A legislação eleitoral determina que, para registrar sua candidatura, um candidato deve fornecer cópia da ata da convenção partidária, autorização do filiado ao partido, prova de filiação partidária e declaração de bens, além de outros documentos pessoais e certidões específicas. Seguindo a regra, o ‘ex-coach’ goiano Pablo Marçal, um dos 10 candidatos à Prefeitura de São Paulo, declarou a “bagatela” R$ 169,5 milhões – valor constante no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – distribuídos em quotas de capital, investimentos e aplicações, aplicação de renda, depósitos e imóveis. Contudo, além dos vários investimentos e imóveis declarados, o candidato ainda conta com uma luxuosa frota de carros que exibe com orgulho nas redes sociais.

Carros de luxo são, desde que surgiram, um dos maiores ícones conhecidos de status. Mesmo os milionários mais discretos fazem questão de exibir suas máquinas para denotar o alto poder aquisitivo que possuem. Marçal, por exemplo, tem como “troféu” um Cadillac Escalade Premium ano 2021, veículo que está em nome da empresa ‘Marçal Participações Ltda’. O modelo é avaliado em cerca de R$ 1,7 milhão. O “possante”, no entanto, é apenas uma fração da fortuna que o goiano ostenta e que é parte de um movimento da direita que alguns já sugerem chamar de “marçalismo”.

O novo movimento seria uma espécie de “bolsonarismo 2.0”: baseando-se não apenas nos “valores conservadores” e na religião, fatores também presentes no discurso do ex-coach, Pablo Marçal se utiliza de uma ideologia que fisga seus seguidores pela promessa de ensinar a eles como ter uma mente “ambiciosa e destemida” que atrairia sucesso e riqueza – sucesso esse que ele se gaba de ter conquistado através de seus “códigos” e “insights”.

Sem entrar no mérito da trajetória controversa de Marçal (em 2005, o candidato de São Paulo foi alvo de uma operação da Polícia Federal por integrar um esquema que aplicava golpes bancários. Ele chegou a ser preso e condenado, mas a sentença acabou prescrevendo), e nem da origem de sua fortuna, que veio, em grande parte, justamente dos cursos e treinamentos que ensinavam como ficar rico (em um sistema que parece ter se retroalimentado), o fato é que o ex-coach parece ter conseguido reunir, em um só discurso, o apelo conservador da direita à vontade de ter sucesso do brasileiro.

Para o cientista político goiano Guilherme Carvalho, Pablo Marçal consegue estabelecer um diálogo com uma camada mais ampla do que o bolsonarismo, “porque ele não se restringe ao fator ideológico e de valores”. Ele vai mais alto e toca naquilo que a esquerda vinha vencendo há muito tempo e talvez tenha sido o critério central pelo qual a esquerda venceu em 2022. Ele toca na questão da economia”.

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“Principalmente nas periferias das grandes cidades, as pessoas têm se revoltado muito contra o sistema, porque pequenos, micro e médios empresários têm muita dificuldade de empreender no Brasil. E quase sempre o Estado é um atraso, enquanto ele é um atraso para os médios e pequenos empresários, ele traz muitas benesses para os grandes, e isso é percebido como sendo um sistema viciado, corrupto, que nunca joga a favor daqueles que querem começar um primeiro negócio ou querem vencer na vida”, explica o cientista.

Ainda de acordo com Carvalho, mesmo tocando em temas sensíveis aos mais vulneráveis como desigualdade social e má distribuição de renda, a esquerda “não conseguiu trazer uma liderança que conseguisse dialogar a um nível tão profundo quanto o Pablo Marçal tem conseguido fazer”. “E nem essa habilidade o bolsonarismo tem. Então eu acho que o Marçal traz um incremento que não dá para dizer que é dentro do movimento da direita, mas ele traz uma expectativa de mistura entre a teologia da prosperidade e a política”, descreve.

Consolidação do “marçalismo”?

Após alguns tímidos acenos na direção de Pablo Marçal, o ex-presidente Jair Bolsonaro endureceu, recentemente, sua posição de apoio a Ricardo Nunes, um dos principais adversários do ex-coach na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Principalmente após Nunes voltar a subir nas pesquisas e seguir no páreo junto com Guilherme Boulos e com o próprio Marçal.

Com isso, o cenário de atritos e trocas de provocações entre a família Bolsonaro e Marçal, que já vinha ocorrendo há alguns meses, voltou a se intensificar. A situação evidencia o que, talvez, pode significar a consolidação de um movimento de direita paralelo ao bolsonarismo e quem mais mais forte que ele: o “marçalismo”. Para Guilherme Carvalho, ainda não é possível saber o que virá do conflito Bolsonaro x Marçal, “mas pode ser que a gente tenha um estouro de influencers que eram vistos como cabos eleitorais e venham a se tornar, eventualmente, os próprios candidatos”, usando os exemplos de riqueza como sendo “um baluarte para conquistar principalmente esse eleitorado” que está nas periferias do País.

Guilherme Carvalho: “As pessoas têm se revoltado muito contra o sistema, porque pequenos, micro e médios empresários têm muita dificuldade de empreender no Brasil” | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

“Agora, como isso se projeta no bolsonarismo, acho que está cedo para a gente dizer, e está cedo ainda para a gente dizer que o bolsonarismo é um movimento tão resiliente assim que possa sobreviver ao Bolsonaro, haja vista que o Bolsonaro está inelegível. Se ele vai ser superado por outro movimento ou não, eu acho que está um pouco cedo, mas o fato é que a gente está tendo uma modulação no discurso da direita e que não necessariamente é um racha, mas pode ser uma nova versão da direita ainda mais competitiva para as próximas eleições”, analisa Carvalho.

O especialista afirma que o fato de o bolsonarismo não estar mais se destacando em Goiás (um de seus maiores redutos), assim como em outras partes do Brasil, “é absolutamente normal”. “O primeiro é porque Bolsonaro não vem sendo um baluarte de projeção de poder, uma vez que até o momento ele está fora da disputa para 2026. E o segundo elemento: as eleições, principalmente nas capitais, com exceção de São Paulo, não estão nacionalizadas. Então as figuras de Lula e de Bolsonaro estão cedendo lugar para figuras que estão realmente discutindo questões municipais”.

“Eu acho que o que a gente vai ver para o próximo ano, que é o ano que vai anteceder a eleição presidencial, é como isso de fato vai se configurar, se vai se tornar uma força só ou se a direita vai se dividir em dois polos. Eu acho que tudo isso é muito possível”, diz. “Só que nesse momento, e até pelo diálogo com a economia da tensão, um diálogo ainda mais profícuo com as redes sociais, o Paulo Marçal larga muito na frente do bolsonarismo tradicional. Agora, se ele não vai mais rezar a cartilha do Bolsonaro, ainda estamos por ver, e isso vai se reverberar a nível subnacional, você pode ter certeza: se eles chegarem a rachar, a gente vai ter sim um movimento bolsonarista de um lado e um movimento marçalista, digamos assim, de outro”, conclui.