O Brasil até parece “tentar”, mas sua transparência não combate a corrupção
11 março 2017 às 09h58
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Qualidade dos dados abertos que o País produz é ruim e praticamente não ajuda a minorar o mal, diz pesquisadora goiana
Existe um ditado para falar a respeito de honestidade. Dizem que à mulher de César não basta ser honesta; mais importante do que isso é que ela pareça honesta. Ou seja, de nada vale a boa intenção se não chegar a ser percebida como tal. Uma analogia pode ser feita em relação à transparência na gestão pública: não basta ser transparente, é preciso parecer, de fato, que seja.
Este texto é sobre transparência, dados abertos e Brasil. E começa com duas notícias, uma boa e uma má. Primeiro, a boa: este País e a Grã-Bretanha são os únicos entre 92 países que publicam dados abertos (“open data”) sobre gastos públicos. Agora, a má: a qualidade dos dados abertos que o Brasil produz é muito ruim e praticamente não ajuda no combate à corrupção.
Essa é uma das principais conclusões de uma pesquisa feita por Daphnee Iglesias, especialista em Relações Internacionais e Políticas Públicas, para a World Wide Web Foundation e a Transparência Internacional – organização não governamental cujo principal objetivo é a luta contra a corrupção. Intitulada “Open Data and the Fight Against Corruption in Brazil” – ou “Dados Abertos e a Luta Contra a Corrupção no Brasil”, em português –, o estudo participou de um mesmo levantamento em que foram aplicadas as mesmas questões simultaneamente em outros quatro países: África do Sul, Alemanha, França e Indonésia. Uma amostragem retirada do G-20, cúpula em que todos os integrantes assinaram o acordo de implementação de princípios de dados abertos contra a corrupção.
Antes de detalhar, é preciso entender o que são dados abertos: aqueles que estão fornecidos de tal forma que possam ser livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer indivíduo. Ou seja, tem a ver com disponibilidade e acesso (devem estar disponíveis como um todo e com custo viável para reprodução – preferencialmente possíveis de serem baixados via internet –, bem como ser modificáveis), com reutilização e redistribuição (fornecidos de modo a permitir combinação com outros dados) e participação universal (qualquer um deve poder usar, reutilizar e redistribuir, sem discriminação contra pessoas, grupos ou áreas de atuação e sem qualquer tipo de restrição).
“Simplificando: um dado aberto é uma informação que pode ser lida, retrabalhada e compartilhada sem que haja nenhum obstáculo a isso”, diz Daphnee, que é mestra em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance, em Berlim, na Alemanha e hoje trabalha na Universidade Federal de Goiás (UFG) – se graduou em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Ou seja, não basta disponibilizar a informação, é preciso que ela possa ser entregue “de verdade” àquele que a procura.
Desde 2012, está em vigor a Lei de Acesso à Informação (LAI), que regulamenta o direito constitucional a acessar informações do governo. Mas o fato de haver a lei e de a lei ter o propósito de dar transparência à esfera pública não significa que isso se efetive plenamente – condição básica, como se viu acima, para o chamado “dado aberto”, o qual, conforme se revela, deixa de existir por conta de detalhes que poderiam parecer detalhismo, mas não são.
Daphnee explica a partir de um exemplo simples – a extensão de um arquivo de planilhas. “Se um dado é disponibilizado em *.xls, não se pode dizer que seja um dado aberto (a extensão, do Excel, é propriedade da Microsoft); ela precisa ser viabilizada para *.csv, que pode ser acessado livremente sem ter de se pagar por uma licença.”
Falando de modo mais direto sobre seu trabalho mais recente, Daphnee conta que, para verificar a qualidade da informação disponível ao acesso dos cidadãos e sua efetividade no combate à corrupção, os coordenadores da pesquisa exigiram a atenção a dez pontos-chave (“datasets”) para medir os reais esforços dos países no combate à corrupção por meio da abertura de dados.
O resultado? Claro que o Brasil não passou no teste. “No Portal da Transparência do governo federal, por exemplo, só temos disponíveis os itens 5 (orçamento do governo) e 6 (despesas governamentais). Além de disponibilizar todos os itens dos dez datasets, seria fundamental juntá-los todos em um mesmo portal, facilitando a vida de quem precisa da informação”, afirma a pesquisadora. “Na Grã-Bretanha, todas essas informações estão no mesmo portal. No Brasil, há um portal de gastos e receitas, outro sobre compras públicas, um terceiro sobre eleições. Não se consegue encontrar tudo em um só. Até existe um portal feito para ser o central (www.dados.gov.br), mas ele não tem sido satisfatório.”
Outro problema verificado é a forma de publicização dos dados. “Se cada órgão de uma mesma empresa publicar seu balanço em uma plataforma diferente – um PDF, um vídeo, uma planilha, um relatório por escrito – como analisar esses dados de uma forma produtiva?”, questiona.
A falta de transparência e a dificuldade de lidar com o pouco que ainda temos em relação a isso causa o efeito colateral de frear o objetivo de passar o Brasil a limpo. É que a Lava Jato não utilizou dados abertos na investigação. “Sem isso, tudo fica mais demorado, pois os investigadores precisam ficar esperando o repasse das informações de outros órgãos”, conclui Daphnee.
Dados abertos são importantes para que a própria sociedade possa fazer o controle social dos gastos e das ações anticorrupção.
Para ir muito além na transparência
Pontos-chave para minar a corrupção por meio dos dados abertos
1. Registro de atividade de lobby – ao contrário de outros países, no Brasil não há regulamentação para a atuação dos lobistas, ou seja, não há parâmetro. Empresas costumam usar os chamado “departamentos de relações institucionais” para a atividade junto a políticos – o que foi evidenciado pela Operação Lava Jato.
2. Registro de quadro de sócios – o Brasil não abre o acesso ao quadro de sócios de empresas.
3. Registro de beneficiário final – Um dado aberto que serve para saber quem de fato é dono de uma determinada empresa, evitando que a informação pare apenas em um “laranja”. No Brasil, essa informação só foi incluída pela Receita Federal em 2015 e, mesmo assim, só para empresas com sede no exterior. A origem da informação continua em base fechada.
4. Servidores públicos – detalhamento do papel/função dos servidores que tenham cargos de maior relevância/importância, bem como disponibilização de seu contato pessoal (e-mail, telefone, endereço etc.).
5. Orçamento do governo – dados sobre orçamento do governo nacional em um nível amplo, com gastos por setor, departamento, subdepartamento etc.
6. Despesas governamentais – registros mensais de gastos do governo nacional com despesas governamentais em itens específicos, de montantes inferiores a U$S 1 milhão ou mesmo US$ 100 mil.
7. Contratos públicos – detalhamento dos contratos celebrados pelo governo.
8. Financiamento político – dados sobre as contribuições financeiras recebidas por políticos e partidos.
9. Registros de votação nos parlamentos – contendo registros de votos individuais, incluindo sessão, câmara legislativa e categoria da lei (se é uma emenda, uma nova lei, uma nomeação etc.).
10. Registro de terras – informações em nível nacional sobre propriedades fundiárias e sua localização.