“Nos lembramos que somos gente de novo”, disse uma mulher presa ao assistir, pela primeira vez, uma aula no Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira, unidade educacional dentro do complexo prisional em Aparecida de Goiânia.  “A leitura em si, ela tem o poder de libertar.  Mesmo você estando preso, trancado, você lendo se sente diante daquela história contada”, disse outro aluno.

Rafael (nome fictício), tem 28 anos, e desde os 20 está preso na Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG). Ele conta que, quando chegou no sistema carcerário, a perspectiva de retorno para o crime era muito grande. “Hoje a gente encontra mudança. Tanto aqui na escola como no sistema, a gente está tendo oportunidade de realmente poder mudar”. 

“Tudo que eu aprendi aqui na escola tem mudado muito a minha vida”. Rafael chegou ao presídio sem ter terminado o ensino fundamental e, agora, com o EJA (Educação de Jovens e Adultos), tem a oportunidade de voltar para a sociedade com o Ensino Médio completo, podendo também cursar uma faculdade. Com a remição pela leitura, ele termina a pena em fevereiro de 2026. 

Rafael, que vai completar 8 anos de prisão | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

A remição por estudo, prevista desde 2011 na Lei de Execução Penal, permite que os presos reduzam parte da pena por meio da educação, além do trabalho. A nova resolução inclui três formas de atividade educacional no cálculo: educação regular, práticas não escolares e leitura. Já na remição por trabalho, mantém-se a regra de um dia de pena a menos a cada três dias de trabalho.

O Jornal Opção acompanhou um dia de aula dos detentos, ouviu suas experiências e conversou com professores que têm o ensino como uma missão de vida. Nelson Carneiro Júnior é um deles. Há 15 anos ele leciona na educação prisional do Estado de Goiás. Com formação em pedagogia e filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Nelson faz seu doutorado com a seguinte tese: qual o lugar da educação de Jovens e Adultos em contexto de restrição e privação de liberdade? 

“Por que permaneço na educação prisional? Talvez porque nesse espaço tão violento e contraditório ainda seja possível falar de arte, de esperança, de solidariedade, de futuro, enfim, de proposições que nem sempre são perceptíveis devido ao lugar de fala desse sujeito. Aqui entrei em contato de forma muito intensa com a questão social e de que forma essa pode ser decisiva em muitos casos para compreender uma determinada realidade.” 

Como é a rotina dos alunos 

No Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira, a rotina começa cedo. Às 8 horas, professores e servidores atravessam os portões de segurança, passam pelo scanner e aguardam a liberação para entrar. Às 8h30, as salas se enchem de vozes — não de barulho, mas de expectativa. Atrás das grades, cada livro aberto é uma janela para fora.

Atualmente, cerca de 1,8 mil alunos estão matriculados na escola, que funciona dentro do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. A unidade atende estudantes de todas as penitenciárias do local, incluindo a Penitenciária Feminina Consuelo Nasser e a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG), onde as aulas acontecem nos três turnos: manhã, tarde e noite.

Todos assistem às aulas por detrás das grades. “Geralmente entramos na escola às 8h. As aulas começam às 8h30 e seguem até as 11h. À tarde, o horário é das 13h30 às 16h30, e à noite, das 17h30 às 19h30”, explica Nelson, um dos professores, destacando que o trabalho exige disciplina e comprometimento. “Todo dia passamos por revista, seguimos protocolos rigorosos de segurança e, ainda assim, conseguimos manter um ambiente de aprendizado e respeito.”


Algemas são deixadas ao entrar na sala de aula | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

A equipe conta com cerca de 35 professores e servidores administrativos que se revezam nos turnos para garantir o funcionamento constante das aulas. O desafio, no entanto, vai além da rotina: o sistema precisa lidar com as constantes transferências, alvarás de soltura e mudanças de regime dos custodiados.

Apesar disso, o impacto é inegável. Estima-se que, ao longo de três décadas de funcionamento, mais de 5 mil estudantes já tenham passado pelas salas do colégio — um número que representa não apenas certificados emitidos, mas também histórias reescritas.

Durante a pandemia, o ensino prisional também precisou se reinventar. Com o fechamento temporário das atividades presenciais, foi implantado o REAMP (Regime de Acompanhamento à Distância), uma adaptação que permitiu manter o vínculo dos alunos com os estudos, mesmo em meio ao isolamento.

Hoje, com o retorno das aulas presenciais e o aumento no número de estudantes, a escola adota um sistema de rodízio para que todos tenham acesso ao ensino. “Depois da pandemia, a procura cresceu muito. Tivemos que reorganizar as turmas para garantir que cada um pudesse estudar pelo menos em determinados dias da semana”, relata Nelson Carneiro.

Há gestos que, fora do presídio, parecem simples, mas, ali dentro, ganham outro peso. “Olha, tem coisas que acontecem só na escola prisional”, conta o professor. “Você termina uma aula, e os estudantes levantam e começam a te aplaudir. E aí você pensa: estou sendo aplaudido dentro de uma sala de aula, dentro de um presídio.”

Para ele, esses momentos são mais do que reconhecimento, são sinais de transformação. “De repente, o aluno está prestando atenção, e no meio da explicação ele diz: ‘Professor, agora eu entendi algumas coisas’. É ali que a gente vê a educação acontecer de verdade.”

No ambiente onde o tempo parece suspenso, a escola se torna o único elo com o mundo exterior. “O único contato que os estudantes têm com o mundo lá fora é a escola. É aqui que eles ficam sabendo o que está acontecendo na cultura, na economia, na política. É o ponto de atualização deles sobre o mundo”, explica o professor.

Mais do que ensinar conteúdos, o colégio promove projetos artísticos, culturais e educativos que dão sentido à rotina. Os resultados são surpreendentes. Ao longo dos anos, diversos detentos ganharam prêmios em concursos de redação, arte e fotografia. Alguns foram destaque em programas estaduais e nacionais. Recentemente, um aluno do colégio ganhou o terceiro lugar na 19º Olimpíada Nacional de Matemática (OBMEP). Ele recebeu a medalha dentro do sistema prisional. 

A emoção é compartilhada entre professores e estudantes. “Isso traz vigor, uma força que renova o sentido de estar ali. É a prova de que a escola transforma, mesmo entre muros altos e portões trancados.”

MPGO aposta na leitura como caminho

Desde 2018, o Ministério Público de Goiás (MPGO), por meio da coordenação de Projetos Institucionais, passou a estruturar a remissão da pena pela leitura como política pública, levando educação e oportunidade de mudança a centenas de detentos.

“Até então, a remissão pela leitura era feita de maneira muito desorganizada, cada comarca aplicando suas próprias regras”, lembra Liana Antunes Vieira Tormin, promotora de justiça e coordenadora de Projetos Institucionais do MPGO. A partir de 2018, em articulação com Tribunal de Justiça, Secretaria de Educação e a Diretoria Geral de Polícia Penal (DGPP), a prática ganhou regulamentação formal, uniformizando procedimentos e ampliando o alcance da iniciativa.

Liana Antunes Vieira Tormin | Foto: MPGO

O trabalho do Ministério Público não parou por aí. Em 2020, Liana coordenou uma pesquisa empírica de caráter qualitativo e quantitativo para avaliar os efeitos da leitura como instrumento de educação e ressocialização. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 43 atores do sistema prisional, incluindo representantes de órgãos públicos, professores, diretores de unidades prisionais e promotores de justiça, além de 21 detentos, que puderam relatar diretamente sua experiência com os projetos de remissão.

O estudo analisou também dados das unidades prisionais de Itumbiara, Catalão, Piracanjuba, Alto Paraíso e Goianápolis. As conclusões foram claras: a leitura desperta interesse pelo aprendizado, promove reflexões sobre ética e cidadania, contribui para a remissão da pena e auxilia na ressocialização dos apenados.

Com base nos resultados, a regulamentação foi atualizada em 2023, fortalecendo o programa e ampliando sua execução. Hoje, o MPGO coordena projetos como Refletir para Transformar, destinado a autores de violência doméstica, o Entre Linhas, na Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, e o Ativamente, que une alfabetização e leitura em parceria com o Instituto Federal Goiano. Outro exemplo é o Novas Palmas, desenvolvido na Unidade Prisional Estadual de Anápolis, considerada de segurança máxima. Além destes, há o Releitura, que acompanha as políticas públicas de remição de penas pela leitura em todo o Estado.

Para organizar e acompanhar essas iniciativas, foi criado o Programa Ressoar, que supervisiona todos os projetos conduzidos por promotores e policiais penais, garantindo que os detentos não apenas leiam, mas tenham suas leituras avaliadas e reconhecidas na redução de pena. Mais de 80 unidades prisionais em Goiás hoje desenvolvem atividades educativas, muitas delas inspiradas pelo trabalho do Ministério Público, que atua como elo entre educação e justiça.

Segundo Liana, os efeitos vão além da remição da pena. “Toda atividade educativa contribui para a formação do ser humano, para o respeito aos direitos e para um tratamento mais digno dentro do sistema prisional. São ações que ajudam a pacificar e humanizar o ambiente”, afirma. Entre livros e cadernos, a leitura se torna, assim, uma porta aberta para o futuro, oferecendo aos presos uma chance de reconstruir suas histórias e enxergar novos caminhos.

Detento dá aulas de música 

Aulas de música acontecem 3 vezes por semana | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Entre as salas de aula e os muros altos do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, há um espaço onde as grades silenciam — o da música. No Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira, os acordes do violão ecoam como um lembrete de que o talento e a esperança sobrevivem, mesmo em cativeiro.

Os instrumentos chegaram ao presídio por meio de um projeto da Universidade Federal de Goiás, que oferecia aulas semanais com professores da instituição. Durante um tempo, as notas preenchiam o ambiente e, junto delas, a vontade de aprender. Mas, após o encerramento do projeto, o silêncio tomou conta da sala por cerca de seis meses — até que Alexandre, um dos detentos, decidiu não deixar a música morrer.

Cantor e compositor, Alexandre já havia vivido os palcos. Com sua dupla, lançou três álbuns gravados e um DVD lançado em Goiânia, além de dividir palco com Henrique e Juliano. “A gente viajava pelo Brasil, fazia shows. Eu era a primeira voz da dupla, compositor também. Mas a vida me trouxe pra outro caminho. O corpo está preso, mas a mente não”, conta ele, com serenidade.

Autodidata, começou a tocar aos nove anos na igreja dos pais, que eram pastores. “Aos 14 já compunha minhas primeiras músicas. A música sempre foi minha forma de conversar com o mundo”, relembra. No presídio, ao ver os instrumentos parados, Alexandre propôs reativar o projeto, agora como professor voluntário de música.

As aulas acontecem três vezes por semana, à noite, já que durante o dia os alunos trabalham ou estudam em outras turmas. “A gente prepara as aulas durante o dia e, à noite, ensina viola e violão. Tem alunos que nunca tinham pegado num instrumento e, em dois meses, já estavam se apresentando”, diz, orgulhoso.

O grupo utiliza a biblioteca da escola para estudar partituras e letras, com apoio do professor André, que ajuda na organização do material. “A gente anota tudo em cadernos, passa no quadro pra não esquecer. Cada dia é uma nova lição, e os meninos estão crescendo, musicalmente e como pessoas.”

Entre uma canção e outra, Alexandre reflete sobre o significado do projeto:

“Aqui dentro, a música é mais do que arte. É uma forma de manter a mente livre. Eu poderia ter desistido há anos, mas encontrei na música um motivo pra continuar sonhando.”

Ele fala com a convicção de quem acredita no recomeço.

“Além desses muros, ainda tem uma vida. Eu quero sair daqui e continuar compondo, gravando, levando essa história adiante. Espero que os alunos que estão comigo hoje também continuem o projeto, nunca desistam deles mesmos.”

Suas referências vão de Milionário & José Rico a Chitãozinho & Xororó, passando por Roberto Carlos e até Marília Mendonça, de quem se declara fã. “Eu tinha uma música pronta pra gravar com ela. Não deu tempo. Senti muito. Mas sigo compondo. Cada canção é uma lembrança do que vivi e do que ainda posso viver.”

Antes do fim da entrevista, Alexandre sorri e pede para cantar uma de suas composições: “Resquício de Ressentimento”. A voz preenche o ambiente com uma mistura de dor, fé e esperança — um lembrete de que, mesmo entre grades e algemas, ainda há resistência, aprendizado e recomeço.

Alexandre, que é cantor e dá aulas de música no POG | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

“A maior mudança é a ressocialização

Rafael, o detento do início da reportagem, conta que não participa das aulas de música porque não tem coordenação motora, mas que gosta muito de português e matemática. Sorriso tímido, caderno nas mãos e uma certeza que ele faz questão de repetir: “A maior mudança é a ressocialização.”

Ele lembra de um tempo em que, dentro do sistema, “não se via perspectiva de mudança”.

“Antigamente, os caras saíam e voltavam em duas semanas. Hoje é diferente. Muita gente não volta mais. A escola está fazendo a diferença, está mostrando que é possível mudar de verdade.”

Para ele, a educação é o que dá sentido aos dias atrás das grades. “Tem muita gente que fala que investir no sistema prisional é jogar dinheiro fora. Mas não é. Muita gente aqui está aprendendo, está buscando uma vida melhor.”

Rafael conta que, quando chegou, acreditava que a vida tinha acabado. “Minha condenação era muito grande. Eu pensava: acabou, não tem mais jeito. Mas fui atrás do advogado, consegui reduzir a pena, e hoje eu vejo que essa oportunidade eu não posso desperdiçar. Tenho que abraçar com toda a força.”

Com o olhar firme, ele fala sobre o que aprendeu: “Todo dia a gente tem que buscar mudar um pouco, aprender mais e usar isso no futuro. É isso que faz a diferença.” Rafael também fala sobre o que vê nos mais jovens que chegam ao presídio. “Tem muito moleque novo que entra nessa vida com uma visão do que é o crime. E você só vai aprender depois. O dinheiro que vem rápido, vai rápido. Amanhã já é prejuízo. A vida é curta demais pra viver do jeito errado.”

Perfil dos alunos

“É uma experiência ímpar”, diz Doralice França, professora há 26 anos — 20 na rede externa e, nos últimos seis, dentro do Complexo Prisional. Foi ela quem abriu o turno noturno da escola. No começo, faltava espaço, faltava prática; seis, nove meses depois, o passo firme: “Quando a gente colocou tudo em dia, foi maravilhoso. É maravilhoso ver o resgate. O coração bate diferente quando a gente resgata pessoas.”

Professora Doralice França | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Ela lembra que já lecionou sem grades, em salas improvisadas na biblioteca e na Hering. Atualmente, há empresas instaladas dentro do complexo, que usam a mão de obra carcerária. Protocolos como a “roda de fuga”, o posicionamento estratégico das cadeiras e a manutenção de rotas livres fazem parte de um conjunto de medidas voltadas à segurança dos professores e alunos dentro da unidade. Esses procedimentos reforçam a confiança no ambiente escolar. A última rebelião registrada no presídio ocorreu em 1996, e desde então, nenhuma ocorrência grave colocou em risco a integridade dos educadores. Hoje, a escola funciona com tranquilidade e segurança.

Entre POG, Consuelo Nasser e a unidade Hering, Dora circula manhãs e noites, planejando atividades, recolhendo exercícios e cumprindo carga horária. É professora de Linguagens: português, inglês, educação física e artes. “Aqui, o mesmo conteúdo que eu trabalhava lá fora rende 70%, 80%. Lá fora, eu colhia 10%, 15%, 20%. Aqui, a coisa acontece.”

A composição das turmas é diversa: homens e mulheres de 22 a 60 anos, goianos e de outros estados (“tem muito paranaense”), histórias e delitos distintos — do não pagamento de pensão a crimes de alta periculosidade. Muitos chegam sem alfabetização plena e são alocados no EJA por etapas; a demanda por alfabetização excede as vagas. “A gente faz um trabalho paralelo: enquanto a turma avança no conteúdo, adapto material de alfabetização pra quem tem lacuna de leitura e escrita. Eles andam — e é bom demais ver”, afirma Doralice.

O acesso obedece a um fluxo pactuado com a segurança: o setor indica vagas por etapa (1ª a 5ª; 6º ano em diante), e a escola realiza matrículas in loco, conhecendo a realidade de cada aluno “lá dentro” antes de recebê-lo “aqui”. “Isso muda tudo. Você planeja melhor quando enxerga de onde ele vem.”

Sobre motivação, Dora é franca: “Quem não quer mudar, busca remição. Fala mesmo: ‘só caiu 30 dias?’ Mas muita gente quer aprender, concluir o Ensino Médio, fazer ENEM, ENCCEJA, curso técnico. A gente orienta vocação, mostra caminhos.” Ela conta de ex-alunos vistos por colegas na faculdade; cita casos que foram do analfabetismo à assinatura do próprio nome — sem usar o dedo para guiar a leitura. “Quando eles dizem: ‘professora, agora eu leio e escrevo’, imagina o que é pra gente.”

Há também o trabalho formal dentro do complexo: “Na CPP, meus alunos noturnos são quase todos da Hering. Trabalham das 8h às 17h e chegam pra aula às 17h30. Tomam banho, acolhida, 18h começa.” Em todas as unidades, relata uma rotina de alimentação estruturada (café, lanche, almoço, fruta, jantar) e uma biblioteca que precisa de reforço. “A procura por livro é grande, mas o acervo é curto”.

Biblioteca do colégio | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Preferências? Dora não escolhe entre turmas femininas e masculinas. “Como mulher, gosto de trabalhar com as mulheres; mas os homens se abrem mais, contam mais da vida. Cada público pede uma escuta.” E exige, diz ela, um perfil específico do docente: sensibilidade, coragem e preparo humano. “Muita gente pergunta se eu tenho medo. Não tenho. Talvez porque a segurança nos respalde. O que sei é que, nesses seis anos aqui dentro, eu me realizei mais do que nos 20 lá fora.”

Unidades de ensino em 62 prisões de Goiás

À frente da Gerência de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Estado da Educação (Seduc), Stela Regina Ferreira acompanha de perto o trabalho desenvolvido nas escolas prisionais. Com mais de dez anos de atuação no sistema, ela define a experiência como um compromisso com a dignidade humana.

“Quando a gente visita uma sala de aula, conversa com os estudantes e observa as atividades culturais, percebe que, em algum momento, a oportunidade foi tirada dessas pessoas. E é aí que entra o papel da escola, do Estado e do professor: devolver a dignidade e oferecer uma nova chance de reescrever a própria história”, afirma.

Gerente da Seduc, Stela Regina Ferreira | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Stela explica que hoje o Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira é referência no Estado de Goiás — a única unidade com estrutura completa dentro de um complexo prisional. Atualmente, o colégio serve de modelo para as 62 extensões que funcionam em presídios de outros municípios goianos.

“Nos interiores, as unidades funcionam como extensões, ligadas a uma escola referência da cidade. Mas aqui, no Estivalete, nós temos toda a estrutura: salas, computadores, biblioteca, e uma equipe dedicada em tempo integral. É a única escola do tipo em Goiás”, explica.

Segundo Stela, o trabalho não é apenas pedagógico — é também emocional e humano. “Esses professores têm uma formação sólida, muitos com mestrado e doutorado, mas o que mais conta é a sensibilidade. Trabalhar aqui exige escuta, empatia e preparo emocional. Por isso, a secretaria oferece acompanhamento psicológico e psiquiátrico aos servidores que precisam. O cuidado é com todos.”

Para ela, a educação prisional é uma das expressões mais autênticas da função social do ensino público.

“Quando você entra numa unidade prisional e vê um aluno aprendendo a escrever o próprio nome, tocando um instrumento, lendo um livro ou se preparando para o ENEM, você entende o verdadeiro sentido da escola. É devolver esperança onde o tempo parecia ter parado.”

História do Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira

| Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

A história do Colégio Estadual Dona Lourdes Estivalete Teixeira se confunde com a própria trajetória da educação prisional em Goiás. Criada dentro do Centro de Prisão e Trabalho Agroindustrial de Goiás (CEPAIGO), a escola nasceu com a proposta de unir educação e trabalho como caminhos de ressocialização.

Em 1986, a unidade foi fechada, permanecendo inativa por mais de uma década. Em 1997, reabriu suas portas, agora como Escola Estadual do CEPAIGO, retomando o compromisso de oferecer ensino aos privados de liberdade. Três anos depois, em 2000, recebeu o nome que carrega até hoje — uma homenagem à Dona Lourdes Estivalete Teixeira, esposa do então governador Mauro Borges.

A homenagem não é apenas simbólica. Mauro Borges, que governou Goiás entre 1961 e 1964, foi o idealizador do próprio CEPAIGO, concebido dentro do Plano de Intervenção Econômica e Racionalização do Estado, conhecido como Plano Mauro Borges. O objetivo era criar um espaço onde pessoas privadas de liberdade pudessem cumprir suas penas trabalhando em colônias agrícolas, associando disciplina, produção e reinserção social.

Além de Dona Lourdes, outras figuras femininas marcaram o início dessa história. Gercina Borges Teixeira, mãe de Mauro Borges, também atuou ao lado da primeira-dama na promoção de ações sociais voltadas à reeducação e à dignidade humana. Pesquisas recentes revelam que, já em 1973, existia uma escola dentro do CEPAIGO: a Escola Estadual Dona Gercina, que funcionou até 1985, durante o regime militar.

Esses registros mostram que Goiás foi um dos estados pioneiros na implementação da educação formal dentro do sistema prisional. “A escola tem uma ligação muito forte com o legado de Mauro Borges e com o papel das mulheres que, naquele período, se dedicaram à causa social e à educação como instrumento de transformação”, relata Nelson Carneiro, professor que estuda a história da unidade.

Hoje, quase meio século depois da primeira experiência educacional no CEPAIGO, o Colégio Dona Lourdes Estivalete Teixeira continua sendo símbolo de resistência, memória e reconstrução — um espaço onde a história do Estado e as histórias pessoais de centenas de reeducandos se encontram.

Reeducandos na aula de música | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

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