Daniel Alves tinha de cobrar um escanteio, parte de seu ofício de jogador de futebol. E aí começou uma sensacional campanha contra o racismo no esporte

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Daniel Alves, mestiço de traços negros e olhos claros: reação inovadora muda rumo do combate ao racismo nos campos

Elder Dias

Nenhum de nós dois é macaco. Nem eu que es­crevo nem você, que me lê agora. Ma­ca­cos não escrevem e não têm a ca­pacidade de ler — pelo menos não da forma convencional de interpretação de caracteres a que acostumamos chamar “leitura”. E pode ser que quem lê este texto agora tenha cor de pele branca, amarela ou negro. Ou nuances entre essas cores, o que é até mais provável. Ge­ral­mente, somos cada um misturas de várias pessoas, cada uma de uma etnia. É essa a beleza de ser humano e poder escolher seu par entre as diferenças, por uma sensação indescritível que envolve, entre outros itens, instinto, afeição e discernimento. A primeira, propriedade totalmente animal; a segunda, humana — embora não de forma exclusiva, segundo alguns estudos; e a terceira, também somente de nossa espécie, embora infelizmente não de todos os espécimes dela. 

E foi pela mão de um desses espécimes sem discernimento que uma banana foi jogada no gramado do estádio El Madrigal, em Villarreal, no domingo, 27 de abril, no momento em que o time local jogava contra o Barcelona, time de Daniel Alves. Este era o alvo da fruta. Por quê? Porque, embora haja macacos brancos — como o uacari, o macaco-narigudo, o babuíno-sagrado e o lesula, que é loiro e tem olhos cor-de-mel —, convencionou-se associar os negros aos nossos irmãos primatas desprovidos de discernimento, tal como o atirador de banana do El Madrigal. E Daniel Alves é negro, embora não seja o que se chamaria de “100% negão”: tem pele morena e olhos verdes. É um exemplar típico da alta miscigenação brasileira, que não serviu, no entanto, para tirar o racismo do dia a dia da Nação.

Mas na Espanha a coisa é pior. Um país do dito Primeiro Mundo, mas que convive há tempos com movimentos separatistas em profusão — quem é de Barcelona se sente catalão e não espanhol, quem é de Bilbao se diz basco e não espanhol. Não é diferente em relação aos fenótipos: quem é mais “escurinho”, diferente do padrão espanhol ou mesmo de uma nacionalidade considerada por eles “inferior” — árabes, latinos, africanos, indianos e orientais em geral ficam mais expostos — vai topar cedo ou tarde com algum tipo de atirador de banana, ainda que não exatamente com uma banana na mão.

Daniel Alves tinha de cobrar um escanteio, parte de seu ofício de jogador de futebol. Viu algo atirado ali a seu lado e entendeu que alguém tinha jogado aquilo. Entendeu que era uma banana e que era para ele. Até aí, até um macaco faria igual. Mas o brasileiro passou ao nível do discernimento quando percebeu que alguém desprovido desse atributo não sabia que aquele momento — com o jogo em curso e ele precisando pôr a bola em jogo — não era o mais inapropriado para oferecer-lhe uma banana. Mais do que isso: discerniu que aquele indivíduo talvez quisesse não que ele comesse a fruta, mas que se sentisse ofendido, já que deveria se considerar mais espanhol (e portanto, mais humano) do que o jogador, negro e brasileiro.

Daniel tinha a opção de ficar paralisado com o ocorrido, esperando uma providência das autoridades. No caso, do árbitro da partida. Ou de sentir o baque da provocação, se irritando contra as arquibancadas, chorando ou saindo de campo, atitudes que já haviam sido protagonizadas por outras vítimas de seres sem o devido discernimento. Preferiu a terceira via: ato contínuo ao arremesso da banana, abaixou-se, to­mou-a, descascou-a e a engoliu rapidamente, de modo com que não retardasse sua tarefa de cobrar logo o escanteio — afinal, seu Barcelona per­dia por 2 a 1. Como a banana é rica em potássio, usou a fruta para prevenir câimbras. Afinal eram decorridos já 30 minutos do segundo tempo.

Bastaria o item “discernimento” para dizer que nós, humanos, não somos todos macacos. O duelo entre o atirador de bananas e Daniel Alves mostra que realmente não somos todos iguais: alguns têm discernimento, outros nem tanto. Enfim, bastaria isso para colocar em descrédito a campanha #somostodosmacacos, puxada nas redes sociais por Neymar, por meio da agência Loducca.

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Neymar e Davi Lucca: pai negro e filho loiro na foto polêmica para as redes

O ano em que o craque virou preto

Antes de Daniel Alves, o próprio Neymar — que em 2010, aos 18 anos, ao ser questionado disse que nunca tinha sido vítima de racismo, “até porque não sou preto, né?” — havia se tornado a vítima da vez. Duas vezes, aliás, em curto espaço de tempo. No dia 29 de março, no clássico da Catalunha, contra o Espanyol, a torcida adversária imitou sons de macaco e jogou uma banana descascada em sua direção. Duas semanas depois, um racismo “fogo amigo”: após a derrota para o Granada, que praticamente tirou as chances de o time catalão chegar ao título espanhol da atual temporada, ele foi recebido aos gritos de “macaco” e outros xingamentos no estacionamento do clube por torcedores.
Em menos de uma temporada na Espanha, o menino que um dia achou que a coisa não era com ele já estava curtido na falta de bom senso alheia sobre o tema diversidade, bastante evidente na Europa de hoje. Resolveu tomar uma atitude e convocou a Loducca, que então elaborou uma campanha publicitária sobre o tema. E escolheu a frase-slogan “Somos todos macacos” como mote para um viral em forma de “hashtag” — frase curta, sem espaços entre as palavras e iniciada com o sinal “#”, popularizada pelo Twitter e usada para destacar assuntos nas redes sociais em geral.

O gatilho para a campanha seria o próximo caso de racismo que o atingisse. Só que o disparo aconteceu antecipadamente, com a ação tomada por Daniel Alves — que também já estaria orientada pela agência, mas que teria Neymar como protagonista. Só que o astro da seleção está machucado. Foi de casa que ele viu o companheiro tendo a atitude e resolveu começar a “brincadeira”: logo depois do jogo postou nas redes uma foto com uma banana na mão e ao lado do filho Davi Lucca, branco e loiro, que segurava uma banana de pelúcia. “Somos todos iguais, somos todos macacos, racismo não!”, iniciava seu texto, que foi finalizado com a expressão #so­mos­todosmacacos em português, inglês, espanhol e catalão. Co­me­çava a polêmica, se a campanha era válida ou apenas “para aparecer”.

Campanha agressiva choca ortodoxia do movimento negro

Partida da 2ª Divisão alemã, em 2011, com campo recheado de bananas: depois do caso Daniel Alves, isso voltará a ocorrer?
Partida da 2ª Divisão alemã, em 2011, com campo recheado de bananas: depois do caso Daniel Alves, isso voltará a ocorrer?

A reação do mundo inteiro foi imediata à “campanha do Neymar”. A “hashtag” divulgada pelo jogador al­çou o Top 10 dos “trending to­pics” (assuntos mais comentados) do Twit­ter no mundo inteiro. Vários outros jogadores e celebridades de várias áreas (atores, cantores, políticos etc.), de todas as cores e de várias nações, apareceram em fotos repetindo o gesto do atacante do Barcelona, com uma banana na mão. Os fãs, obviamente, também aderiram.

Produziu-se o “efeito manada”, como é de se esperar de uma boa campanha via internet: a banana ingerida por Daniel Alves e a pose de Neymar com o filho ao lado viraram o assunto do dia nas redes sociais e assunto obrigatório nas mesas-redondas de esporte da segunda-feira.

No âmbito do esporte, ambas as ações — de Daniel e de Neymar — foram bem recebidas. O mesmo não ocorreu em relação entre estudiosos do tema e pessoas mais engajadas em movimentos sociais. A maioria dos acadêmicos endossou o ato de comer a banana, mas torceu o nariz para a campanha, principalmente depois de saber que o roteiro já estava programado para acontecer, com vídeo produzido e tudo o mais. Isso só piorou o que de fato incomodava: a palavra “macacos” divulgada mundo afora.

Fixaram-se eles nesta e esqueceram o restante da frase. “Macacos” era a palavra adequada para dar o necessário tom agressivo à publicidade — e propaganda com tema polêmico tem mais chance de “encaixar” quanto mais ousada for. Mas o diferencial da campanha estava no “somos todos”. A turma de Neymar puxou a noção de conjunto, tão cara ao mundo dos esportes coletivos, como é o futebol.

A outra turma, a da academia, não entendeu assim. Para seus integrantes, Neymar tocou em um tema caro dentro do processo histórico de luta dos negros para ocupar seu devido espaço na sociedade, especialmente no Brasil, ao se utilizar do termo “macacos”.

A preocupação é legítima, porque é uma batalha diuturna, muitas vezes inglória e cercada de hipocrisias. O Brasil, com seu “homem cordial” visto por Sergio Buarque de Holanda e com a dicotomia “casa-grande x senzala” de Gilberto Freyre, não é um país em que as pessoas costumam expor seu racismo de forma tão direta, o que torna as coisas mais difíceis, pois ficam subentendidas e na base do “não era isso que eu queria dizer”.

Ao contrário e por acaso, ocorreu também na semana passada, mas nos Estados Unidos, o desfecho de um escândalo racista, com o milionário Donald Sterling, dono do Los Angeles Clippers, que foi banido do esporte após ter revelada uma conversa em que dizia à namorada que não queria mais vê-la ao lado de negros. A reação dos jogadores, da liga de basquete e das autoridades (incluindo Barack Obama, o primeiro presidente negro dos EUA) foi imediata e dura.

O episódio em Villarreal também gerou um banimento para sempre: o atirador de banana ridicularizado por Daniel Alves teve recolhida sua carteira de acesso ao estádio e nunca mais poderá assistir aos jogos de seu time da arquibancada. Não se sabe até que ponto a repercussão do caso — com a campanha de Neymar — teria influenciado na decisão do clube. O que é certo é que influenciou, bem como deverá continuar a ter repercussão, mas de forma proativa: de agora em diante, os jogadores já sabem como se portar diante de uma atitude racista que venha de fora do campo. E os torcedores sem discernimento já sabem que poderão novamente ver o veneno atirado se voltar contra eles e os fazer tomar o papel de macacos da história.

É nesse ponto que ideólogos e homens práticos tomam rumos diferentes: o que Neymar conseguiu atingir com sua campanha — natural ou arquitetada (“artificial”), por que isso importa mesmo? — serviu para medidas efetivas serem implementadas muito mais rapidamente do que ocorreriam se não houvesse o tratamento de choque que ela proporcionou. Não usou nenhum teórico das ciências humanas para resolver seu problema, até porque só ele e os demais jogadores sabem o que eles próprios passam: se os discriminados de qualquer categoria costumam se arrogar o princípio “você não sabe o que eu passo”, nem mesmo os negros não jogadores podem sentir na pele o que é ser acossado por xingamentos racistas enquanto tentam jogar futebol sob pressão de resultados e diante de dezenas de câmeras de TV para registrar o vexame. É uma situação única.

Dessa forma, por mais que uma fala da ministra Luiza Barros, da Igualdade Racial, tenha dominância sobre o tema e ela diga que “a imagem do negro como macaco vigora há muito tempo” e que “assumir isso como algo válido pode reforçar a negatividade que essa imagem contém” — e que Veridiano Cus­tódio, secretário especial da Pro­moção da Igualdade Racial do Distrito Federal, diga que é preciso “pensar em alternativas de combate que não sejam reforçando esse estereótipo” (declarações dadas ao “Correio Braziliense”) —, ela não poderia recriminar a campanha de Neymar, que a conduziu partindo de uma situação concreta para a qual foi direcionada: cessar a violência racista nos campos de futebol. Nesse ponto, Neymar, Daniel Alves e seus colegas de profissão teriam a última palavra sobre o que dizer e o como dizer: é o que se chamaria “escola da vida”.

Faltou metaforizar

Um último aspecto deve ser evidenciado: a frase “somos todos macacos” incomoda, realmente. Ser chamado de “macaco” gera propensão a um sentimento de honra atingida. No contexto de uma campanha publicitária, porém, precisaria gerar metaforização para ser compreendido em sua integridade. A ortodoxia dos movimentos sociais parece lhes ter tolhido essa capacidade de buscar as entrelinhas oferecidas por palavras tão exóticas à forma de luta. A publicidade usou o veneno contra o envenenador. Ora, se somos todos macacos, isso significa, em outros termos, que estamos todos rebaixados a uma forma anterior de vida inteligente. Ao que houve uma resposta interessantíssima de uma amiga negra, doutoranda em História: “A brincadeira vai acabar logo e, conhecendo bem esse universo de negros e brancos, vamos ver a quem restará as bananas!”, indignou-se.

Mas aí vem outra questão: só existe a ofensa se existe o ofendido. Chamar alguém de “macaco” é algo a ser levado às instâncias legais. A ofensa não deve gerar humilhação, mas processo penal e punição — e é preciso acreditar, apesar de tudo, na punição pela Justiça. Essa é só uma parte a ser atacada de toda a problemática complexa do racismo, mas é assim, sem vitimização, com postura altiva e pragmática, que a coisa precisa ser tratada.

Ao comer a banana, Daniel Alves optou por não se sentir vítima e passou a algoz: com um humor de cinema mudo — e aqui cabe repetir que o gesto já havia sido também elaborado pela agência, mas para ser executado por Neymar —, ele pôs no devido lugar aquele que queria ter sido agressor: a jaula dos sem noção e dos incapazes de conviver com o discernimento das diferenças em sociedade. O atirador de banana pode até não ser macaco, mas se portou como indivíduo não adequado ao atual nível evolutivo da raça humana e vai ficar preso para sempre fora do estádio, impedido de ver novamente seu time jogar e marcado como aquele que foi ridicularizado ao tentar ridicularizar.