Por escolha ou por falta de opção, ainda é possível encontrar quem siga a rotina profissional fora de casa durante a determinação de medidas restritivas ao comércio

Região da 44, em Goiânia, fechada por decreto do governo estadual | Foto: Google Maps

No dia 10 de fevereiro, o governo do Estado publicou seu plano de contingência para o enfrentamento da infecção humana pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). O documento separou as ações em níveis, de acordo com a quantidade de pessoas com a Covid-19 em Goiás. No dia 13 de março, o governador Ronaldo Caiado assinou um decreto que restringiu a prestação de serviços em estabelecimentos comerciais abertos ao público, bem como a circulação de mercadorias. 

No dia 17 de março, outro decreto ampliou as restrições por todo o Estado com a determinação do fechamento de todas as atividades em feiras livres, centros comerciais e comércios de rua. No dia 20, foi a vez de terminais rodoviários e aeroportos serem paralisados. Ainda estão autorizados a funcionar, de forma restrita, ocupações essenciais para o funcionamento de atividades hospitalares e de serviços imprescindíveis para a manutenção da vida, como supermercados, postos de combustíveis e farmácias ou drogarias.

A fiscalização do cumprimento da quarentena ficou a cargo da Polícia Militar, mas a Controladoria-Geral do Estado (CGE) aceita denúncias de estabelecimentos que furam o isolamento social por meio do site da Ouvidoria-Geral do Estado de Goiás. Em apenas seis dias, mais de 2,5 mil denúncias dos cidadãos sobre estabelecimentos abertos em desacordo com os decretos do governador foram recebidas. A capital goiana concentra 60% das notificações.

A CGE processou os dados para criar um mapa de calor de Goiânia e assim facilitar que os policiais militares possam patrulhar e visitar as localidades com mais ocorrências. Os bairros e avenidas com mais queixas são, em ordem: Setor Bueno, Marista, Jardim Novo Mundo, Centro, Campinas, Avenida Anhanguera, Avenida Goiás, Avenida Castelo Branco e Jardim Vila Boa. 

Ricardo Santana, da comunicação setorial da CGE, informou que as atividades que mais funcionam indevidamente durante a quarentena são as oficinas mecânicas, seguidas por lavajatos, autopeças, atividades administrativas, call centers, empresas de T.I., ferragens e indústrias, lavanderias, concessionárias, estacionamentos, motéis e ambulantes. Bares abertos representaram 5% das queixas. Além de estabelecimentos comerciais, cidadãos usaram o canal para reclamar de aglomerações espontâneas da população (28% do total) e para solicitar proteção (14%). 

Nas ruas
Comércio fechado na Avenida Bernardo Sayão

Na tarde da quarta-feira, 1º, foi difícil encontrar algum estabelecimento que estivesse em funcionamento pelas ruas do Setor Central. À exceção dos restaurantes, que podem ficar abertos para entregar comida a domicílio ou embalar para viagem no balcão, as poucas portas de aço levantadas são de farmácias e mercados. Mas espremida entre dois prédios baixos existe um pequeno salão de barbeiros que permanecia aberto. 

“A gente não aglomera, não”, disse o dono do estabelecimento, entre adesivos do Vila Nova colados nos espelhos e um antigo troféu de torneio de canto de curió. Além do proprietário, há dois pássaros engaiolados e mais um senhor, sentado à cadeira do barbeiro, que observava com desconfiança – talvez suspeite que eu queira interditar o salão antes de o serviço ser concluído. “A gente deixa o álcool em gel ali no balcão e muito cliente usa máscara; tem o banheiro ali onde dá para lavar as mãos.”

O velho barbeiro me explicou que ele tem o salão há mais de 20 anos, embora já tenha mudado o endereço dentro do Setor Central. Perguntado como estava o movimento durante a quarentena, ele respondeu que não vai mal. Ele tem uma clientela fiel e a concorrência está fechada. Conta que no começo do isolamento teve problemas com a polícia, que o obrigou a fechar; mas que naquele dia veio apenas cortar o cabelo do colega sentado ali e logo iria embora. O outro idoso, cliente que aguardava o corte, interrompeu e disse “olha como está feio”, esticando brancos fios compridos sobre a orelha.

Grupo de risco

“O senhor faz parte do grupo de risco, já tem idade, pode ter complicações. Não acha que pode pegar a doença de algum cliente?” O barbeiro abana a pergunta para longe com a mão e responde apenas: “Besteira, sô!”. “Besteira o quê? Acha que não vai pegar, ou acha que se pegar não há problemas?” Ele respondeu: “Na nossa idade até gripe mata. Não pode deixar de viver por isso. O que tiver de ser, será”.

“Mas e se o senhor transmitir para alguém?” O barbeiro não responde essa pergunta, dá as costas e se põe a trabalhar no cabelo do cliente. Eu pergunto se as declarações do presidente Jair Bolsonaro influenciaram sua decisão de ignorar a quarentena. Ele responde que não confia em político e que, recebendo a ligação de um velho cliente como aquele, prestaria seus serviços de barbeiro não importava como o presidente se posicionasse.

Poucas esquinas adiante, ainda no Setor Central, em um posto de gasolina, três frentistas descansam nas cadeiras de plástico da loja de conveniência. Eles contam que o movimento caiu muito, pelo menos ali no Centro. “Lá nas quebradas que eu moro não tem quarentena não”, diz um deles. Todos concordam. Diferentemente do velho barbeiro, a maioria destes trabalhadores são jovens e pareciam concordar que a situação é grave e que o isolamento social é importante. Um dos três disse que a avó mora nos fundos de sua casa, e que temia por ela. 

Queriam ficar em casa

Eles gostariam de poder ficar em casa e se sentiam expostos no trabalho: “A gente não sabe onde passou as notas de dinheiro ou o cartão que estamos pegando”. O patrão lhes disponibilizou um dispenser de álcool em gel e ensinou que sempre após tocar algo que pode estar contaminado devem lavar as mãos corretamente – entre os dedos, as costas das mãos, a palma, sob as unhas, o início do antebraço. Mas ainda assim, pode-se perceber que eles se ressentiam do fato de que o dono do posto não passava mais muito tempo por lá por medo de se infectar.  

Eu pergunto de que forma ficam sabendo das novidades da pandemia e o que pensam dos pronunciamentos do presidente. Eles disseram que se informam principalmente pelas redes sociais, mas que apesar de lerem o que o presidente e seus apoiadores publicam – “tem muita coisa que a televisão e o jornal esconde” –, não concordavam com a postura de minimizar a pandemia. Eles justificaram que, se o mundo todo está adotando o isolamento, não fazia sentido o Brasil não tomar as mesmas precauções.

Além destes trabalhadores entrevistados, diversos ambulantes e vendedores no semáforo fechado foram interpelados, mas não quiseram dar entrevista. Disseram estar receosos e responderam sucintamente que trabalhavam “porque não tem outro jeito.”

Impactos

Em estudo da Secretaria de Planejamento, Avaliação e Informações Institucionais da Universidade Federal de Goiás (UFG) sobre os impactos da Covid-19 na economia em Goiás, foi revelado que as medidas de isolamento geram impactos econômicos significativos nas atividades de diversos setores, pois alteram a dinâmica de funcionamento das estruturas de serviços e do comércio. 

O mesmo estudo revelou que o número de casos tende a crescer de forma exponencial a partir do 50º caso, atingido em Goiás no sábado, 28 de março. De acordo com a pesquisa, o Brasil segue a mesma tendência verificada na França e apresenta uma taxa média de 29,3% novos casos por dia. Em Goiás, a taxa de crescimento é de 22% ao dia. Uma semana depois, no sábado, 4, o caso de número 103 foi registrado, com duas mortes confirmadas por Covid-19, em Goiás.