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Nosso cotidiano está impregnado de confiança na pesquisa científica e no conhecimento científico. Depositamos, nesse difícil momento, nossas esperanças em pesquisadores reunidos em diversos cantos do planeta

Professor Tadeu Alencar Arrais | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Tadeu Alencar Arrais*
Especial para o Jornal Opção

Não. O título do artigo, apesar da alusão ao livro homônimo de Louis Stevenson, publicado no último quartel do século XIX, não pretende explorar ambivalências individuais. Não pretende, como em muitas narrativas ficcionais, centrar a atenção em transtornos individuais pendulares. A única ambivalência explorada será aquela construída, desde a modernidade, entre as luzes e as trevas, entre a razão e o obscurantismo, entre a ciência e o dogma, entre a esperança no futuro e os medos dos monstros do presente. Dito de outra maneira. Não é objetivo questionar as ambivalências individuais do Governador Ronaldo Caiado ou do Presidente Jair Bolsonaro. Essa narrativa, nos tempos de Coronavirus, é periférica. Alinho-me, portanto, ao médico, tentando, com palavras, ajudar no combate aos monstros que batem em nossa porta.

O alinhamento não é gratuito e parte de uma ideia que foi construída, no mínimo, desde a modernidade. Refiro-me, sem muita preocupação com a justificativa histórica, à noção de confiança. A confiança na ciência. Nosso cotidiano está impregnado de confiança na pesquisa científica e no conhecimento científico. Depositamos, nesse difícil momento, nossas esperanças em pesquisadores reunidos em diversos cantos do planeta. Milhares e milhares se ocupam em descobrir uma vacina e outros tantos milhares em produzir, rapidamente, os mais variados insumos para amenizar os efeitos da pandemia. Outros milhares se ocupam em pesquisar formas e padrões de organização societária que possam inibir, mesmo que momentaneamente, a difusão da doença. O distanciamento social, como aponta o Imperial College London (https://www.imperial.ac.uk/), é uma medida eficiente e necessária.

Mas a confiança na ciência, antes sinônimo de prudência, parece, justamente nesse momento de clivagem civilizatória, perecer. Ironia dos tempos sombrios. O médico deve combater, concomitantemente, vários monstros. Deixo o primeiro deles, o Coronavirus, de lado – terceirizo essa batalha para a ciência. Os demais monstros, produtos do cultivo melindroso da ignorância, devem ser combatidos politicamente, explorando outra característica da ciência, quer seja, o esclarecimento.

É necessário esclarecer, na escala da vida cotidiana, que os efeitos da pandemia, especialmente no tocante aos aspectos econômicos, poderiam ser muitos diferentes se, na escala federal, existisse alguma ambição pelo protagonismo político. O tempo, em situações como essa, é insumo imprescindível. Tempo, ao que tudo indica, é o que Presidente da República mais dispõe. Tempo para deslegitimar o trabalho de cientistas. Tempo para avacalhar a imprensa. Tempo para banalidades em redes sociais. Tempo para agredir governadores. Assim, perdemos, a cada a minuto, a oportunidade de reunir energias para sair da crise. A cada passo à frente, promovido pela ciência, o Presidente da República, baseado em um campanha de desinformação, recua dois passos. O Brasil Não Pode Parar,  ícone de sua campanha publicitária, esconde o imobilismo de sua articulação política que pretende isolar e responsabilizar governadores pelo caos que já assola o país. Todos, absolutamente todos, mas fundamentalmente os brasileiros mais vulneráveis, ganhariam com uma pausa conciliatória.

Um exemplo basta para indicar as vantagens de uma ação conciliatória entre o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais. O Governador Ronaldo Caiado manifestou a intenção de instituir programas de distribuição de cestas básicas e vale gás para a população vulnerável. Essa ação, aparentemente simples, exige uma complexidade burocrática e logística bastante refinada. Trata-se de um tipo de transferência de renda indireta com efeitos positivos no varejo local. A ação de distribuição de renda direta na escala nacional, por outro lado, envolve um nível de complexidade, acreditem, muito mais simples que aquele da escala estadual. Esta ai o segredo da funcional lentidão das ações do governo federal. É possível, com agilidade indescritível, utilizar o INSS e o Cadastro Nacional de Programas Sociais, base para concessão do Bolsa Família, para aumentar o conjunto das transferências de renda para a população mais vulnerável. Os operadores financeiros são, basicamente, públicos. Bastaria, portanto, uma decisão política para aumentar o valor do bolsa família, destravar os processos do INSS, além de implementar ajudas emergenciais partir do Castro Único de Programas Sociais. Essa rede de transferência de renda é, seguramente, a de maior capilaridade no país, estando presente em cada município brasileiro.

A ampliação do conjunto de transferências de renda para a população mais vulnerável, agora ameaçada pelo desemprego, poderia amortizar os efeitos da crise, tornando o isolamento menos trágico, já que, de algum modo, essa renda poderia garantira a mínima subsistência. A transferência de renda direta do governo federal, complementada pelas transferências de renda indireta, como a proposta por Ronaldo Caiado, poderia aliviar a penúria da população mais pobre e, de tabela, impulsionar o varejo nas áreas metropolitanas e nas pequenas cidades.

O governo federal conhece, como a palma da mão, essa rotina burocrática. Não são, portanto, problemas burocráticos ou a falta de recursos financeiros que impedem que essas políticas sejam efetivadas. A demora é funcional para a estratégia do Presidente Jair Bolsonaro. Mesmo o dinheiro da Renda Mínima, com todo o esforço do Congresso Nacional, demandará tempo para chegar às mãos de trabalhadores sem trabalho. Bolsonaro, sabendo disso, estica a corda, aumentando a tensão social, mobilizando segmentos da população que, facilmente, aderem às teorias conspiratórias, colocando em risco a saúde coletiva. O medo, cultivado cotidianamente, alimenta os desejos despóticos. O Presidente aposta em dois cenários:

  1. a) O Brasil controla a crise pandêmica. Dirá, então, que as medidas que reverberaram no aumento do desemprego e na redução da renda foram exageradas – a culpa, portanto, será dos governadores, da mídia e, fundamentalmente, da velha ciência.
    b) O Brasil não controla a crise pandêmica. Dirá, então, que as medidas que reverberaram no aumento do desemprego,  na redução da renda e no endividamento público, além de não surtirem efeito no controle da pandemia, arruinaram a economia do país – a culpa, portanto, será dos governadores, da mídia e, fundamentalmente, da velha ciência.

Dois filósofos, contemporâneos de Stevenson, escreveram um livro em que relatam a curiosa história de um homem corajoso que acreditava que, se as pessoas se afogavam, era porque estavam possuídas pela ideia religiosa da gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, dizia o homem, ficariam livres do risco de afogamento. Homem tolo. Homem ingênuo, aquele. Pensei naquele homem, na tarde de sexta-feira, quando ouvi, no centro da cidade, o som frenético das buzinas e os xingamentos ao Governador Ronaldo Caiado. Mas homem, que acredita em homens que negam a gravidade, e que motivou aquela ação histérica, é diferente. Não tem nada de tolo ou ingênuo. É indiferente ao sofrimento humano. Não tem as ambivalências, os dilemas éticos e morais que nos tornam, mesmo nas ocasiões mais difíceis, humanos. Não dispõe das ambivalências do político que, também por dever do ofício médico, sabe que suas decisões, por mais difíceis que sejam, farão diferença entre a vida dos outros e a morte dos outros.

*Tadeu Alencar Arrais é mestre em Geografia (2002) pela Universidade Federal de Goiás, doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (2005) e pós-doutor pela Universidade Federal do Ceará. É professor associado da UFG e integra o corpo docente do programa de pesquisa e pós-graduação em Geografia