O que significaria para o Brasil a quebra de patentes das vacinas?

09 maio 2021 às 00h00

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Pesquisadores dizem que a medida não resolveria o problema da falta de imunizantes em curto prazo e poderia prejudicar relações internacionais, mas existem argumentos éticos e científicos a favor da medida

Na quarta-feira, 5, a gestão do presidente americano Joe Biden informou que é favorável à suspensão de proteções de propriedade intelectual de vacinas contra a Covid-19. O processo, conhecido como quebra de patentes, consiste em interromper temporariamente os direitos à exclusividade, permitindo a produção dos imunizantes por quem não os desenvolveu.
“Essa é uma crise sanitária global e as circunstâncias extraordinárias da pandemia de Covid-19 pedem ações extraordinárias. O governo federal americano acredita fortemente nas proteções da propriedade intelectual, mas para que a pandemia possa ter fim, defende o levantamento dessas proteções para vacinas anti-Covid”, diz a nota assinada pela representante dos Estados Unidos em Assuntos de Comércio Exterior, Katherine Tai.
Os efeitos da quebra de patentes pelos EUA deverão ser sentidos principalmente na forma de pressão sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC), foro internacional responsável pela regulamentação da propriedade intelectual no mundo. Por ser necessário o consenso dos países que integram o foro, as negociações na OMC são um processo lento, mas o peso político estadunidense pode encorajar outros países a tomar o mesmo caminho em breve na busca por suprir a demanda por vacinas contra a Covid-19.
No Brasil, o procedimento (que também é chamado de licença compulsória) pode ser autorizado pelo Congresso em casos de abuso de poder econômico (preços excessivos) e de emergência nacional. A pandemia do Sars-CoV-2 se encaixa na última qualificação e, no fim de abril, o Senado Federal aprovou o projeto de lei (PL) 12/2021, que autoriza o Poder Executivo a determinar o licenciamento compulsório de patentes para todos os medicamentos e vacinas contra a Covid-19 que não estejam disponíveis em território nacional.
A medida agora precisa ser votada pela Câmara dos Deputados. Na última quinta-feira, 6, o autor do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS), pediu que a Câmara dos Deputados vote com urgência o texto de sua autoria. Em seu pronunciamento o parlamentar justificou: “A licença temporária da propriedade intelectual vai impulsionar a fabricação de vacinas no Brasil, acelerando o processo de imunização da população.”
Questão técnica

Entretanto, especialistas entrevistados afirmam que o déficit brasileiro de vacinas pode não ser tão simples de se solucionar. Laura Marise de Freitas é doutora em Biociências e Biotecnologia Aplicadas à Farmácia e pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), além de divulgadora da ciência. A cientista lembra que a falta dos insumos continuará sendo um funil para a produção de vacinas, pois mesmo os imunizantes que o Brasil já tem autorização para produzir são elaborados com ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) importados da Ásia.
No caso da CoronaVac – uma vacina de vírus inativado –, o IFA é o ingrediente que contém o Sars-CoV-2 “morto”, incapaz de se replicar e provocar uma infecção, mas capaz de ter sua estrutura reconhecida pelo sistema imune. Esse ingrediente é produzido no laboratório chinês Sinovac, desenvolvedor da vacina e parceiro do Instituto Butantan.
Já a vacina de Oxford/AstraZeneca, produzida pela Bio-Manguinhos/Fiocruz, utiliza a tecnologia do vetor viral, em que um vírus inofensivo é modificado para transportar informações do coronavírus. A vacina de Oxford usa adenovírus de chimpanzé (inofensivo para humanos) como transportador de informações da proteína spike do Sars-CoV-2, que será reconhecida pelo sistema imune. O IFA, então, é um concentrado viral que contém esses vírus modificados geneticamente. O ingrediente também é produzido na China, pelo laboratório Wuxi Biologics, contratado pela AstraZeneca.
O cenário se torna ainda mais complexo quando consideramos que algumas vacinas, como as da Pfizer/Biontech e da Moderna, utilizam plataformas tecnológicas diferentes, inéditas no Brasil. São imunizantes que usam o RNA mensageiro do coronavírus para que o corpo humano conheça a proteína S, chamada de spike.
Raquel Silveira Bello Stucchi é infectologista e diretora do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A médica afirma: “Quebrar uma patente não é adquirir uma receita de bolo para a produção da vacina. Há a questão da importação da tecnologia e dos insumos.”
Para o chanceler brasileiro Carlos França, que declarou posição contrária à quebra das patentes na quinta-feira, 6, o problema passa justamente pela dificuldade da reprodução das fórmulas das vacinas via engenharia reversa – ou seja, sem o apoio das farmacêuticas que as desenvolveram.
Em audiência na Comissão de Relações Exteriores do Senado, em Brasília, o chefe do Itamaraty afirmou: “O maior gargalo hoje, para o acesso a vacinas, são os limites materiais da capacidade de produção. E o fato é que as vacinas são quase impossíveis de copiar, em curto ou médio prazo, sem o apoio dos laboratórios que as desenvolveram, mesmo com o auxílio da patente”, avaliou.

Laura Marise de Freitas lembra, entretanto, que a reprodução dos imunizantes não é impossível. Mesmo sem experiência prévia na produção de vacinas de RNA mensageiro, o Brasil tem o conhecimento técnico necessário para fabricá-las, já que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) avaliou o processo produtivo para aprovar os imunizantes e a elaboração do produto está integralmente documentada.
Existe ainda a alegação de que a quebra de patentes poderia levar a uma perda na qualidade dos imunizantes, uma vez que a produção passaria a ser descentralizada e feita de forma independente pelas indústrias farmacêuticas. Laura de Freitas, entretanto, é cética quanto a essa possibilidade.
“Isso pode ser verdade”, diz a pesquisadora. “Mas depende principalmente de como cada país lida com questões sanitárias. No Brasil, tudo passa pelo controle de qualidade da Anvisa, um órgão muito rigoroso. Qualquer fábrica de fármacos recebe visitas da agência e precisa se adequar. Em outros países com agências regulatórias mais fracas, é possível que a quebra de patentes leve a vacinas menos eficazes”.
Comércio internacional

Além das pressões políticas e sanitárias, as relações comerciais internacionais desempenham um papel determinante na decisão de romper ou não os direitos intelectuais patenteados. Se opõem à quebra de patentes os países envolvidos em sua produção, como a Alemanha, desenvolvedora da Pfizer.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou em depoimento à CPI da Pandemia no Senado Federal: “Sou contra a quebra das patentes porque essa matéria afeta as relações exteriores em um momento em que dependemos de importações de vacinas. Meu temor é que a violação dos direitos de uma farmacêutica possa interferir negativamente na importação de outros imunizantes e insumos”.
Durante debate na Câmara dos Deputados no dia 8 de abril, o pesquisador sênior da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Jorge Bermudez classificou como um “apartheid na saúde” a dificuldade dos países mais pobres em ter acesso a imunizantes. O cientista se referia ao fato de que, até seu pronunciamento, 75% das vacinas contra a Covid-19 haviam sido aplicadas na população dos dez países mais desenvolvidos, enquanto em quase 130 países, onde vivem mais de 2,5 bilhões de pessoas, praticamente nenhuma vacina havia sido recebida.
“A suspensão temporária proposta na OMC, que tem mais de cem países apoiando, merece e precisa do apoio incondicional do Brasil, que deve atuar no resgate de sua história de liderança em questões de direitos humanos e acesso universal à tecnologia”, defendeu Jorge Bermudez. “Uma situação emergencial como essa da pandemia precisa também de soluções emergenciais”, acrescentou.
O médico pneumologista Alfredo Leite lembrou que apenas a vacinação global vai derrotar a pandemia. “Tudo indica que a imunidade de rebanho será alcançada quando tivermos 70% a 85% da população vacinada. Se mantivermos esse ritmo de vacinação, isso só vai acontecer em nível global daqui a três ou quatro anos.”
Questão ética
Enquanto a AstraZeneca se comprometeu a não ter lucros advindos da pandemia de Covid-19 – e exatamente por isso fabrica a vacina mais barata, conforme explica Laura de Freitas –, outras indústrias não tiveram a mesma atitude, como a Pfizer. Segundo o periódico Scientific American, esse imunizante foi desenvolvido pela iniciativa privada, mas foi acelerado por US$ 10,5 bilhões do dinheiro público alemão (sem contar o investimento público na ciência de base, que há muitos anos explorou e consolidou o conhecimento hoje usado na fabricação da vacina).
Em vista dessa informação, é justo que empresas privadas lucrem com a venda desses produtos? O dilema moral não tem resposta definitiva na ciência. O médico e doutor em Saúde Pública, responsável pelo internato em Clínica Médica na USP, Paulo Andrade Lotufo, afirma que o licenciamento compulsório será inevitável em uma pandemia. No ponto de vista do médico, todos os habitantes do mundo precisam ser imunizados e indústria alguma consegue fornecer doses, mesmo que haja interesse em pagar por elas; então, não faz sentido preservar o direito intelectual sobre as vacinas.

Raquel Silveira Bello Stucchi, diretora do Hospital das Clínicas da Unicamp, tem uma opinião diferente. A infectologista afirma: “Filosoficamente sou contra a quebra de patentes. A suspensão dos direitos intelectuais é um desestímulo para os pesquisadores que pode reprimir o desenvolvimento de novas vacinas e tratamentos que estão sendo pesquisados”.
Pragmática, a pesquisadora acredita que a quebra de patentes gera um clima de insegurança no comércio exterior que pode inibir outros produtos farmacêuticos importados e sem garantir necessariamente o objetivo pretendido. “Tivemos um investimento inédito de dinheiro, de tempo e de esforço. Sem remuneração justa pelo trabalho feito, os centros de pesquisas logo cessariam suas pesquisas e nós ficaríamos estagnados no desenvolvimento de novas vacinas e tratamentos”.
Raquel Stucchi sugere uma alternativa que acredita funcionar melhor: “Acredito que seria mais factível um consórcio de países ricos para comprar ou doar o excedente de seus estoques de vacinas aos países sem acesso aos imunizantes. Teríamos melhores resultados, pois assim não criaríamos a incerteza da situação de excepcionalidade comercial, e os centros de pesquisas não sofreriam danos econômicos.”
Histórico
Há mais de 20 anos, o Brasil tem sido um adepto da quebra de patentes de medicamentos. O Brasil criou em 1999 a Lei dos Genéricos, que permite a produção e comercialização de medicamentos com patentes expiradas, possibilitando o acesso mais barato a esses remédios.
Em 2001, o governo brasileiro decidiu quebrar a patente do nelfinavir, medicamento que integra a lista de 12 itens do coquetel anti-aids, depois de frustradas as negociações com o laboratório suíço Roche para reduzir seu preço. Foi a primeira vez que o governo brasileiro quebrou a patente de um medicamento.
Nelfinavir é o princípio ativo do remédio comercializado com o nome de Viracept, que começou a ser produzido pelo laboratório Farmanguinhos, da Fiocruz, no Rio de Janeiro. O preço do medicamento caiu de 1,59 dólares para 0,49 dólares, o que permitiu que o número de pacientes em tratamento para HIV saltasse de 75 mil em 2007 para 230 mil em 2009.
Hoje elogiada por garantir tratamento gratuito e eficaz contra o HIV, a medida foi alvo de críticas à época. Um editorial publicado pelo jornal econômico americano The Wall Street Journal sobre a atitude do governo brasileiro classificou a quebra de patentes como um “jogo perigoso”.
“Inovação de medicamentos é um negócio de risco, e as companhias não vão querer enterrar centenas de milhões de dólares em pesquisas e desenvolvimento, especialmente para doenças que afetam os pobres e os enfermos nos países em desenvolvimento, se tiverem o temor de que sua propriedade intelectual será roubada”, argumentava o editorial de 2001.