Não há cura mágica para o coronavírus
19 abril 2020 às 00h01
COMPARTILHAR
Atualmente, há cerca de 115 vacinas em desenvolvimento em diversos locais do mundo, cinco das quais já se encontram em estágio de testes em seres humanos
Vinícius de Medeiros Alves*
Especial para o Jornal Opção
Com as graves consequências decorrentes da disseminação do novo coronavírus, milhares de cientistas têm corrido contra o tempo para encontrar uma solução terapêutica capaz de conter os avanços da pandemia. Atualmente, há cerca de 115 vacinas em desenvolvimento em diversos locais do mundo, cinco das quais já se encontram em estágio de testes em seres humanos. Ainda, dezenas de medicamentos inicialmente desenvolvidos para tratar outras doenças estão sendo estudados para combater o vírus.
Dentre os fármacos que vêm sendo testados pela comunidade científica, a cloroquina é, certamente, o que mais ganhou atenção da mídia e de líderes políticos nas últimas semanas. Desenvolvido na década de 1940, tal medicamento é precipuamente utilizado no tratamento da malária, sendo também empregado em casos de lúpus eritematoso e artrite reumatoide. Trata-se, contudo, de um fármaco com janela terapêutica pequena (isto é, a margem entre a dose terapêutica e tóxica é estreita) e sérios efeitos colaterais, podendo levar à morte se usado erroneamente. O mesmo vale para a hidroxicloroquina, molécula semelhante com efeito farmacológico similar, mas com menor toxicidade.
Como bem explicado em um recente editorial da renomada BMJ (British Medical Journal)1, a cloroquina tem sido estudada em novos surtos virais desde a década de 1960, tais como nos vírus Epstein-Barr, Zika, chikungunya, Ebola, influenza H5N1 (gripe aviária) e influenza H1N1 (gripe suína). Apesar de habitualmente apresentar resultados promissores in vitro (em células isoladas infectadas com o vírus), o medicamento nunca demostrou ser eficaz em estudos realizados em animais ou seres humanos. No caso do Ebola, testes realizados em porquinhos da índia demonstraram piora do quadro, enquanto nenhum efeito foi observado em ratos e hamsters. No Epstein-Barr, a replicação viral foi aumentada, podendo ensejar agravamento do quadro clínico. No chikungunya, observou-se piora no curso clínico da infecção em macacos.
A disseminação de otimismo em relação ao uso da cloroquina em casos de Covid-19 ocorreu sobretudo após a publicação de um estudo por um grupo de pesquisa francês2 indicando a cura de pacientes tratados com o medicamento, ministrado associadamente ao antibiótico azitromicina. Contudo, a metodologia utilizada não permite concluir que o tratamento é seguro e eficaz, especialmente devido à ausência de um grupo controle com placebo. Não por outro motivo, o corpo editorial da revista em que tal estudo fora publicado afirmou recentemente que o mesmo “não atende aos padrões esperados da sociedade [científica]”.3
No Brasil, as alegações de uma operadora de saúde paulista de que centenas de pacientes em estágio inicial de Covid-19 teriam sido curados após a administração de hidroxicloroquina são ainda menos críveis: não houve, até o momento, a divulgação de nenhum dado concreto hábil a embasar tal conclusão. Ademais, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos estima que, mesmo no grupo mais vulnerável à doença, composto por pessoas com mais de 85 anos, em média 82,3% dos pacientes evoluem para a cura sem sequer serem hospitalizados.4 Dessa forma, não é possível associar o uso de hidroxicloroquina à melhoria do quadro clínico de pacientes em estado não grave.
De fato, para se determinar a real eficácia de um medicamento, a realização de estudos clínicos randomizados é imprescindível. Nesse método, um grupo de pessoas é aleatoriamente designado para tomar o medicamento testado, enquanto um segundo grupo (grupo controle) recebe um placebo. Sem a utilização de um grupo controle, como no caso francês, as observações dos estudos podem até ser reais, mas é muito fácil elas apenas “parecerem reais”.
Mais recentemente, um estudo clínico randomizado realizado em Manaus, este sim com grupo controle, demonstrou que a cloroquina tragicamente aumentou a taxa de mortalidade dos pacientes com Covid-195. Na Suécia, hospitais suspenderam o uso da medicação após a ocorrência de arritmias, paradas cardíacas e perda parcial da visão. Ainda, é possível que os efeitos colaterais da cloroquina ou hidroxicloroquina sejam ainda mais deletérios: em um estudo realizado em camundongos, tais fármacos aumentaram em cerca de 30% a taxa de mortalidade quando administrados concomitantemente com a metformina, medicamento mais utilizado no Brasil para o tratamento da diabetes tipo 2.6 Sendo assim, é válido ressaltar o óbvio: não basta encontrar um medicamento capaz de matar novo coronavírus; é preciso que tal medicamento não mate aqueles que o utilizarem.
Apesar dos constantes avisos da comunidade científica internacional de que não existe, até o presente momento, cura para a Covid-19, um recente anúncio do ministro Marcos Pontes [Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações] alcançou manchetes nos mais diversos veículos de comunicação ao redor do País. De acordo com o titular da pasta da Ciência e Tecnologia, o governo estaria testando uma medicação “secreta” com eficácia de 94% no tratamento da doença. Após muita especulação, descobriu-se que a substância em questão é a nitazoxanida, princípio ativo do vermífugo Annita. Contudo, tal medicamento já se mostrou menos eficaz do que outras moléculas químicas estudadas. Em artigo publicado no início de fevereiro na renomada Cell Research, revista do grupo Nature,7 um grupo de pesquisadores chineses destacou três moléculas promissoras em estudos in vitro, sendo elas o remdesivir (molécula estudada para tratamento do Ebola), a cloroquina e o alvo da vez, a nitazoxanida. Enquanto o remdesivir e a cloroquina se mostraram altamente ativos, a nitazoxanida foi apenas moderadamente ativa e mais tóxica do que a própria cloroquina.
Muitos daqueles que divulgam dados científicos de estudos preliminares como cura para a Covid-19 têm boas intenções e objetivam trazer esperança em um cenário de tanta dor e incerteza. Contudo, tais atitudes podem gerar outras crises de saúde decorrentes da administração de medicamentos inapropriados, bem como trazer uma falsa sensação de segurança para a população e retirar dos governos a responsabilidade de adoção das medidas necessárias para conter o avanço da pandemia. Descobrir um tratamento eficaz para qualquer enfermidade é uma tarefa extremamente complexa e onerosa que demanda um trabalho de incontáveis pesquisadores. Por isso, é improvável que a cura saia da sala de algum de nossos representantes no Planalto ou de um escritório de plano de saúde.
Infelizmente, a ciência tem seu tempo. Enquanto cientistas de todo o mundo se debruçam sobre o problema, a única arma concreta para enfrentar a pandemia é o isolamento social. Assim como ocorreu durante a pandemia de influenza de 1918, comumente (e erroneamente) referida como gripe espanhola, locais que decretaram isolamento social rigoroso de maneira precoce, tais como a Nova Zelândia, têm observado menos mortes e poderão retomar suas atividades econômicas mais cedo. Dessa forma, é indispensável que políticas de saúde pública e de enfrentamento da crise econômica sejam baseadas em fatos científicos, e não em obscurantismo, achismos e fake news. Essa semana, por exemplo, um estudo publicado na renomada revista Science8 destaca a possível necessidade de realização de quarentenas intermitentes até o ano de 2022. As decisões tomadas a partir de agora devem levar tal cenário em consideração.
A Covid-19 não foi a primeira pandemia da história e certamente não será a última. O Brasil poderia estar muito mais bem preparado para enfrentá-la não fossem os massivos cortes realizados nos orçamentos da saúde e pesquisa científica. O tempo perdido e a enorme fuga de cérebros para o exterior não serão facilmente recuperados. Para enfrentarmos o desafio atual e estarmos mais bem preparados para os próximos, investimentos massivos na saúde pública e ciência são essenciais.
Referências
1 Ferner RE, Aronson JK. Chloroquine and hydroxychloroquine in covid-19. BMJ 2020; 369: m1432.
2 Gautret P, Lagier J-C, Parola P, et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents 2020; : 105949.
3 Chawla DS. Publisher expresses reservations about hydroxychloroquine study it printed. Chem. World. 2020. https://www.chemistryworld.com/news/publisher-expresses-reservations-about-hydroxychloroquine-study-it-printed/4011482.article (accessed April 17, 2020).
4 Garg S, Kim L, Whitaker M, et al. Hospitalization Rates and Characteristics of Patients Hospitalized with Laboratory-Confirmed Coronavirus Disease 2019 — COVID-NET, 14 States, March 1–30, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2020; 69: 458–64.
5 Borba MGS, Val F de A, Sampaio VS, et al. Chloroquine diphosphate in two different dosages as adjunctive therapy of hospitalized patients with severe respiratory syndrome in the context of coronavirus (SARS-CoV-2) infection: Preliminary safety results of a randomized, double-blinded, phase IIb clinical trial (CloroCovid-19 Study). medRxiv 2020; : 2020.04.07.20056424.
6 Rajeshkumar N., Yabuuchi S, Pai SG, Maitra A, Hidalgo M, Dang C V. Fatal toxicity of chloroquine or hydroxychloroquine with metformin in mice. bioRxiv 2020; : 2020.03.31.018556.
7 Wang M, Cao R, Zhang L, et al. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res. 2020; 30: 269–71.
8 Kissler SM, Tedijanto C, Goldstein E, Grad YH, Lipsitch M. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period. Science (80- ) 2020; : eabb5793.
____________________
*Vinícius de Medeiros Alves é doutor em Inovação Farmacêutica pela Universidade Federal de Goiás, foi pesquisador de pós-doutorado por dois anos na Universidade da Carolina do Norte (EUA) e atualmente é pesquisador no Instituto Nacional de Ciências de Saúde Ambiental (EUA). As opiniões expressas nesse artigo são do autor e não necessariamente representam da instituição a qual está afiliado