Falar de física quântica virou moda. Porém, poucos sabem sobre o que ela pode realmente alterar a vida moderna — ou em como seus conceitos de fato podem ser realocados em outras áreas do conhecimento

O Eniac foi o primeiro computador digital eletrônico do mundo feito para atingir grandes escalas. Criado pelos EUA, ele pesava 30 toneladas. Hoje, os computadores são pequenos graças à física quântica
O Eniac foi o primeiro computador digital eletrônico do mundo feito para atingir grandes escalas. Criado pelos EUA, ele pesava 30 toneladas. Hoje, os computadores são pequenos graças à física quântica


Marcos Nunes Carreiro

Vivemos em um mundo que possui leis. Leis sociais, biológicas e físicas. No caso da física, o primeiro florescer das leis modernas atingiu seu auge em meados da década de 1690, com a publicação das famosas leis de Isaac Newton, que descreviam o que viria a ser uma das disciplinas mais importantes do mundo: a mecânica, ciência capaz de descrever com precisão e de maneira clara os movimentos das partículas.

Especificamente, a lei que descreve o movimento desses objetos é a segunda lei de Newton — que determina: as forças que agem nos objetos são iguais ao produto da massa vezes a aceleração. Graças a isso, é possível determinar a aceleração de um corpo, que, por sua vez, permite encontrar a velocidade e a posição desse corpo. Isso é mecânica. E a mecânica nos dá a compreensão de como tudo se move, isto é, a segunda lei de Newton praticamente rege o mundo em que vi­vemos, baseada no movimento.

Porém, sendo as leis de Newton já tão antigas, em certo momento, os cientistas começaram a pensar em como funcionava os sistemas que estavam além do olho nu, como os atômicos. Com a descoberta dos elétrons, a ideia era aplicar neles a segunda lei de Newton, para verificar como eles se movimentavam. Em alguns casos, deu certo. Por exemplo, quando colocado em um campo elétrico, o elétron — que tem carga negativa — pode ter deslocamento determinados em qualquer os sentidos. Esse princípio era usado, por exemplo, nos tubos de TV, que são tubos de raios catódicos.

Porém, quando tenta se entender como um elétron se movimenta dentro de um átomo, as leis de Newton já não funcionam. Foi então que começou a surgir a física quântica, corrente de estudo que determina os movimentos de objetos com dimensões abaixo da escala atômica e recebe esse nome por derivar do conceito de quantização. Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portugue­sa, quantização provém do “fato de as grandezas observáveis assumirem valores discretos”, que podem variar entre infinitos valores.

Ou seja, a física clássica descreve um mundo que é claro e determinado. Ao contrário, pode-se dizer que a física quântica descreve um mundo que é nebuloso e intermitente. Isto é, embora possamos conhecer o mundo cotidiano em sua realidade explicado pelas leis de Newton, só poderemos conhecer o mundo quântico se estivermos preparados para aceitá-lo em sua incerteza. Um exemplo dessa incerteza está no fato de que os elétrons, ou mesmo a luz, podem tanto se comportar como ondas quanto como partículas, isto é, formas completamente diferentes.

Tal definição, descoberta nos primeiros anos da década de 1920, alterou o rumo da trajetória dos estudos da física e levaram ao conceito de mecânica quântica, idealizado de forma completa em 1930 por Paul Dirac. Se o estudo de física quântica tem algo a ensinar, é que o mundo está repleto de surpresas. Afinal, ninguém consideraria de antemão que poderia haver entidades que, algumas vezes, se comportassem como se fossem ondas e, em outras, como se fossem partículas.

Niels Bohr, um dos físicos mais importantes dessa corrente de estudo, disse uma vez que o mundo não é apenas mais estranho do que pensamos. Ao contrário, ele é mais estranho do que poderíamos imaginar. Assim, é possível dizer que inclusive a lógica precisa ser modificada quando aplicada ao mundo quântico. Se a teoria quântica nos incentiva a manter flexível nossa concepção do que é razoável, ela também nos incentiva a reconhecer que não existe epistemologia universal, nenhuma maneira soberana pela qual podemos esperar obter todo o conhecimento.

A aplicação nos dias atuais

Doutor Ardiley Avelar: “Com computadores quânticos, seria mais fácil descobrir as chaves  de segurança dos países”
Doutor Ardiley Avelar: “Com computadores quânticos, seria mais fácil descobrir as chaves
de segurança dos países”

Mas, em termos simples, no que a tal física quântica altera o mundo real palpável em que vivemos? O professor doutor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Ardiley Torres Avelar dá exemplos concretos. Ele explica que na época em que os estudos quânticos foram iniciados, o principal dispositivo elétrico usado nos aparelhos de rádio — e nas primeiras TVs — era a válvula. E esses dispositivos eram gigantescos. Ele chama a atenção, por exemplo, para um dos primeiros computadores — o ENIAC (veja foto), que foi desenvolvido pelos EUA para pesquisas balísticas, e pesava 30 toneladas. Ele era, literalmente, do tamanho de um prédio, pois era movido a válvulas, que es­quentavam muito e não podiam ser reduzidas de tamanho.

“Hoje, utilizam-se transistores, que exercem a mesma função, sendo os dispositivos básicos da computação bem menores. Alguns desses chips mais sofisticados têm milhares de transistores. Mas só foi possível criar o transistor porque aplicou-se a mecânica quântica no movimentos dos elétrons”, explica. O que o professor quer dizer é que praticamente todos os dispositivos atuais, de TVs a celulares, possuem a aplicação de conceitos quânticos.

Outra aplicação clara, embora muito mais complexa, seria o avanço da tecnologia de segurança. Atualmente, estuda-se a criação de computadores quânticos. Mas não para o uso cotidiano. Como explica o professor, computadores quânticos são feitos para tarefas específicas. “Por exemplo, um computador quântico é bom para fatorar números. A fatoração é a base para a criptografia, que, por sua vez, é a base da segurança dos países. Para descobrir uma chave criptográfica e, consequentemente, descobrir uma senha, eu preciso copiar os dados que você transmite e fazer fatorações. Mas essa tarefa é muito pesada para um computador clássico. A segurança está aí: o número é tão grande que um computador normal não consegue fazer, o que seria muito mais fácil para um computador quântico.”

Já há, inclusive, notícias de físicos do Instituto Kavli de Nano­ciência — localizado na Universidade Delft, da Holanda — que afirmaram terem conseguido teleportar informações entre dois bits quânticos, separados por uma distância de três metros. No que isso é diferente na computação quântica da atual, chamada clássica? Acon­tece que os bits clássicos podem ter apenas um ou dois valores — 0 ou 1. Mas os bits quânticos, ou qubits, podem descrever muitos outros valores simultaneamente, o que faz da computação quântica mais veloz e mais segura.

 “Não há como aplicar quântica em pessoas”

Em uma rápida busca na in­ternet, é possível achar várias aplicações para a física quântica: espiritualidade, religiosidade, ativismo, teletransporte, viagem no tempo, cura quântica, sabedoria quântica, etc. Cientificamente, entretanto, as aplicações são outras. A questão, segundo o professor da Uni­ver­sidade Federal de Goiás (UFG) Ardiley Torres Avelar, é que a física quântica virou moda, mas nem todas as suas supostas aplicações são científicas.

“Muito se fala em ‘cura quântica’, ‘travesseiro quântico’, etc. Is­so não é ciência, pois os efeitos quân­ticos só aparecem em sistemas mi­croscópicos e em condições muito controladas. Tanto é que foi preciso muitos anos para que os cientistas se apercebessem dis­so. E só possível, porque atualmente temos instrumentos que nos possibilitam chegar a esse nível”, diz ele.

De acordo com Avelar, é fácil confundir física quântica — que foram as discussões teóricas realizadas até meados da década de 1930 — com mecânica quântica — a ciência que se utiliza hoje para a criação de computadores e manipulação da luz, por exemplo. “A mecânica quântica é aplicada em sistemas microscópicos não pensantes. Nós a aplicamos para definir o movimento de partículas e não para definir pessoas. Isso não faz sentido”, declara.

Princípios aplicados em outras áreas do conhecimento

 

Professor Pedro Sérgio dos Santos: “Se naquilo que parecia ser tão exato há tantas variações, o campo das ciências humanas não pode ser tão preciso”
Professor Pedro Sérgio dos Santos: “Se naquilo que parecia ser tão exato há tantas variações, o campo das ciências humanas não pode ser tão preciso”

A física quântica é aplicada no micro, isto é, naquilo que é menor que um átomo, às vezes, muito menor, como são os quarks e os glúons — entidades, no mínimo, 100 milhões de vezes menores do que os átomos, cujo comportamento foi motivo de interesse dos primeiros quânticos. E embora seja de difícil aplicação, há quem aplique os conceitos extraídos da física quântica em outras áreas do conhecimento, como a filosofia ou o direito, caso do diretor da faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Pedro Sérgio dos Santos, que usou conceitos extraídos da física quântica em sua tese de doutorado.

Como dizia Michael Polanyi — um renomado químico que se voltou para a filosofia —, a questão é que, embora o objeto de estudo da ciência seja o mundo físico, impessoal, a atividade de praticar ciência é inevitavelmente uma atividade de pessoas. Assim, levando em consideração três princípios atribuídos à física quântica — dualidade, subjetividade e complementaridade —, o professor levou esses conceitos para o Processo Penal.

“Se naquilo que parecia ser tão exato, há tantas variações, o campo das ciências humanas não pode ser tão preciso, como afirmam ser o Processo Penal. Processo penal não é ciência. Se uma pessoa cometeu, por exemplo, o crime de violência sexual e for julgado por juiz que teve um caso de abuso na família. Será que a sentença dada será a mesma de um juiz que nunca passou por casos assim? Será que a vida da pessoa é única e constante?”, declara o professor.

A fala de Pedro Sérgio vai ao encontro das várias divergências ocorridas ao longo da história da física, principalmente no campo quântico, que, de um modo ou outro, não é considerado como uma ciência exata. O físico John Polkinghorne diz, em seu livro “Teoria Quântica”, que a “teoria quântica lida com probabilidades, e não com certezas”. Contudo, há uma certeza na física quântica, como já foi demonstrado: os elétrons podem ser onda ou partícula.

E esse fato nos faz entrar no primeiro dos princípios relatados por Pedro Sérgio. A dualidade transformou o mundo da física, uma vez que mostrou um novo universo de possibilidades. E um bom exemplo desse conceito é o experimento da fenda dupla, que envolve uma fonte de entidades quânticas, como um bombeador de elétrons. O bombeador dispara um feixe contínuo de partículas, que, por sua vez, colidem com uma tela em que há duas fendas, A e B.

Atrás da tela com fendas, há uma tela de detecção que pode registrar a chegada dos elétrons, como por exemplo, uma grande placa fotográfica sobre a qual o elétron incidente fará uma marca. Apenas um elétron atravessa o aparato de cada vez, o que faz com que os elétrons cheguem à tela de detecção um a um, deixando uma marca correspondente ao seu ponto de impacto. Isso expressa o comportamento individual do elétron em um modo corpuscular.

No entanto, como relata Polkinghorne, “quando um grande número de marcas se acumula na tela de detecção, verificamos que o padrão coletivo criado por pelas marcas demonstra a conhecida forma de um efeito de interferência. Há um ponto intensamente escuro na tela oposta ao ponto médio entre as duas fendas, correspondente à localização na qual o maior número de marcas de elétrons foi depositado. Esse padrão de difração (como os físicos chamam tais efeitos de interferência) é uma assinatura inconfundível de elétrons que se comportam de modo ondulatório”.

Dessa forma, o experimento mostra claramente um bom exemplo da dualidade onda/partícula do elétron. Isso acontece que os elétrons que chegam um a um têm comportamento corpuscular, mas o padrão de interferência coletivo resultante é comportamento ondulatório. E mais: o experimento mostra também que o elétron indivisível, que marcou a placa atrás das fendas, passou pelas duas fendas ao mesmo tempo. “Em termos de intuição clássica, essa é uma conclusão sem sentido. Todavia, em termos do princípio da sobreposição da teoria quântica, ela faz sentido”, diz Polkinghorne.

Essas conclusões têm um impacto na filosofia, pois colocam, por exemplo, um grande “talvez” no princípio do terceiro excluído de Aristóteles, que dizia que “A é x ou não-x, não há terceira possibilidade”. Segundo a física quântica há, pois se um elétron indivisível pode passar por duas fendas ao mesmo tempo, sendo onda ou partícula, não se pode ter certeza de seu comportamento, embora haja como manipulá-lo para atingir o resultado pretendido. Assim, diz Pedro Sérgio, “se aquilo que parecia ter tão exato possui tantas variações, o campo das ciências humanas não pode ser tão preciso, citando o caso dos processos penais”.

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Físico John Polkinghorne: aluno de Paul Dirac, um dos grandes nomes da física quântica, publicou livro para explicar este assunto complexo aos leigos

Subjetividade e complementaridade 

A subjetividade é, na verdade, um conceito mais social do que físico, afinal, as ciências exatas não costumam levar em consideração, em seus cálculos, a postura interior do objeto de estudo. A subjetividade, enquanto espaço íntimo do indivíduo, leva em consideração as inquietações do sujeito baseados em seu ponto de vista e influenciados por seus interesses e desejos particulares.

Se tratando de física quântica, Pedro Sérgio leva em consideração, po­rém, o papel do observador. De a­cordo com ele, “o resultado depende muito de quem vê, do modo co­mo ele observa, momento e os instrumentos que usa. A ciência foi sem­pre muito objetiva, mas no caso da física quântica, não”. De fato, co­mo relata John Polkinghorne em “Te­oria Quântica”, um clichê que é re­petido com frequência é que a teoria quântica é “criada pelo observador”.

Segundo o autor, entretanto, esse jargão pode ser reavaliado. “É importante lembrar que a definição geral de medição é o registro macroscópico irreversível do sinal de um estado microscópico das coisas. Esse acontecimento pode envolver um observador, mas, via de regra, isso não é necessário. Apenas a interpretação da consciência atribui um papel único aos atos de um observador consciente. Todas as outras interpretações ocupam-se exclusivamente dos aspectos do processo físico, sem apelo à presença de uma pessoa”.

Polkinghorne quer dizer que, mesmo na interpretação da consciência, o papel do observador está confinado, de certa forma, a fazer a escolha consciente do que será medido e, a seguir, fazer à tona, de modo inconsciente, o resultado que acabou por se revelar. “A realidade só pode ser transformada nos limites da potencialidade quântica já presente”, diz ele.

A complementaridade, por sua vez, trata de um somatório de experiências para a resolução de problemas oriundos exatamente da observação. Polkinghorne diz em seu livro que à época de Niels Bohr a teoria quântica oferecia uma série de modos alternativos de pensamento. Havia as representações alternativas do processo que poderiam ser baseadas tanto na medição de todas as posições quanto na de todos os momentum. Além disso, havia também a dualidade entre pensar nas entidades em termos de ondas ou de partículas.

“Bohr enfatizava que os dois membros desses pares de alternativas deveriam ser considerados com igual seriedade e poderiam, portanto, ser tratados sem contradição porque cada um complementava o outro, em vez de entrar em conflito. Isso acontecia porque eles correspondiam a diferentes — e mutuamente incompatíveis — arranjos experimentais que não podiam ser usados ao mesmo tempo. Ou se projetava um experimento de onda (fendas duplas), em que se fazia uma pergunta ondulatória que receberia uma resposta ondulatória; ou se criava um experimento de partícula (detectar por qual fenda o elétron passou) e, nesse caso, a pergunta corpuscular recebia uma resposta corpuscular”.

Assim, seguindo o pensamento de pensar conceitos quânticos de maneira filosófica, há meios de usar a complementariedade para solucionar problemas do cotidiano, utilizando um determinado conjunto de experiências e observações. “Isso [os conceitos] fez uma grande diferença na formação do universo”, diz Pedro Sérgio.

Mas há outro: pode-se também falar sobre outro conceito, talvez ainda mais importante — filosoficamente falando — para as ciências humanas: a da sobreposição. A sobreposição está ligada de modo direto à dualidade, pois funciona baseado no fato de que não existem apenas o “aqui” e “lá”, mas existe um meio termo. Por exemplo: se pegarmos um giz e o quebrarmos em dois, colocando cada pedaço em um lado de uma mesa, no mundo físico, só existem essas duas possibilidades.

Contudo, substitua os pedaços de giz por elétrons e, no mundo quântico, há uma vasta quantidade de outros estados que são misturas dessas possibilidades. Ou seja, um pouco de “aqui” e outro tanto de “lá”, todos juntos. Como pontua Polkinghorne em seu livro, “a teoria quântica permite a mistura de estados que classicamente seriam excludentes entre si. É essa possibilidade contraintuitiva de adição que distingue o mundo quântico do mundo cotidiano da física clássica”. Esse é o princípio da sobreposição.