Vítimas de violência doméstica ainda têm dificuldades de se libertar de rotina de medo imposta pelo agressor

Fundado em 2001, o Cevam, que fica em Goiânia, funciona como um centro de acolhimento para mulheres que foram agredidas | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Quando nos debruçamos sobre os dados referentes aos casos diariamente noticiados de violência doméstica e feminicídio, crime que pode ser resumido como o assassinato de mulheres em razão de seu gênero, evidenciamos um fato infeliz: mesmo após décadas de lutas e campanhas contra a violência contra as mulheres, desde que o fenômeno foi identificado na sociedade como um problema a ser combatido, elas continuam morrendo e o ciclo de violência segue mais vivo do que nunca.

O Brasil vigora como o possuidor da quinta maior taxa de feminicídios do mundo. Conforme os números da Organização Mundial da Saúde, o índice desse tipo de crime é de 4,8 para 100 mil mulheres no País. E não para por aí. De acordo com os dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as mortes de mulheres por motivações de gênero corresponderam a 29,6% dos homicídios dolosos femininos em 2018. No mesmo ano, foram registrados 1.206 casos contra 1.151 em 2017, o que representa um aumento de 4% nos números absolutos.

Em Goiás, o quadro não é diferente do nacional. Conforme apontado pelo último levantamento da Secretaria de Segurança Pública, de janeiro até setembro deste ano foram registrador 24 casos de feminicídio, quase três por mês. A pasta informou que em todos os casos levantados os suspeitos foram identificados e presos.

No final de novembro deste ano, uma operação batizada de Marias, deflagrada pela Polícia Civil com atuação de todas as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) do Estado e que mobilizou mais de 650 policiais em três dias, terminou com 82 prisões de autores de crimes relacionados à Lei Maria da Penha. Foram feitas também, na ocasião, quase 200 fiscalizações de medidas protetivas. A ação, que também teve atuação da Polícia Civil do Distrito Federal (DF), foi uma alusão ao Dia Internacional pela Não Violência Contra a Mulher.

Além disso, também em novembro, o governo de Goiás lançou o chamado Pacto Goiano pelo Fim da Violência Contra a Mulher, acordo que prevê uma série de ações conjuntas a serem desenvolvidas por órgãos da administração pública estadual, Justiça, Ministério Público e a sociedade civil, que visa o combate à violência doméstica e a diminuição dos índices de feminicídio no Estado. Na ocasião do lançamento do programa, o governador Ronaldo Caiado chegou a dizer que o pacto significava uma “convocação e uma determinação” dada a todas as autoridades de Goiás para a reversão do quadro de violência contras as mulheres.

Entretanto, apesar das ações empregadas pelo Estado e de reforços sobretudo policiais na busca da solução do problema, suas raízes são mais profundas do que aparentam. É o que diz a socióloga, pesquisadora e ativista contra a violência doméstica Aava Santiago. Para ela, a causa do aumento do número de feminicídios em Goiás é complexa e não há um fator determinante que possa ser definido como único causador. Entretanto, Aava diz acreditar que tem havido o fortalecimento do que ela chama de “atmosfera de ódio”, um clima de intolerância que é alimentado por microcomportamentos e discursos que enaltecem mortes e posturas violentas na sociedade.

A socióloga também chama a atenção para a rede de proteção da mulher em Goiás. Ela nota uma carência de abrangência e finalidade no suporte do Estado às vítimas de violência doméstica e engajamento da sociedade civil. Além do fato de a maioria das DEAMs não funcionarem em regime de plantão (24 horas), Aava enfatiza a questão da escassez de casas de acolhida para mulheres agredidas, as quais considera essenciais para reinserção das vítimas no convívio social. “A mulher vai fazer uma denúncia, e depois tem de voltar a conviver com seu agressor, porque ela não tem para onde ir. E a casa de acolhida não é só uma casa, um objeto físico, ela é uma política pública muito densa. Porque implica em providenciar um novo emprego para essa mulher, implica em providenciar escola para os filhos se eles tiverem que mudar de bairro, mudar de cidade, implica em providenciar uma vida com dignidade.”

Um dos locais mais procurados por mulheres vítimas de agressão na capital goiana é o Centro de Valorização da Mulher, o Cevam, que se mantém aberto exclusivamente por doações. A casa, localizada no Setor Norte Ferroviário II, foi fundada em 2001 e funciona com o objetivo de amparar, reabilitar e auxiliar mulheres e crianças que sofreram violência doméstica.

Segundo uma funcionária, o local costuma receber mulheres em situações lamentáveis. “Há pouco tempo recebemos aqui uma mulher que chegou toda roxa. Ela tinha sido espancada pelo namorado, que veio de Minas Gerais. Ela chegou para dormir e no outro dia ela mal conseguia levantar da cama”, conta.

Segundo a funcionária, não existe nenhum tipo de restrição à entrada e saída das mulheres do local, exceto em casos de vítimas adolescentes. “Aí a gente só deixa sair com ordem judicial”, revela.

Para Aava Santiago, pode ser apontada também uma falta de “engajamento da sociedade civil”, com ênfase na iniciativa privada, no combate à violência contra a mulher. “A gente viu que um número de altíssimo de mulheres é demitida após a volta da licença-maternidade. Essas mulheres têm sua vida econômica precarizada e, consequentemente, isso fortalece um vínculo de dependência com homens violentos e dificulta para que essas mulheres saiam desses relacionamentos”, explica.

Deixar um relacionamento abusivo não é tão simples

Socióloga explica “ciclo da violência” pelo qual a mulher agredida passa | Foto: Arquivo Pessoal

Para algumas mulheres, sair de um relacionamento abusivo não é tão simples quanto parece. Aava explica que mulheres vítimas de agressão costumam vivenciar um chamado “ciclo da violência”, que conta com etapas definidas e sequenciais num relacionamento que envolve abusos praticados pelo homem. “Pessoas que estão próximas à mulher que está vivenciando o ciclo da violência, ou não acreditam nela ou ficam indignadas porque ela não consegue terminar esse relacionamento e acabam se afastando”, explica.

Ela conta que a fase das ofensas, xingamentos e brigas é, normalmente, a que antecede a das agressões físicas. “Não existem, estatisticamente falando, casos em que a violência diminua. Ela sempre aumenta”, revela.

Aava explica que quando a mulher consegue se desvencilhar do agressor e denunciá-lo, pode acontecer de se concretizar a outra fase do ciclo da violência, que é a “lua de mel”. Nessa fase, segundo ela, o homem pede uma segunda chance à mulher e faz juras de amor eterno, numa demonstração de arrependimento. A vítima, que já está danificada psicológica e emocionalmente, acaba o aceitando de volta e é incentivada por ele a retirar a denúncia feita anteriormente.

No início dessa fase, o agressor a trata de maneira exemplar (o que origina o nome “lua de mel”). Mas logo após um tempo, a violência volta a dar as caras. “Ele [o agressor] trabalha o psicológico, a culpa”, diz a socióloga. O agressor, para justificar o retorno ao comportamento violento de origem, passa a culpabilizar a vítima alegando que ela é quem provoca as situações violentas.

Não bastando, uma das táticas usadas pelo homem para restringir as atitudes da mulher em relação às agressões sofrida é, conforme apontado por Aava, o uso de ameaças contra ela e entes queridos. “Ele ameaça que vai matar os filhos dela, vai matar a mãe, vai matá-la. Então ela vai lá e retira a denúncia. Todos esses motivos são amplificados pela precariedade das medidas protetivas” às quais as vítimas de agressão recorrem, diz.

Para o psicanalista Cristiano Pimenta, é importante observar que a violência experimentada por mulheres não é somente externa. “Existe uma penetração da violência na própria psique das mulheres que passam a viver uma situação emocional bem característica [de agressão]”, diz.

Pimenta cita o caso de uma famosa youtuber que publicou um vídeo, em meados deste ano, em que desabafa sobre um relacionamento abusivo vivido por ela. Segundo o psicanalista, o relato de Dora Figueiredo resume bem o drama que uma mulher que está presa em um ciclo de violência passa. “Ela mesma diz que no inicio do relacionamento a mulher se encontra numa situação de uma certa fragilidade emocional e afetiva, e o parceiro surge como promessa de alguém que vai valorizá-la enquanto pessoa, enquanto mulher, pelas qualidades dela. Aos poucos, essa situação vai se invertendo e ele começa a apontar os defeitos e ‘comportamentos errados’ que ela tem”, exemplifica ele.

Psicanalista Cristiano Pimenta cita “ameaça de castração”, explicada por Freud | Foto: Arquivo Pessoal

Pimenta diz ainda que, na medida em que a vítima fica à mercê do discurso do agressor, em que ele a culpabiliza pelo caminho de tensão pelo qual o relacionamento envereda e, automaticamente, rebaixa sua autoestima, ela passa a internalizar essa culpa e se convence de que é realmente a parte errada da história, digna de todos os maus adjetivos atribuídos a ela pelo homem. “No caso da Dora, ela conta que durante o relacionamento chegou a contar para um amigo que se esse namorado [que cometia abusos] batesse nela, ela não iria contar para ninguém porque, de alguma maneira, ela estaria merecendo aquilo.”

Pimenta esclarece que a partir da condição de envolvimento amoroso da vítima com o agressor, ela vive o que na psicanálise Freud chamava de “ameaça de castração”. “Essa ameaça se manifesta sob a forma da ameaça da perda de amor. A dimensão da perda é insuportável para a mulher. É como se tivesse uma voz dizendo ‘se você não se submeter a tudo, eu vou retirar o meu amor por você’.”

A quase morte por socos do “príncipe”

A violência contra a mulher costuma deixar profundas marcas na vítima, não só físicas, mas psicológicas e emocionais. Kátia Silva (nome fictício) é uma prova viva do que as agressões partidas de um homem em fúria são capazes de fazer.

Há cerca de quatro anos, Kátia, à época divorciada, conheceu um homem que, a princípio, se mostrava como o par perfeito. A mulher, que mora no município de Senador Canedo, passou a namorar com o rapaz que, de forma rápida, ia entrando em sua vida e em sua casa.

Após poucos meses de namoro, o homem já estava morando com Kátia. Porém, o convívio mostrou que ele não era exatamente o “príncipe” que mostrava ser no início e a mulher tomou a decisão de pedir que deixasse sua residência. “Ele bebia muito. Saía e não tinha hora para voltar, virou outra pessoa. Até que eu cheguei e disse ‘não quero namorar com ninguém, não quero casar, quero que você vá embora’”, relembra.

Ela conta que a primeira reação do homem foi aceitar a decisão, mesmo que a contragosto, juntar seus pertences e partir. Para Kátia, o problema estava resolvido ali, mas ela não contava com o fato de que o agora ex-namorado já tramava sua vingança por ter sido preterido pela mulher.

Kátia narra que, mais tarde no mesmo dia, por volta das 22h30 e já de portas trancadas, ela já se deitava para dormir quando ouviu um barulho na parte externa da residência e saiu para conferir o que era. O ex havia arrombado o portão e, ao vê-la, partiu para cima já na intenção de matá-la. “Ele já me desferiu um golpe na cara, me derrubou, botou os dois joelhos em cima do meu ombro e fazia como se fosse um pugilista, para me desmaiar no soco. Dando soco de um lado e do outro, ajoelhado em cima de mim”, descreve, com agonia na voz.

Ao perceber que Kátia não desmaiava apenas com os contínuos socos, o homem passou a enforcá-la. “Eu tentava gritar, até consegui um pouco, mas ele era muito forte”, recorda. Os poucos gritos que conseguiu soltar foram suficientes para chamar a atenção da vizinha, que correu para ver o que estava acontecendo.

Ao se deparar com a cena da agressão, a vizinha rumou para a rua atrás de ajuda. Kátia relembra, com a voz embargada, que uma viatura policial entrava na via, momento em que a vizinha se jogou na frente do veículo pedindo socorro. “Os policiais entraram e pegaram ele em cima de mim, me matando. Levaram ele preso na mesma hora”, conta.

A mulher foi levada em estado deplorável para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Senador Canedo, onde foi atendida. Entretanto, segundo ela, nenhum reporte foi feito sobre a violência sofrida. “Eu cheguei deformada na UPA. Dentes quebrados, rosto inchado, sangrando. Mas lá não deram nenhum registro de espancamento. O médico de plantão não registrou nada, nem de como eu cheguei lá, nem do que eu fui vítima, nada. Como se eu fosse nada.”

Kátia revela que um inquérito foi aberto, com o agressor sendo indiciado por tentativa de homicídio. Entretanto, segundo ela, mesmo com a dedicação da delegada que cuidou do caso que, conforme Kátia, “se debruçou” sobre o caso, e de uma deputada estadual que a auxiliou, o inquérito “travou” ao chegar no Ministério Público. “A gente conseguiu que ele ficasse preso por uns oito meses. Mas quando chegou no Ministério Público, uma promotora mulher que pegou o caso começou a protelar e não queria dar andamento no processo, porque não tinha o laudo médico. Mesmo com oito testemunhas que eu tinha e com as fotos que foram tiradas de como eu fiquei”, expõe.

Desde então, Kátia diz que não teve mais retorno do Ministério Público no que se refere ao processo. “Não sei se apresentaram a denúncia, não sei. Não me falaram mais nada”, conta.
Ela revela que hoje convive com o trauma e o medo fruto de sua experiência. “Tenho muito medo. Quando estou na rua e ouço uma moto se aproximando, eu já tremo”, confessa.

O Jornal Opção entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública para obter esclarecimentos quanto aos atendimentos e regime de expediente das DEAMs, e aguarda um retorno. Quanto ao caso de Kátia, a reportagem segue na tentativa de apurar o andamento do processo remetido ao Ministério Público.