O drama da Marginal Botafogo não tem solução fácil. Seria preciso ter um prefeito de verdade
03 março 2018 às 13h42

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Goiânia tem no comando um prefeito com vários mandatos, mas que não parece ser alguém que queira entrar para a história da cidade como referência de gestão

A Vila Nova é um dos bairros mais tradicionais da capital goiana. Um lugar que consegue aliar a proximidade ao Centro da cidade com um dia a dia relativamente tranquilo e até bucólico em suas ruas secundárias. Os moradores se encontram nas igrejas, nas praças, no Mercado, nos restaurantes e os mais antigos ainda cultivam hábitos impensáveis para metrópoles, como o de ficar na calçada olhando o trânsito quase sempre pacato nas vias locais.
Não foi o que ocorreu semana passada: carros em filas que pareciam não acabar mais, buzinas, outros ruídos bruscos, veículos e máquinas pesados e muita gente estressada. Os reparos pelo estouro de uma adutora da Saneago se juntaram a nova intercorrência em uma vizinha problemática: a Marginal Botafogo.
Mais uma vez, a via expressa passa por uma interdição de pista. Pela terceira vez em pouco mais de dois meses, ficam à mostra seus problemas estruturais. Em um ano, por pelo menos seis vezes a avenida foi fechada parcial ou totalmente para o tráfego de veículos.
A primeira vez que me assustei de verdade com o risco que se tornou a Marginal Botafogo foi num dia de dezembro de 2013, quando, em meio a um temporal – o mesmo que inundou pela primeira vez o então recém-inaugurado Túnel Jaime Câmara, na Avenida Araguaia –, para não me atrasar a um compromisso importante, tive de entrar na pista no sentido norte-sul, próximo à Avenida Independência, e enfrentar o asfalto coberto de água. Felizmente não houve maiores consequências, a não ser uma overdose de adrenalina por algumas centenas de metros dirigindo sem saber o que havia abaixo da espessa lâmina de alagamento.
Hoje a coisa mudou – para pior. Os motoristas continuam a trafegar pela Marginal sem saber o que há por baixo, mas mesmo quando não chove. É que há uma suspeita crescente de que os anos de infiltração da água pluvial nas margens do Botafogo fizeram com que no terreno abaixo do asfalto se criassem pontos ocos. Teme-se cada vez mais que, de uma hora para outra, a via desabe de vez, formando assim uma cratera instantânea que leve junto veículos e seus ocupantes. Se esse tipo de conversa já foi tido como paranoico em outros tempos, hoje deixar de acessar a via passou de exagero a ato de prudência.
De fato, a ideia da Marginal Botafogo já era anacrônica em sua origem. Quando resolveram canalizar o Córrego Botafogo, no início da década de 70, o projeto já estava mais do que desatualizado. Mesmo assim, fizeram uma obra que desafiava as leis da natureza e da boa engenharia. Na faixa que foi primeiramente construída – da área onde está o Cepal do Setor Sul até logo abaixo da Avenida Independência, justamente o trecho mais problemático –, encaixaram o curso d’água dentro de uma calha de concreto. Além de feia, a solução era bizarra e estava escrito que um dia o preço seria cobrado.
Em seu segundo mandato como prefeito, com pouquíssimas manifestações contrárias à intervenção, o então prefeito Nion Albernaz – então no PMDB – tocou adiante a tarefa de pavimentar as margens do Córrego Botafogo. Em 1991, o primeiro trecho da obra foi entregue e sua continuidade se deu nas administrações seguintes, de Darci Accorsi (PT, de 1993 a 1996), do próprio Nion (já no PSDB, de 1997 a 2000) e Pedro Wilson (PT, 2001 a 2004).
Se construir em fundo de vale já era algo muito pouco recomendável, a cereja do bolo infame veio nos anos seguintes, com a corrida imobiliária que recheou de torres as imediações das nascentes do Botafogo (Vila Redenção e Alto da Glória) e de seus afluentes, os córregos Sumidouro (Jardim Goiás) e Areião (Setor Bela Vista/Pedro Ludovico). Os novos parques da cidade, nada mais do que jardins de condomínios de luxo, foram os pretensos pretextos ecologicamente corretos para avalizar a destruição dos lençóis freáticos e, obviamente, da drenagem urbana. A impermeabilização excessiva e, por isso, criminosa fez com que a violência das águas se multiplicasse e afetasse diretamente a parte mais baixa de todo o complexo: exatamente o curso do Córrego Botafogo.
E o poder público responsável, no caso, a Prefeitura de Goiânia? Qual é seu plano diante de um problema contínuo como esse? No momento, parece ser nada mais do que remediar a situação e colocar a via novamente em condições mínimas de uso, ainda que este se dê de forma cada vez mais insegura e desconfiada. Quem, sabendo de tudo o que está escrito acima, ousaria rodar pela Marginal em um dia de chuva?
Fosse este um País sério, a concretagem do córrego e a pavimentação de suas margens nunca teriam sido realizadas. Quisesse a atual gestão ser transparente e responsável, interditaria de vez a via até que estudos minuciosos fizessem um raio-X completo da situação. Justamente por ser um trabalho aprofundado e possivelmente mais demorado do que o calendário eleitoral poderia permitir, o custo não sairia baixo. Nem o financeiro, nem o político.
Por fim, quisesse o prefeito entrar para a história de sua cidade pela porta da frente e com tapete vermelho estendido, uma obra como o fim da Marginal Botafogo e sua transformação no parque linear que deveria ser desde sempre serviria para dar início a um processo de mudança dos paradigmas da cidade. Seria dizer não ao transporte individual e sim à sustentabilidade propriamente dita. Um “turning point”, um ponto de virada na trajetória de Goiânia, assim como poderia ter sido a implantação do Eixo Anhanguera em relação à mobilidade nos anos 70. Infelizmente, aquele que havia sido o primeiro modelo de BRT no Brasil se tornou apenas um fato isolado no crítico sistema de transporte público da capital.
Nesse aspecto, Curitiba fez o que Goiânia não conseguiu. Exatamente por isso, hoje o prefeito que bancou as mudanças que a capital paranaense precisava 40 anos atrás tem seu nome eternizado na história. A referência positiva que a cidade se tornou mundialmente tem o dedo de Jaime Lerner, assim como ocorreu com a colombiana Bogotá, graças a Enrique Peñalosa.
Como prefeitos, ambos, Lerner e Peñalosa, enfrentaram o risco da impopularidade para implantar o modelo de cidade em que acreditavam. O sucesso de seu arrojo foi o motivo de terem obtido mandatos por mais de uma vez. Goiânia parece ter na Prefeitura apenas um senhor com vários mandatos, mas que não entrará para a história como referência de gestão. Mais importante do que a vaidade dos livros e da história, porém, é a gravidade da irresponsabilidade com a coisa pública, deixando como legado uma cidade que poderia ter sido e não foi.