerâmicas e ilustrações, Octo Marques dedicou a vida a registrar o cotidiano, a beleza e a cultura da cidade de Goiás. Entretanto, em vida, não foi celebrado pela cidade – pelo contrário.
O escritor José Mendonça Telles escreve: “Muita gente em Goiás, dotada de certa cultura e bem assentada na vida, não aceitava Octo Marques. Sua figura humilde, com ar de mendigo (mendigo de Deus), esbarrava em preconceitos enraizados desde os tempos de Goiás colonial. Mas – o que essa gente não vislumbrava – aquela figura maltrapilha escondida a grandeza de um artista, despreocupado com as graníolas do mundo. Estive com ele diversas vezes nos bons tempos de estudante. Certa vez, fomos em visita à casa de uma família que definirei como “quatrocentona”. Octo foi mal recebido, olhado com desprezo. A situação ficou tão embaraçosa, que resolvi me despedir.”
Nonatto Coelho concorda com a percepção, e cogita uma explicação para a rejeição: “Octo Marques foi uma pedra no sapato, foi um tópico espinhoso. Em seus textos, ele falava dos coronéis, do racismo, dos erros de uma comunidade tradicional e pequena. Octo Marques foi desencorajado a produzir sua arte, e sua produção aconteceu apesar de tudo. Foi relevante e original justamente porque tinha essa paixão, que o compeliu a produzir mesmo com as contrariedades.”
Marly Mendanha afirma: “Ele estava à frente de seu tempo e não foi bem compreendido na Vila Boa interiorana e tradicional. Ele já falava de ambientalismo, do racismo, da exploração dos trabalhadores. Era um questionador, um crítico. Deu visibilidade aos pobres: lavadeiras, carregadoras, caminhantes, lenheiros, bandas de música, burrinhos de carga, folclores, costumes, arquitetura – enfim, a figuras típicas tradicionais de Goiás e sua geografia foram seu objeto de interesse. Seu trabalho foi, acima de tudo, humano.”
Existem registros de diversas exposições organizadas com suas obras – em especial após sua morte – e de comentários elogiosos à sua produção publicados na imprensa. A maior parte de seus amigos parecia vir de fora da cidade de Goiás. Além do escritor José Mendonça Teles, também era próximo do jornalista e empresário Jaime Câmara, que financiou algumas de suas mostras. Teve convívio com artistas, poetas e musicistas contemporâneos e, frequentemente, era descrito como um boêmio.
Morte
Octo Marques morreu aos 73, em 22 de abril de 1988. Naquele mesmo mês, o secretário de Cultura do governo Santillo, o escritor Kleber Adorno, inaugurava um centro de artes no edifício Parthenon Center, em Goiânia. Por sugestão de José Mendonça Teles, o lugar foi batizado como Centro Cultural Octo Marques. Atualmente, funcionam no centro duas galerias e a escola de Artes Visuais, fundada em 1992, sob a responsabilidade do professor de artes plásticas, Agnaldo Coelho. Passaram pela escola grandes nomes da arte goiana, como Walter Pimentel, Marú, Estevão Parreiras, Izabela Brito e Okun.
Outros projetos levaram seu nome. Marly Mendanha , como professora na Escola Veiga Valle, coordenou o projeto “Octo Marques, a Trajetória de um Mestre” em 2009 e 2010. O projeto culminou com exposição na Escola de Belas-Artes com mais de 40 artistas exibindo releituras de obras de Octo Marques. Um selo postal foi lançado em celebração do evento e a casa onde Octo Marques viveu foi reaberta ao público como museu. Octo Marques foi homenageado em 2010 no Festival Internacional de Cinema Ambiental (Fica, 12ª edição).
A ex-aluna afirma sobre o legado de Octo Marques: “Sua contribuição é inestimável. Eu o considero um dos maiores artistas Goianos da História. Sem dúvidas, um artista completo: poético, pictórico, estético, documental. Único e original. Eu me inspiro muito em seu trabalho. Ainda gosto de pintar as carregadeiras recolhendo água dos chafarizes, de uma época quando não havia água encanada em todas as casas, e faço em memória e referência a Octo.”