Em 2019, a pequena cidade goiana de Caldazinha, localizada a apenas 38 quilômetros de Goiânia e com cerca de 4.500 habitantes, foi beneficiada com obras de asfaltamento financiadas por emendas parlamentares direcionadas pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD), então candidato à prefeitura de Goiânia. A licitação das obras foi conduzida pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No entanto, um relatório de avaliação referente ao exercício de 2023, divulgado em maio de 2024 pela Controladoria Geral da União (CGU), revelou que o asfalto aplicado é de baixa qualidade e há suspeitas de superfaturamento na obra.

O Jornal Opção foi até a cidade de Caldazinha para ouvir os moradores dos bairros Boa Vista e Residencial Bom Jardim, onde as obras foram realizadas. “Esse asfalto que fizeram aqui há uns quatro anos não valia nada. Quando chovia, a água o levava embora de tão fino que era. É uma brincadeira a forma como esses políticos tratam o nosso dinheiro, na verdade, é uma vergonha. Esse asfalto bonito que você (repórter) está vendo aqui só existe porque foi refeito há pouco tempo. Se não fosse isso, nem asfalto teria mais”, relatou Enivaldo Batista, morador do bairro Boa Vista em Caldazinha, no entorno de Goiânia.

Outro morador do bairro, que possui parentes empregados na Prefeitura e preferiu não se identificar por temer retaliações, reforçou que o asfalto feito em 2020 parecia mais uma enganação. “Se fosse bom como disseram na época, não precisaria refazer, certo? Esses políticos acham que o povo é bobo, só pode. Depois que refizeram, ficou bom”, comentou. Ele ainda questionou: “Se o dinheiro foi repassado para fazer um asfalto ruim, então, para onde foi o nosso dinheiro?”

No Residencial Bom Jardim, que possui apenas cinco ruas, a situação é semelhante, mas com uma particularidade: a empresa contratada pela Codevasf asfaltou apenas três ruas e não fez as calçadas junto ao meio-fio, conforme previsto no contrato. No entanto, nas duas ruas restantes, que foram asfaltadas há três meses, a calçada foi concluída.

Uma moradora do bairro, que reside em uma das ruas sem calçada e aceitou falar sob anonimato, disse que já considerava um milagre ver o asfalto passar por sua rua, mas questionou a falta das calçadas. “Fiquei feliz ao ver as máquinas na minha rua, porque não é fácil viver na poeira ou na lama. Mas por que em algumas ruas tem calçada e em outras não? Quem está errado? Já cobramos da prefeitura, mas até agora não fizeram nada”, questionou.

O repórter tentou conversar com outros moradores dos bairros mencionados, mas o medo de represálias é evidente, mesmo com a garantia de anonimato. Um dos moradores afirmou: “Meu amigo, se eles descobrirem que alguém falou mal desse asfalto, vão perseguir. É assim que funciona em Caldazinha; eu não falo nem pagando.”

Vale destacar que a Codevasf chegou a Goiás em 2017. Em 2020, Vanderlan Cardoso, acompanhado da prefeita Solange Gouveia (UB) e do superintendente regional da Codevasf, Abelardo Vaz, indicado pelo próprio senador, vistoriou os trabalhos em dois bairros da cidade. O senador destinou R$ 1,5 milhão para as obras, executadas pela Codevasf. Durante a visita, Vanderlan elogiou a qualidade da pavimentação e expressou satisfação com o andamento dos trabalhos.

Relatório da CGU

Contudo, a auditoria da CGU apontou que a Codevasf contratou obras de pavimentação superfaturadas em cidades de dez estados brasileiros, incluindo Caldazinha. O relatório indica que os contratos auditados somam R$ 119,5 milhões, com prejuízos ao erário estimados em R$ 7,3 milhões. Em alguns casos, a pavimentação é tão fina que praticamente já não existe mais.

A CGU avaliou uma amostra da qualidade do pavimento em Caldazinha e constatou a incapacidade da Codevasf de fiscalizar adequadamente as obras, especialmente no que diz respeito à qualidade. Em 10 das 12 obras fiscalizadas no país, foi identificado superfaturamento.

O órgão federal realizou uma auditoria sobre a utilização do Sistema de Registro de Preços (SRP) para a contratação de obras de pavimentação asfáltica. A amostra da qualidade do pavimento em Caldazinha foi incluída nesse trabalho. As recomendações do Relatório nº 1413739 estão sob monitoramento, e a CGU recomenda a devolução dos valores indevidamente obtidos.

Desde 2020, as licitações da Codevasf para obras de pavimentação cresceram 240%. Em 2023, a estatal recebeu R$ 5,3 bilhões em emendas para 570 licitações lançadas. A Codevasf, que é responsável pela execução e fiscalização dessas obras, tem gestores regionais indicados politicamente e atende a demandas locais de infraestrutura. Esse cenário, aliado ao aumento de recursos, fez com que a estatal se tornasse conhecida como o “balcão de negócios do Centrão”.

Relatório do TCU

De acordo com um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), foram avaliados 23 contratos de pavimentação firmados pela Codevasf na modalidade de Sistema de Registro de Preços. Entre eles, o contrato nº 0.100.00/2019, no valor de R$ 1.550.237,26, executado pela Engefort entre 2019 e 2020 em Caldazinha.

A fiscalização identificou irregularidades na instalação da ferragem da calçada armada. Embora esse serviço constasse em quase todos os orçamentos, representando mais de 22% do total, a obra não foi executada. Situação semelhante ocorreu com o meio-fio: embora não tenha sido identificado superfaturamento, as especificações do que foi realizado ficaram aquém das previstas no orçamento.

Além disso, constatou-se que o serviço de Distância Média de Transporte (DMT) sofreu alterações significativas, elevando o risco de superfaturamento. Também foi observado que o custo da sarjeta executada é muito superior ao de uma sarjeta comum utilizada em vias urbanas.

É importante destacar que o documento não se refere exclusivamente à cidade de Caldazinha. O processo aborda uma auditoria contínua em editais e orçamentos de obras públicas com recursos vinculados ao extinto Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e à Codevasf. O processo foi encerrado com a decisão final do Acórdão 1609/2023.

Entre as considerações do relator do processo, ministro Jorge Oliveira, destaca-se a recomendação para que a Codevasf adote o Programa Brasil M.A.I.S. (Meio Ambiente Integrado e Seguro) do Ministério da Justiça, que utiliza imagens de satélite para fiscalização e acompanhamento de obras. Essa ferramenta tecnológica é crucial para melhorar significativamente os procedimentos de controle da Companhia.

O que diz a Codevasf

As obras avaliadas na auditoria da CGU estão vinculadas a contratos firmados pela Codevasf nos anos de 2019 e 2020. Desde então, a Companhia implementou diversos aprimoramentos nos processos relacionados à pavimentação de vias, visando desenvolver e fortalecer sua estrutura interna de fiscalização.

A auditoria da CGU contou com a participação ativa da Codevasf, que manteve um diálogo constante com o órgão de controle durante todo o processo de coleta de dados e análise dos resultados.

A empresa responsável pela obra em Caldazinha (GO) é a Engefort Construtora e Empreendimentos Ltda. A obra foi licitada por meio de pregão eletrônico, utilizando o sistema de registro de preços.

A Codevasf já iniciou processos de notificação das empresas responsáveis pelas obras avaliadas na auditoria, com o objetivo de corrigir falhas e/ou obter o ressarcimento de valores. Esse procedimento é adotado sempre que são identificadas inconformidades.

O que diz a prefeita 

A prefeita Solange Gouveia (UB) afirmou que a Codevasf foi responsável pela pavimentação completa do Setor Boa Vista, incluindo meio-fio e calçadas. No entanto, ela nega que a pavimentação tenha sido refeita, como alegam alguns moradores.

No Residencial Bom Jardim, as obras foram divididas em três etapas. A empresa contratada pela Codevasf realizou apenas 30% da pavimentação do bairro, incluindo as calçadas, o que é contestado pelos moradores. Uma das etapas foi executada pela prefeitura, e a última foi concluída com emendas parlamentares.

Sobre as denúncias feitas pelos moradores, a prefeita afirma que não procedem. “Tenho a dizer que a pavimentação ficou perfeita, um trabalho espetacular”, destacou. A gestora de Caldazinha, que concorre à reeleição, afirmou desconhecer os documentos tanto da CGU quanto do TCU.

A reportagem tentou contato com o superintendente regional da Codevasf em Goiás, Abelardo Vaz, mas ele informou que apenas a diretoria nacional poderia comentar o caso.

A construtora Engefort foi questionada via e-mail, mas até o momento não respondeu. O espaço permanece aberto caso a construtora queira se manifestar.

O que diz a Engefort Construtora e Empreendimentos

A construtora, quando procurada, enviou uma nota explicativa. Veja a nota na íntegra: 

“A Engefort informa que todas as respostas necessárias serão devidamente apresentadas ao órgão competente. Reiteramos que a empresa atua com total honestidade em suas operações, e todos os procedimentos adotados foram realizados em estrita observância aos requisitos legais.”