Goiânia tem no comando um prefeito com vários mandatos, mas que não parece ser alguém que queira entrar para a história da cidade como referência de gestão

Pista desmorona, canal cede e Marginal Botafogo sofre uma das muitas interdições ao longo dos últimos anos: cena cada vez mais rotineira

A Vila Nova é um dos bairros mais tradicionais da capital goiana. Um lugar que consegue aliar a proximidade ao Centro da cidade com um dia a dia relativamente tranquilo e até bucólico em suas ruas secundárias. Os mo­ra­dores se encontram nas igrejas, nas praças, no Mercado, nos restaurantes e os mais antigos ainda cultivam hábitos impensáveis para metrópoles, co­mo o de ficar na calçada olhando o trânsito quase sempre pacato nas vias locais.

Não foi o que ocorreu semana passada: carros em filas que pareciam não acabar mais, buzinas, outros ruídos bruscos, veículos e máquinas pesados e muita gente es­tres­sada. Os reparos pelo estouro de uma adutora da Saneago se jun­taram a nova intercorrência em uma vizinha problemática: a Mar­ginal Botafogo.

Mais uma vez, a via expressa pas­sa por uma interdição de pista. Pela terceira vez em pouco mais de do­is meses, ficam à mostra seus problemas estruturais. Em um ano, por pelo menos seis ve­zes a avenida foi fechada parcial ou totalmente para o tráfego de veículos.

A primeira vez que me assustei de verdade com o risco que se tor­nou a Marginal Botafogo foi num dia de dezembro de 2013, quando, em meio a um temporal – o mesmo que inundou pela primeira vez o então recém-inaugurado Túnel Jaime Câmara, na Ave­nida Araguaia –, para não me atrasar a um compromisso importante, tive de entrar na pista no sentido norte-sul, próximo à Avenida Independência, e enfrentar o asfalto coberto de água. Feliz­men­te não houve maiores consequências, a não ser uma overdose de adre­nalina por algumas centenas de metros dirigindo sem saber o que havia abaixo da espessa lâmina de alagamento.

Hoje a coisa mudou – para pior. Os motoristas continuam a trafegar pela Marginal sem saber o que há por baixo, mas mesmo quando não chove. É que há uma sus­peita crescente de que os anos de infiltração da água pluvial nas mar­gens do Botafogo fizeram com que no terreno abaixo do as­fal­to se criassem pontos ocos. Teme-se cada vez mais que, de uma hora para ou­tra, a via desabe de vez, formando assim uma cratera instantânea que leve junto veículos e seus ocupantes. Se esse tipo de conversa já foi tido co­mo paranoico em outros tempos, hoje deixar de acessar a via passou de exagero a ato de prudência.

De fato, a ideia da Marginal Botafogo já era anacrônica em sua origem. Quando resolveram canalizar o Córrego Botafogo, no início da década de 70, o projeto já estava mais do que desatualizado. Mes­mo assim, fizeram uma obra que de­safiava as leis da natureza e da boa engenharia. Na faixa que foi primeiramente construída – da área onde está o Cepal do Setor Sul até logo abaixo da Ave­ni­da Independência, justamente o trecho mais problemático –, encaixaram o cur­so d’água dentro de uma calha de concreto. Além de feia, a solução era bizarra e estava escrito que um dia o preço seria cobrado.

Em seu segundo mandato como prefeito, com pouquíssimas manifestações contrárias à intervenção, o então prefeito Nion Alber­naz – então no PMDB – tocou adiante a tarefa de pavimentar as margens do Córrego Botafogo. Em 1991, o primeiro trecho da obra foi entregue e sua continuidade se deu nas administrações seguintes, de Darci Accorsi (PT, de 1993 a 1996), do próprio Nion (já no PSDB, de 1997 a 2000) e Pedro Wilson (PT, 2001 a 2004).

Se construir em fundo de vale já era algo muito pouco recomendável, a cereja do bolo infame veio nos anos seguintes, com a cor­rida imobiliária que recheou de torres as imediações das nascentes do Botafogo (Vila Reden­ção e Alto da Glória) e de seus aflu­entes, os córregos Sumidouro (Jardim Goiás) e Areião (Setor Be­la Vista/Pedro Ludovico). Os no­vos parques da cidade, nada mais do que jardins de condomínios de luxo, foram os pretensos pretextos ecologicamente corretos para avalizar a destruição dos lençóis freáticos e, obviamente, da dre­nagem urbana. A impermeabilização excessiva e, por isso, criminosa fez com que a violência das águas se mul­tiplicasse e afetasse diretamente a parte mais baixa de todo o complexo: exatamente o curso do Córrego Botafogo.

E o poder público responsável, no caso, a Prefeitura de Goiânia? Qual é seu plano diante de um problema contínuo como esse? No momento, pa­rece ser nada mais do que re­me­diar a situação e colocar a via novamente em condições mínimas de uso, ainda que este se dê de forma cada vez mais insegura e desconfiada. Quem, sabendo de tudo o que está escrito acima, ou­sa­ria rodar pela Marginal em um dia de chuva?

Fosse este um País sério, a concretagem do córrego e a pavimentação de suas margens nunca teriam sido realizadas. Quisesse a atual gestão ser transparente e responsável, interditaria de vez a via até que estudos minuciosos fizessem um raio-X completo da situação. Jus­tamente por ser um trabalho aprofundado e possivelmente mais demorado do que o calendário eleitoral poderia permitir, o cus­to não sairia baixo. Nem o financeiro, nem o político.

Por fim, quisesse o prefeito entrar pa­ra a história de sua cidade pela por­ta da frente e com tapete vermelho estendido, uma obra como o fim da Marginal Botafogo e sua trans­formação no parque linear que deveria ser desde sempre serviria para dar início a um processo de mudança dos paradigmas da ci­dade. Seria dizer não ao transporte individual e sim à sus­tentabilidade propriamente dita. Um “turning point”, um ponto de virada na trajetória de Goiânia, assim como poderia ter sido a implantação do Eixo Anhanguera em relação à mobilidade nos anos 70. Infelizmente, aquele que havia sido o primeiro modelo de BRT no Brasil se tor­nou apenas um fato isolado no crítico sis­tema de transporte público da capital.

Nesse aspecto, Curitiba fez o que Goiânia não conseguiu. Exa­tamente por isso, hoje o prefeito que bancou as mudanças que a ca­pital paranaense precisava 40 anos atrás tem seu nome eternizado na história. A referência positiva que a cidade se tornou mundialmente tem o dedo de Jaime Lerner, assim como ocorreu com a co­lom­biana Bogotá, graças a Enrique Peñalosa.

Como prefeitos, ambos, Lerner e Peñalosa, enfrentaram o risco da impopularidade para implantar o modelo de cidade em que acreditavam. O su­cesso de seu arrojo foi o motivo de terem obtido mandatos por mais de uma vez. Goiânia parece ter na Prefeitura apenas um senhor com vários mandatos, mas que não entrará para a história como referência de gestão. Mais importante do que a vaidade dos livros e da história, porém, é a gravidade da irresponsabilidade com a coisa pública, deixando como legado uma cidade que poderia ter sido e não foi.