Na capital, maior parte da população de rua é de Goiás

14 novembro 2021 às 00h03

COMPARTILHAR
Com a pandemia, população em situação de rua de Goiânia sofreu aumento de pelo menos 50% – de 1,2 mil para 1,8 mil
Uma caminhada pelas ruas e avenidas de Goiânia é suficiente para encontrar dezenas de pessoas em situação de rua ou que, sem recursos e em estado de vulnerabilidade, se utilizam das ruas como meio de sobrevivência. Apesar da dificuldade na contabilização, dados fornecidos pela Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social (SDHS) mostram que, desde o início da pandemia, a população em situação de rua da capital goiana sofreu aumento de pelo menos 50%, passando de 1,2 mil para 1,8 mil.
Estudo realizado em 2019 pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas (SMDH) por parte do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica a necessidade da diferenciação entre pessoas que efetivamente moram nas ruas e as que, apesar de trabalharem nesses locais, possuem algum outro tipo de moradia. “Ainda que essas duas categorias de pessoas estejam muito próximas, a diferenciação é importante para saber o real número de pessoas nessa situação, já que cada um desses segmentos possui uma demanda diferente”, explica Dijaci David de Oliveira, coordenador do Necrivi.
Essa dificuldade de contagem se dá devido a essas pessoas se caracterizarem como uma população dinâmica, com grande circulação entre áreas. Assim, segundo Dijaci, a metodologia utilizada nessa diferenciação precisa ser rígida. Isso porque, ainda que algumas pessoas passem noites seguidas nas ruas para trabalhar, por habitarem em outro município, área de risco ou terreno irregular, ainda são consideradas como “detentoras de um abrigo”. Assim, a maior necessidade desse segmento ultrapassa a moradia e passa por questões como alimentação, saúde, educação, entre outras.
“Quem está trabalhando nos semáforos não são necessariamente moradores de rua”, seja limpando para brisa ou vendendo de balinhas e garrafas de água a amendoins e pipocas doces, explica o professor. Esse segmento, de acordo com o levantamento do Necrivi, inclusive, é bem maior do que pessoas consideradas em situação de rua propriamente ditas. Bom exemplo é Camila Cristina. Com 33 anos, vende balas em um semáforo da T-63 há quatro meses, após perder o emprego.
Viúva, Camila cria o filho de dez anos sozinha e, apesar de ser goianiense e viver na mesma cidade que seus familiares, revela que a condição financeira de todos não é tão promissora para que ela receba ajuda. “A única opção que arrumei no momento é essa. É por esse trabalho que eu consigo alimentar meu filho e consigo pagar meu aluguel. É a única forma que encontrei no momento”, conta.
Apesar de já ter “trabalhado de tudo” – em uma panificadora, como faxineira, entre outros empregos –, Camila reforça a grande dificuldade que vem sendo conseguir uma nova vaga em um emprego formal e estável. “Por enquanto, é daqui que tiro o pão de cada dia. Não dá para o meu filho comer do bom e do melhor, mas dá pra comer um arroz, um feijão, não dá pra comer carne todo dia, mas de vez em quando dá. Dá pra comprar um caderno pra ele estudar… Nós improvisamos”, explica.
Com esposa e filho, Luiz Carlos também atua com venda em semáforos. No entanto, se encontra nesse segmento há cerca de dez anos. Apesar de ter iniciado sua trajetória em avenidas como a Independência por pura necessidade, hoje permanece no trabalho por ter conseguido pagar as contas com melhor regularidade do que quando atuava com a carteira assinada. “Por dia dá para tirar cerca de R$ 100, R$ 120, quando está bom, mas não é sempre. Quando peguei Covid, consegui até me manter por uns dias enquanto estive parado”, conta.
Ações realizadas em Goiânia
Esse cenário pode ser percebido com as próprias ações sociais implementadas por associações, em Goiânia. No Centro de Assistência Social de Campinas (Casc), da Matriz de Campinas, são realizadas doações tanto a pessoas que moram na rua quanto para famílias e gestantes que forem cadastradas na associação.
O trabalho realizado com os cadastrados é diferente da atuação geral da associação, de modo que as famílias cadastradas – que precisam estar desempregadas ou com problemas de saúde irreversíveis – recebem cerca de R$ 200 por membro. Apesar desse cadastro ser mais restrito, hoje a associação conta com 130 famílias inscritas. Já pessoas em situação de rua recebem do CASC, a cada 15 dias, roupas e alimentos não perecíveis, que são obtidos por meio de doações. Ao todo, a auxiliar administrativa do CASC, Sara Mariane, que atua nas doações, devem ser atendidos cerca de 100 pessoas em situação de rua por mês.
Com objetivos distintos, outras entidades e órgãos realizam serviços similares, como a própria Prefeitura de Goiânia, através do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), a Pastoral de Rua da Paróquia Nossa Senhora da Assunção e a do Santuário Basílica Sagrada Família. O Centro Pop, por exemplo, de acordo com o gerente Marcos Prado, atua no direcionamento voluntário dessas pessoas à casas de acolhida, além de diariamente servirem café da manhã e almoço em praças da cidade.
Entre esses locais, estão praças com maiores aglomerações de pessoas em situação de rua, como a Praça Cívica, Praça Joaquim Lúcio, o Cepal Setor Sul e a própria rodoviária de Goiânia. “Todo dia chegam pessoas de fora da cidade sem saber para onde ir. Além disso, a pandemia deixou muitos desabrigados, que não conseguiram pagar seus aluguéis ou tiveram alguma desavença com a família”, pontua Marcos.
O Centro Pop, portanto, não apenas espera ser procurado por aqueles que necessitam de maiores cuidados, mas conta com equipes de abordagem, compostas por assistentes sociais, que procuram pessoas desabrigadas e fornecem os serviços que a Prefeitura de Goiânia tem para ofertar. Entre essas opções, além de alimento e agasalhos, está o providenciamento de documentos como RG, CPF, Certidão de Nascimento ou Carteira de Trabalho. Isso porque, segundo Marcos, a intenção é “devolver de imediato essas pessoas ao mercado de trabalho”.
“Emergencialmente, resgatamos, fornecemos pouso, banho e alimentação a essas pessoas, mas nossas assistentes sociais e psicólogas fazem de tudo para integrar essas pessoas no mercado, oferecer vagas de emprego e até fazer com que, se possível, tais pessoas possam retornar ao seu núcleo familiar ou alugar seu próprio cômodo ou casa”, pontua. Como estrutura para o serviço emergencial, há duas casas de acolhida para onde essas pessoas são encaminhadas. Cada uma delas abriga, em média, 60 pessoas. No setor universitário, funciona a que é voltada para famílias e mulheres, e no setor campinas, uma estritamente para homens.
Apesar de reconhecer a importância de trabalhos pontuais, como o da Matriz e até alguns ofertados pelo Centro Pop, o professor e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), da UFG, Dijaci David de Oliveira, explica que o acompanhamento é mais eficaz para que a situação dessas pessoas seja realmente melhorada. Quem realiza ações semelhantes é a Pastoral de Rua – nomeada Guardiões de Cristo – da Paróquia Nossa Senhora da Assunção, coordenada pelo pároco Padre Marcos Rogério de Oliveira.
Lá, todos os sábados as equipes distribuem refeições completas, utensílios de higiene e promovem um “banho solidário”, que é promovido através de um banheiro móvel. “Lá eles tomam banho com água quentinha, damos shampoo, condicionador, cortes de cabelo, maquiagens, absorventes, levamos máquinas de barbear e também distribuímos roupas e sapatos”, conta a coordenadora da pastoral, Adriana Bahia.
No entanto, como o objetivo da entidade, segundo Adriana, é resgatar a dignidade dessas pessoas, é feito um trabalho para colaborar com que essas pessoas sejam inseridas no mercado de trabalho ou possam retornar para onde vieram – já que, em diversos casos, foi constatado pela paróquia que pessoas acabam nas ruas por não terem condições de retornar à terra natal.
“Nosso foco é conhecer a história de vida dessas pessoas. As acompanhamos para a rodoviária, fornecemos documentação, pois muitos não possuem documentação e, em alguns casos, até ajudamos essas pessoas a arrumarem empregos, a alugar uma casa e fornecemos utensílios domésticos”, relata Adriana. Como exemplo, a coordenadora cita uma mulher que, na época gestante, conseguiram possibilitar com que ela retornasse à Bahia, para junto de sua família, após o marido ter sido assassinado em território goiano.
“Ela morava em uma barraca no Campus Samambaia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Nos primeiros meses, ajudamos ela a alugar um barracão, pagamos os três primeiros meses e demos os móveis. Depois ela retornou à Bahia”, conta. O acompanhamento às pessoas ocorre também no sentido de não deixar que elas retornem às ruas, após conseguirem moradia. “Ajudamos um casal com três filhos a alugarem uma casa, hoje eles conseguiram moradia em uma residência no Jardim do Cerrado. Os filhos estudam, eles moram todos na casa deles, mas não nos desvinculamos deles, para evitar que voltem para as ruas”, completa.
De acordo com a coordenadora, o dinheiro utilizado em todo esse auxílio a essas pessoas é obtido através de rifas e bazares realizados pela Paróquia. “Algumas vezes recebemos doações de roupas e sapatos que não são práticos para pessoas em situação de rua usarem, como saltos e vestidos sociais, então fazemos o bazar uma vez por mês”, acrescenta Adriana.
Adriana explica que a Paróquia possui diversos segmentos que também atuam em outras frentes. A Associação Assunção, por exemplo, atende de 800 a mil famílias via cadastro, através de doação de roupas, sapatos, agasalhos, utensílios de higiene e domésticos, entre outros. Já a Casa Mãe de Misericórdia fornece atendimentos clínicos diversos, enquanto o Centro de Convivência de Idosos e o Centro de Educação Infantil – para crianças de 1 ano a 5 anos e 11 meses – também servem de apoio à essa população. Cestas básicas e até brinquedos também são itens doados pela Paróquia, através da Associação Assunção.
Com 20 anos e dois filhos pequenos – um de dois e um de sete – Silviane Kathelyn também recebe cestas básicas de instituições para contribuir com seu sustento, já que, há dois anos atua na venda de balas e chocolates em semáforos. Sua trajetória com o sustento advindo das ruas começou a partir de uma demissão e a necessidade se intensificou a partir do falecimento de sua mãe, em 2020. “Quando minha patroa me dispensou, uma amiga que trabalhava no semáforo me chamou. Como a maioria dos lugares pede escolaridade e eu não tenho nem o ensino fundamental completo, as oportunidades são pequenas e o preconceito é grande”, conta a jovem.
Também empenhada na distribuição de cestas básicas de forma sazonal e com distribuição de refeições duas vezes na semana, a Pastoral de Rua do Santuário Basílica Sagrada Família, coordenada por Murilo Xavier, chega a atender cerca de 250 a 300 pessoas semanalmente. Além da alimentação, a paróquia também fornece roupas, utensílios de higiene pessoal, promove banhos e encaminha pessoas em situação de rua para “chácaras de acolhida”.
Conheça a população em situação de rua de Goiânia
No estudo realizado em 2019 pelo Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), da Universidade Federal de Goiás (UFG), o professor Dijaci David de Oliveira explica que foi possível traçar um perfil majoritário da população em situação de rua de Goiânia. Segundo ele, além da maior parte dessas pessoas serem do sexo masculino, boa parte é do próprio estado de Goiás.
“Mesmo que muitos tenham vindo de outros estados ou países, Goiânia e Goiás são produtores da própria população de rua. Além disso, a maioria possui o ensino fundamental incompleto ou é analfabeto, ainda que possua alguma habilidade ou profissão, como pedreiro”, acrescenta Dijaci. Com 43 anos – e estando há 20 nas ruas -, Aurélio Batista é uma dessas pessoas. Ele conta que, após a morte dos pais, perdeu o contato com os irmãos e encontrou refúgio nas ruas. “Hoje durmo nas calçadas, sou só eu e Deus. Conheço todos os ‘moleques da rua’, mas fico só”, conta.
Apesar disso, a partir da comparação com pesquisas antigas, o coordenador do Necrivi afirma que o perfil dessa população passou por alterações, ao decorrer dos anos. Especialmente quanto a sua faixa-etária. “Nos anos 80,por exemplo, eram muitas crianças e adolescentes. Já hoje encontramos um envelhecimento dessa população, com muito mais adultos e idosos”, revela.
Ele ainda frisa a necessidade de que estereótipos sejam evitados no processo de se pensar a população de rua, uma vez que existe uma multiplicidade de fatores que fazem com que as pessoas se encontrem nessa situação. “Tem-se um discurso estereotipado de que as pessoas vão para a rua porque usam drogas e acabam nas ruas, mas boa parte das pessoas passam a usar drogas depois que estão nas ruas. A vida nas ruas é dura e as pessoas acabam se refugiando nas drogas posteriormente”, completa Dijaci.
Possíveis soluções a serem adotadas
Ainda de acordo com o estudo realizado pelo Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), especialmente através do exemplo de modelos adotados em países como os Estados Unidos, Portugal, Espanha, Noruega, entre outros, a forma mais eficaz de reduzir mudar o cenário das pessoas em situação de rua, não apenas em Goiânia, mas em todo o estado de Goiás, é através de uma política de moradia eficaz. Pelo menos, como primeiro passo.
“A saída desse problema é complexa, uma vez que a desigualdade produz o aumento dessa população de rua. Se desejam mudar a vida dessas pessoas, é preciso que elas tenham uma casa. Só assim elas vão reconstruir a vida. Além disso, políticas de habitação são eficientes e é a mais barata porque nas ruas o acesso aos cuidados é baixo e a violência é alta. Assim, as pessoas demandam muito serviço médico, o que encarece esse processo para o próprio município”, explica Dijaci.
Apesar de entidades e organizações colaborarem para o acompanhamento dessas pessoas e até de as tirarem das ruas, o coordenador ressalta o limite de recurso que essas instituições possuem – especialmente por dependerem quase única e exclusivamente de doações. A necessidade de se pensar primeiramente em uma política habitacional se dá, para Dijaci, pela própria demanda social.
“Quando uma pessoa vai procurar emprego, mandar currículo, se não tiver endereço, não consegue emprego. Não consegue matricular filho em escola, abrir conta em banco… para tudo se precisa de endereço, já que endereço é símbolo de confiança, torna a pessoa localizável. Além disso, se não tem endereço acaba tendo descontinuidade em todos os outros tratamentos, por estar sempre migrando”, justifica. No entanto, mesmo com a implantação de uma grande política habitacional, serviços que já são oferecidos, como o fornecimento e a doação de alimentos, roupas e agasalhos e utensílios domésticos e de higiene pessoal – além de atendimentos médicos, por exemplo.