O Judiciário precisa cuidar mais de dona Maria do que de si próprio
03 fevereiro 2018 às 10h32

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Na semana em que os dois principais juízes da Operação Lava Jato foram pegos no contrapé da moralidade, é preciso parar para pensar: quem ganha bem e quer mais exige direito ou privilégio?

Elder Dias
Dona Maria tem 70 anos e sempre foi dona de casa. Mora com o marido, seu José, de 80 anos, que um dia foi carpinteiro. Os filhos cresceram e lhes deram netos – os bisnetos logo estarão também a seus pés de matriarca e patriarca do clã Silva. Vivem da aposentadoria dele, com alguma luta para manter a autonomia diante das despesas da casa humilde em um setor da periferia. Água, luz, telefone fixo, gás, compras do mês. Não sobra dinheiro nem mesmo para pegar um ônibus intermunicipal e fazer uma visita, há muito em falta, aos parentes no interior.
Tudo ficou mais dificil no começo do último ano, depois dos aumentos sequenciais das tarifas públicas. A aposentadoria do seu José não estava mais conseguindo bancar a feira semanal. Ao conversar com a vizinha Rosemeire para pedir um copo de arroz emprestado, dona Maria foi orientada por ela a buscar seus direitos junto à Previdência Social: soube do Benefício da Prestação Continuada (BPC), estabelecido pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e concedido como um salário mínimo mensal, a idosos com pelo menos 65 anos que comprovem não ter meios de prover a própria manutenção. Como, de acordo com o Estatuto do Idoso, a aposentadoria do marido não contaria para o cálculo, seria possível incrementar a renda do casal.
Mas um dos filhos de dona Maria resolveu agraciá-la com um smartphone básico e colocou internet na casa – claro que também em benefício próprio, para ele poder estar online durante os almoços dominicais. O mimo custou caro: o benefício foi registrado pela perícia assistencial e serviu para, meses depois, ela ter seu pedido negado pelo juiz Giovanni Tedesco. Também a turma recursal não proveu o pleito da dona de casa. A solução foi mesmo cortar o telefone fixo e arrochar na economia de água e luz, para sobrar dinheiro para uma alimentação digna, torcendo para permanecer em boa saúde e não depender do SUS.

A situação de dona Maria é difícil. Mas ela ainda tem um marido a lhe fazer companhia e cuja aposentadoria lhes dá o mínimo preciso – desde que não sobrevenham imprevistos. É fato que também pode contar com a ajuda dos filhos, ainda que eles tenham suas próprias despesas. Se mesmo com todas as carências o juiz não a considerou em situação de receber o benefício, lamentavelmente é fácil encontrar gente em situação ainda pior que teria direito a isso, mas não o recebe.
Os personagens da história – Maria, José, Rosemeire e Giovanni – são todos fictícios. Mas a história é real para vários casos. Legalmente, o juiz de nome inventado – que no Google só tem como homônimo famoso um ex-jogador da segunda divisão do futebol italiano – não considerou Maria apta a ser enquadrada no critério de miserabilidade porque tinha wi-fi em casa. Na visão do magistrado, internet é um “luxo” incoerente com a pobreza (vários pedidos similares já foram negados na Justiça, apenas porque na casa foi encontrado, por exemplo, um videogame dado de presente). Usou a letra da lei para negar o benefício.
Assim como dona Maria, Giovanni Tedesco também é um cidadão que vai em busca de seus direitos. Anos atrás, requereu seu auxílio-moradia para acrescentar ao seu salário de quase R$ 30 mil assim que soube da possibilidade, aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ministro Luiz Fux. Hoje, o que Tedesco recebe só por esse item de seu contracheque cobriria a renda requerida por cinco donas Marias. A letra da lei lhe proveu o benefício.
Semana passada, por causa desse mesmo direito previsto por lei, dois ícones do Judiciário brasileiro – esses de carne e osso – foram alvo de reportagens nada positivas. Primeiro foi o juiz Marcelo Bretas. Titular da 7ª Vara Federal, ele pode ser considerado o Sérgio Moro versão carioca. Está para Sérgio Cabral como o xará deste está para Lula. Já condenou o ex-governador do Rio de Janeiro a 87 anos de prisão e tudo indica que vem muito mais por aí. Ambos encarnam o espírito moralizante que inspirou a Operação Lava Jato e que, como ideal, seria algo realmente necessário ao País.
No mundo real, Bretas é alvo de um procedimento da Ouvidoria da Justiça Federal por receber auxílio-moradia morando debaixo do mesmo teto de outra pessoa que também tem o benefício – sua mulher, a juíza Simone Diniz Bretas. Se um auxílio já seria algo questionável, dois para a mesma moradia é algo, aí sim, sem defesa. Mas Bretas continua buscando o “direito”.
No fim da semana, o Sérgio Moro original também foi alvo da imprensa. Reportagem da “Folha de S. Paulo” questionou o fato de o titular da 13ª Vara Federal, em Curitiba, receber o auxílio-moradia desde outubro de 2014 – quando o ministro do STF Luiz Fux decidiu por bem uniformizar o benefício para todos os juízes, desde que cada um requeresse o seu. O fato, portanto, não é ilegal, mas no caso de Moro eleva o valor de sua remuneração para acima do teto constitucional. O juiz alegou que o benefício serve para cobrir a defasagem salarial.
Se a situação de Moro é legal e a do casal Bretas, nem tanto, ambas acabam se tornando lamentavelmente imorais. Não pelo benefício em si, mas pelo País onde ele é concedido: a diferença entre o que ganham a base e o topo da pirâmide social brasileira. Com a tamanha desigualdade social que corrói a Nação, o Judiciário e seus representantes mais célebres – aqueles a quem parte da população confiou seu próprio coração, como a última esperança da Pátria – se regozijam com direitos que, diante do quadro, não pode ser vistos senão como privilégios.

Nos últimos anos, a população se revoltou contra o Executivo e contra o Legislativo. Defenestrou presidentes, senadores, governadores, deputados. A revolta contra quem se agarrou a um lugar que não merece por meio do foro privilegiado poderá ser saciada em outubro: basta não reconduzi-los a seus cargos.
Um Judiciário mais decente, porém, não depende do voto. São posições vitalicias. O que fazer? Talvez entender, primeiramente, que super-heróis de capa preta só há em HQs, jamais em fóruns e tribunais. Diante da morosidade e da alienação de seus membros, confundindo o legal com o imoral, cresce a necessidade de marchar também pela mudança de comportamento dos homens de toga – e acrescentem-se aqui também promotores e procuradores. As donas Marias do Brasil já aprendeu que há uma distância, às vezes inalcançável, entre o legal e o justo.