Comportando-se, às vezes, como uma espécie de Lula do Vaticano, o papa Francisco confessou ter roubado a cruz de um defunto e, ao fazê-lo, joga uma pá de terra sobre a necessária — mas moribunda — moralidade das pessoas comuns

Papa Francisco: sucumbindo ao relativismo que não respeita nem a morte | Foto: Vaticano
Papa Francisco: sucumbindo ao relativismo que não respeita nem a morte | Foto: Vaticano

José Maria e Silva

Ao contrário dos discursos de Bento XVI, que eram um diálogo fecundo com a tradição intelectual do Ocidente, os discursos do Papa Francisco se assemelham a parábolas. Desde que assumiu o Pontificado, com a renúncia do cardeal Joseph Ratzinger, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, em que pese ser um leitor de seu xará Jorge Luis Borges, prefere deixar a literatura e a filosofia de lado para falar dos Evangelhos e contar histórias de sua própria vida, tendo como cenário a sua Buenos Aires natal. E essas crônicas papais em forma de discurso costumam render fartas manchetes à imprensa contribuindo para a grande popularidade do Papa Francisco, que quase rivaliza com a popularidade de João Paulo II.

Foi o que ocorreu no dia 6 de março último, uma quinta-feira pela manhã, quando o papa falou aos párocos de Roma numa cerimônia realizada na Aula Paulo VI, um vasto auditório localizado perto da Basílica de São Pedro, encomendado por Paulo VI ao engenheiro Pier Luigi Nervi e inaugurado em 1971, depois de cinco anos do início das obras. A cerimônia, que poderia ser apenas uma preleção aos padres da capital italiana, restrita aos círculos católicos, acabou provocando manchetes na imprensa laica de todo o mundo, inclusive nos jornais brasileiros. É que o Papa Francisco, com aquele seu jeito mineiro de dizer o que quer como quem não diz nada, causou espanto ao confessar um roubo — o Papa relatou ter roubado a cruz de um padre argentino morto.

O fato se deu há muitos anos, quando Jorge Mario Bergoglio era vigário-geral de Buenos Aires. Ele contou que todas as manhãs costumava conferir o aparelho de fax, hoje obsoleto, para saber dos comunicados da cúria. Então, num domingo de Páscoa, ao verificar o aparelho, ele deparou com uma mensagem do superior da comunidade: “Ontem, meia hora antes da Vigília Pascal, morreu o padre Aristi”. O padre morreu com 94 ou 96 anos e seu enterro seria naquele dia. Apesar de ter ocupado várias funções importantes na Igreja, como professor e provincial de sua ordem, o padre, segundo o Papa, jamais deixara de fazer o que mais gostava – confessar os pecados dos fieis. Era o confessor de quase todo o clero argentino e com ele se confessou até o papa João Paulo II quando esteve na Argentina.

Roubando entre as flores

Bergoglio decidiu ir ao enterro do padre. Celebrou a Páscoa normalmente e participou de um almoço com os padres de uma casa de repouso. Após o almoço, dirigiu-se à igreja onde o padre confessor estava sendo velado. “Era uma igreja muito grande, com uma bela cripta. Desci para a cripta e lá estava o caixão; apenas duas senhoras idosas estavam orando ali, não havia nenhuma flor”, conta o Papa, que estranhou a extrema humildade do velório. “Eu pensei: este homem, que perdoou os pecados de todo o clero de Buenos Aires, não tem sequer uma flor em seu enterro”, disse aos párocos de Roma. Então, como última homenagem ao sacerdote que muito admirava, Bergoglio resolveu pôr flores em seu caixão e saiu às ruas de Buenos Aires para comprá-las.

O futuro papa comprou rosas e, de volta ao velório, começou a prepará-las ele mesmo no caixão do padre. Foi aí que atentou para o rosário nas mãos do defunto. E aqui convém deixar que o Papa se recorde na primeira pessoa: “Eu olhei para o rosário na mão do padre… E imediatamente me veio à mente o ladrão que todos temos dentro de nós, certo? E enquanto arranjava as flores, com um pouco de força, destaquei a cruz do rosário. E naquele momento eu olhei para ele e disse: ‘Dê-me a metade de sua misericórdia’. Eu senti uma coisa forte, que me deu a coragem para fazer isso e fazer essa oração”, contou o Papa aos párocos de Roma.

Todo esse relato se deu de modo informal, de improviso, ao final do discurso do Papa previamente escrito. Ela já havia encerrado sua palestra quando resolveu fazer essa confissão. Seu propósito, ao que tudo indica, era ilustrar o tema de sua preleção para os párocos, que tratava da misericórdia que os padres devem ter para com os fiéis. Então, o Papa Francisco contou que, após roubar a cruz do defunto, ele a colocou no bolso de sua roupa e nunca se apartou dela: “As camisas do Papa não têm bolsos, mas sempre trago aqui um pequeno saco de pano e desde aquele dia até agora a cruz está comigo. E quando me vem à mente um mau pensamento contra uma pessoa, eu toco aqui” – disse apontando para o peito onde guarda a cruz. “E eu sinto a graça, e isso me faz sentir bem”, arrematou.

Essa confissão pública do Papa se deu no contexto de um sermão em que ele enfatizou a necessidade de aproximação entre os padres e os fiéis, recomendando aos padres que sejam humildes e não tenham medo de se aproximar das pessoas comuns para melhor conhecer seus sofrimentos e, dessa forma, poder ajudá-las. O sermão, em italiano, pode ser visto na íntegra no portal oficial do Vaticano. A cerimônia toda dura uma hora e oito minutos. O discurso é precedido por orações, um cântico entoado pelos próprios párocos e pela leitura de um trecho do Evangelho de Mateus, em que Jesus trata da vocação missionária, ao cabo do qual o Papa se mantém num longo silêncio de largos minutos, criando um ambiente de meditação, mesmo depois de ter sido anunciado que iniciaria o discurso.

Jesus Cristo como sem-teto

Ao começar sua preleção, o Papa disse que, juntamente com o Cardeal Vigário, decidiu refletir com os párocos sobre a misericórdia, não apenas neste início de Quaresma (o tempo litúrgico normalmente associado a esse tipo de reflexão), mas também como meditação para o nosso próprio tempo, especialmente para a Igreja, cujo tempo, segundo ele, tem de ser integralmente de misericórdia. “A passagem do Evangelho de Mateus que acabamos de ouvir nos faz dirigir o olhar para Jesus caminhando por cidades e aldeias. E isso é curioso. Qual é o lugar onde Jesus estava com mais frequência, onde se pode encontrá-lo mais facilmente? Nas estradas. Pode parecer que ele era um homem sem-teto, porque ele estava sempre na estrada. A vida de Jesus estava na rua”, disse o Papa, observando que Jesus tinha compaixão pelas multidões. E salienta que essas multidões, hoje, são as populações indefesas de muitos países que sofrem situações difíceis.

“O sacerdote – e me permito a palavra – ‘asséptico’, aquele de laboratório, tudo polido, tudo belo, não ajuda a Igrej. Pensemos na Igreja de hoje como um hospital de campanha. Desculpe-me dizer isso de novo, porque eu vejo isso, eu sinto isso: um hospital de campanha. Há uma necessidade de curar as feridas, muitas feridas! Há muitas pessoas feridas, de questões físicas, escândalos, mesmo na igreja… As pessoas se machucam pelas ilusões do mun­do”, disse o Papa. “E nós, padres, precisamos estar lá, ao lado dessas pessoas. Misericórdia significa, antes de tudo, curar as feridas”, acrescentou, lembrando que há feridas ocultas e que as pessoas, inclusive os sacerdotes, também se afastam para não ver as feridas do outro.

Para o Papa Francisco, a lassidão ou o rigorismo não combinam com a santidade, que, para ele, é sempre sinônimo de misericórdia, e, no caso dos padres, significa exercer, sem medo, o “sofrimento pastoral”, que significa “sofrer pelas pessoas e com elas”. Exortou o Papa: “Quantos de nós choramos diante do sofrimento de uma criança, diante da destruição de uma família, em face de tantas pessoas que não conseguem encontrar o caminho? (…) Como é sua relação com aqueles que nos ajudam a ser mais compassivos? Quero dizer, como é a sua relação com as crianças, com os idosos, os doentes? Você pode acariciá-los, ou você está com vergonha de acariciar um idoso? Não tenha vergonha da carne do seu irmão” – acrescentou Francisco, afirmando que, no final dos tempos, só poderá contemplar a carne glorificada de Cristo aquele que não teve vergonha da carne do seu irmão ferido e excluído.

Papa reforça espírito relativista

Como era de se esperar, a imprensa cumpriu o seu papel de transformar em notícia o que era notícia, isto é, a confissão do próprio Francisco de que praticara um roubo. O clima de oração e de meditação da cerimônia, mais as reflexões do Papa sobre o papel da Igreja no mundo, externadas de forma suave e introspectiva, evidentemente não tiveram espaço nas notícias de jornal que percorreram o mundo. O destaque foi o roubo puro e simples, em toda a sua crueza. E pelo mundo afora, as pessoas comuns souberam, algumas com espanto, outras com alívio, que até o próprio Papa já roubou, que até o próprio Papa é ladrão. O Papa Francisco, evidenteme

Em que pese a sabedoria de todo o sermão do Papa Francisco, com lições de vida que extrapolam os limites do clero e servem para qualquer ser humano imerso no mundo e sujeito a conviver com as misérias próprias e alheias, confesso que não me agrada o caráter um tanto populista que suas preleções acabam adquirindo pelo fato de sempre gravitarem em torno de um personagem que, a despeito de sua pretensa humildade, destaca-se mais do que Jesus Cristo – o próprio cardeal Bergoglio, que, às vezes, se comporta como uma espécie de Lula do Vaticano. O episódio do roubo da cruz é um sintoma disso. Ao contá-lo em público – em vez de levá-lo consigo para o túmulo –, o Papa acabou chamando mais a atenção para si mesmo do que para o sentimento de misericórdia que queria inculcar nos padres da Igreja.

E o que é mais grave: esse tipo de atitude do Papa reforça o espírito relativista, secular e cínico do nosso tempo – tão combatido por seu antecessor, o papa emérito Bento XVI. Quando li que o Papa tinha confessado a prática de um roubo, busquei na imprensa várias versões para a notícia, inclusive em jornais italianos, e em todas elas estava a frase em que ele diz que cada um traz dentro de si um ladrão. Então, resolvi conferi-la no discurso original do Papa, no portal do Vaticano, ainda sem tradução para o português, e lá estava a frase: “E subito mi è venuto in mente – quel ladro che tutti noi abbiamo dentro, no?”. Em tradução livre: “E de imediato me veio à mente aquele ladrão que todos temos dentro de nós, certo?”

Um cada ser, um Raskólnikov

Ainda que todo ser humano, como diz o Papa, tivesse um ladrão dentro de si, o que seria do mundo se cada pessoa resolvesse expor esse ladrão em praça pública, como fez o Sumo Pontífice? O mundo ainda funciona porque o ser humano não é uma obra de arte moderna, ele não expõe suas vísceras morais como a arte atual expõe seus andaimes estéticos. Quem faz isso é o intelectual, que relativiza todos os valores e gosta de perscrutar maldade nos santos ao mesmo tempo em que se esforça para achar bondade em facínoras. Ainda no âmbito da comparação literária, o homem comum está mais para a estética clássica de Olavo Bilac, que exortava o poeta a suar, teimar com a palavra, limar o verso, de tal modo que na forma final se disfarçasse o emprego desse esforço.

É justamente isso o que faz o homem comum todos os dias, desde a hora em que se levanta até a hora de dormir. Para manter sua rotina de pai de família e trabalhador responsável, o homem comum precisa cumprir ordens, respeitar hierarquias, escravizar-se a horários. Não é fácil manter essa rotina de bom grado durante anos a fio, sem fraquejar e mandar tudo para os ares. Ainda que haja dentro desse homem um ladrão à espreita, como quer o Papa, é preciso que esse lado obscuro do homem comum fique bem guardado, sem que nem mesmo seu hospedeiro se dê conta dele. Pode até desconfiar que esse lado obscuro existe, mas deve temer desafiá-lo. Só o poder, a riqueza e a fama em alto grau é que libertam o homem das convenções sociais sem que seja necessário pagar um preço muito alto por isso.

Infelizmente, hoje, tanto o magistério formal das universidades quanto o magistério social dos formadores de opinião caminham no sentido de conscientizar todo e qualquer homem comum de que ele é um Raskólnikov em potencial, o que se dá de forma direta, por meio de atitudes como a do Papa, e mais comumente de forma indireta, através de uma educação formal e informal que nivela todos os valores e subverte todas as hierarquias, começando pelo campo estético, que parece inofensivo, mas tende a ser o mais perigoso, pois opera profundas transformações na consciência social capazes de enredar e transformar os indivíduos sem que eles se deem conta disso.

Um dos motivos pelos quais a educação está completamente falida é justamente esse – já não existe hierarquia de valores, bem e mal, certo e errado, e se tanto faz alguém ser São Francisco ou Lampião, Aristóteles ou Ratinho, por que estudar, trabalhar, respeitar normas, engolir dissabores? Melhor é viver o momento e ver o que vai dar. “Carpe diem”, como dizia o poeta latino Horacio, máxima que os alunos de hoje vivenciam com seus celulares, como se a vida fosse uma contínua performance, um workshop de transgressões a serem filmadas e exibidas na internet. E parece não haver saída, pois os religiosos se tornaram tão imanentistas quanto os ateus e reforçam esse mundo secular: enquanto o Papa ensina misericórdia confessando que roubou um defunto, e amesquinha a moral, a USP recepciona seus calouros dançando funk, e abastarda o conhecimento.

O calvário do cidadão comum
Sociólogo Émile Durkheim: a moral humana é socialmente construída e o indivíduo é um ser social | Foto:  Wikipedia Commons
Sociólogo Émile Durkheim: a moral humana é socialmente construída e o indivíduo é um ser social | Foto: Wikipedia Commons

A moral de cada um de nós, não resta dúvida, é construída socialmente. Não existe moral de um só. Somos seres irremediavelmente relativos, dependentes de valores externos para construirmos nossos próprios valores. Por isso, mentes altamente poderosas e corações profundamente generosos foram capazes de conviver perfeitamente bem com a escravidão no passado. Uma vez que a escravidão era socialmente aceita, a maioria das pessoas tendia a admiti-la como válida, limitando-se, no mais das vezes, a advogar tratamento humano para o escravo, mas sem negar o direito de seu senhor escravizá-lo.

Mas Émile Durkheim, o primeiro a sustentar com mais clareza que a moral humana é socialmente construída e que o indivíduo é um ser social, também afirma que cada consciência individual, sob a influência do meio, da educação e da herança, “vê as regras morais através de um prisma particular”, não existindo, portanto, nenhuma consciência moral “que não seja imoral em alguns aspectos”. Eis o ponto em que o sociólogo Durkheim coin­cide com o Papa Francisco. Mas Durkheim, que por sinal era ateu, jamais aconselharia um líder religioso a destampar em público os porões da alma humana, como fez o Papa. Dur­k­heim tinha plena consciência de que a maioria dos indivíduos de­pende dos nortes sociais para se guiar no mundo, por isso, mes­mo sendo ateu, atribuía uma im­por­tância crucial à religão como elemento de coesão da sociedade.

O psicólogo Jean Piaget, estudando a mente das crianças, fala em duas morais: a heterônoma, imposta de fora para dentro, através da autoridade dos pais, e a autônoma, construída a partir da própria criança, quando ela começa a tomar consciência de si. Mas os fatos mostram que uma parte expressiva das pessoas jamais adquire essa moral autônoma e, para se conduzir na vida, depende dos valores hegemônicos na sociedade ou no grupo social a que pertence, como o trabalho, a escola, a igreja. Em suma, precisam de guias. Mas o que esperar de pessoas assim se até o Papa aparece aos olhos delas como alguém que traz um ladrão dentro de si e, ainda por cima, profana cadáveres? Sim, a rigor, o Papa Francisco não roubou um bem material – ele também profanou um objeto que fora sacralizado pela morte.

Eu sei que muita gente pode achar que estou exagerando e, de fato, em face dos valores hegemônicos hoje, eu estou exagerando mesmo. Acredito que pouca gente deve ter visto no gesto do Papa mais do que a subtração de um bem material, ainda assim com fins nobres, no caso, o fim de perpertuar a ética do padre morto, por meio da conduta misericordiosa para com os fiéis. Mas é justamente isso que reforça a minha tese. Há duas ou três décadas, alguém confessar que subtraiu uma relíquia sagrada de um caixão seria motivo de escândalo por entre a credulidade das pessoas comuns, que sempre tiveram respeito pela morte. E o gesto nem precisava partir de um papa – qualquer um que ousasse desafiar desse modo o mistério da morte seria visto como um sacrílego.

Hoje, o materialismo frenético da sociedade moderna, associado ao avanço tecnológico da medicina, dessacralizou a própria morte ao abolir o velório caseiro, o luto familiar e a consciência do fim, uma vez que a crença no milagre da medicina está se tornando infinita, como se a morte existisse apenas quando o médico falha. E sempre que uma sociedade banaliza a morte, subtraindo-a de seu infinito mistério, o resultado é uma precarização moral da vida, que se perde na loucura da autossuficiência. É quando o pequeno cidadão comum, divinamente retratado por Belchior, acredita-se capaz de viver o sol e não o dia, a lua e não a noite e, embriagado pelo fim artificial de todos os limites, caminha para a morte achando-se capaz de driblar a vida.