Homicídio de menino gaúcho por injeção letal aplicada pela madrasta novamente suscita debate acerca da violência. Busca desenfreada pelo dinheiro e bens materiais pode transformar mulheres e homens em monstros

Frederico Vitor

Bernardo Boldrin, 11 anos, foi morto por injeção letal e teve o corpo enterrado perto de um rio | Foto: Reprodução
Bernardo Boldrin, 11 anos, foi morto por injeção letal e teve o corpo enterrado perto de um rio | Foto: Reprodução

Quanto vale a vida de uma criança e qual é o limite da crueldade humana? Talvez os algozes da morte de Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, vítima de um crime chocante que abalou o Brasil, podem responder tais indagações. O garoto Bernardo desapareceu no dia 4 de abril, uma sexta-feira, no município gaúcho de Três Passos, na região Noroeste do Rio Grande do Sul. De acordo com o pai, o médico cirurgião Leandro Bol­drini, 38 anos, ele teria ido à tarde para a cidade de Frederico West­phalen com a madrasta, a enfermeira Graciele Ugulini, 36 anos, para comprar uma TV.

Na noite de segunda-feira, dia 14, entretanto, o corpo do menino foi encontrado na zona rural do município de Frederico West­phalen, enterrado às margens de um rio, em um saco plástico. Segundo a Polícia Civil gaúcha, Bernardo foi dopado antes de ser morto com uma injeção letal. A polícia prendeu o médico Leandro Boldrini, que tem uma clínica particular em Três Passos e atua no hospital do município, a madrasta do garoto e a assistente social Edelvânia Wirganovicz, 40 anos.

Segundo o que noticiou a imprensa gaúcha, as investigações da polícia levaram a constatação de que Leandro Boldrini e a mu­lher atuaram como mentores do crime e na ocultação do cadáver. Além de planejar uma história fictícia acerca do desaparecimento do garoto Bernardo para se livrar da acusação, o médico teria auxiliado na compra de Midazolam, um forte sedativo que se aplicado em grandes doses pode causar inconsciência. Graciele Ugulini seria uma das mentoras e teria atuado na ocultação do cadáver, juntamente com Edelvânia Wirganovicz.

Uma das linhas de apuração conduzida pela polícia aponta questões econômicas como possível motivação para o crime. A madrasta teria transferido bens após o assassinato do menino e até durante o período em que já estava presa. Em depoimento gravado que foi ao ar em um programa televisivo, Edelvânia, que demonstrava extrema frieza, disse que, após o crime, ganhou R$ 6 mil de Graciele, de um total previsto de R$ 20 mil, em notas de 50 e 100 reais. O advogado da avó de Bernardo considera essas movimentações suspeitas e, segundo ele, a conclusão a que se pode chegar é que o crime teve como motivações o dinheiro, ganância e questões patrimoniais.

Edelvânia Wirganovicz (esq.) teria ajudado a ocultar o corpo de Bernardo; Graciele Ugulini (dir.) é acusada de ser mentora e executora do assassinato
Edelvânia Wirganovicz (esq.) teria ajudado a ocultar o corpo de Bernardo; Graciele Ugulini (dir.) é acusada de ser mentora e executora do assassinato

Tentar justificar a crueldade humana e a falta de compaixão, neste caso, para com um garoto de apenas 11 anos, pressupõe um exercício de explicar o inexplicável. Entretanto, a Filosofia e a Sociologia podem colaborar para o entendimento do comportamento humano por meio de teorias e correntes de pensamento de grandes observadores da sociedade, desde a antiguidade até os dias atuais. Antes de tudo, é possível aferir que fatos como a morte do garoto Bernardo — e outros Bernardos mais que padecem nos rincões do Brasil profundo e em toda parte do mundo — deixa claro que o ser humano, o mais racional de todo os animais, é um ser paradoxal que caminha entre a linha da civilidade e da selvageria extrema.

“As ações são mais fortes do que a razão”

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Gonzalo Palácios: “Algumas convenções sociais colaboram para a violência” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

De acordo com o filósofo e professor universitário José Gonzalo Armijos Palácios, o ser humano fará sempre aquilo que pensa, dentro de uma lógica que o beneficie. O homem está inserido nas mais diferentes formas sociais, mas, em princípio, o que os domina pode ser explicado pelo pensamento do professor de Filosofia Política John Raws, de Harvard: “A razão é e deve ser apenas a escrava das paixões, e jamais pode pretender qualquer outro ofício que não o de servi-las e obedecê-las.”

O matemático, teórico político, e filósofo inglês, autor de obras clássicas como “Leviatã” e “Do cidadão”, Thomas Hobbes, dizia que o homem é mau e egoísta por natureza, na perseguição daquilo que o beneficia e que lhe traz felicidade. Para Hobbes, o homem tem um irrequieto progresso pelo desejo que só termina com a morte. Em 1513, o historiador e diplomata italiano renascentista, autor da obra “O Príncipe”, Nicolau Maquiavel, disse coisa semelhante, ou seja, os homens são por essência maus, egoístas e violentos.

Numa concepção naturalista, o homem seria bom por natureza, mas ele é corrompido pelo meio social. “Eu acho que em algumas situações as convenções sociais poderiam permitir que a nossa natureza má, egoísta e ambiciosa aflore. Ou então, seríamos seres que estaríamos no mundo para evocarmos um tipo de felicidade que no fundo é relativa”, diz Gonzalo Armijos.

Valores e ações

Caso Suzane von Richthofen chocou pela frieza e crueldade do crime | Foto: Diogo Moreira/Frame/AE
Caso Suzane von Richthofen chocou pela frieza e crueldade do crime | Foto: Diogo Moreira/Frame/AE

Outro crime que abalou o Brasil pela crueldade e frieza foi o caso Suzane von Richthofen. Com ajuda do namorado, Daniel Cravi­nhos, e de seu irmão, Cristian Cra­vinhos, a jovem planejou e auxiliou na morte dos próprios pais em outubro de 2002. O engenheiro Man­fred von Richthofen e a psicanalista Marísia von Richthofen foram mortos à paulada pelos irmãos Cravinhos quando dormiam. Su­za­ne queria herdar a fortuna da família e fugir com o namorado, um relacionamento que os pais reprovavam. “Provavelmente ela cometeu aquele crime por acreditar que algum benefício teria com a morte dos pais”, ressalta Gonzalo Armijos.

Respostas para o por quê de tamanha crueldade são dadas e compreendidas de várias maneiras e por variadas correntes filosóficas. O próprio Platão, filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, já pensava que as ações são realmente mais fortes do que a razão. Para ele os seres humanos deveriam ser habitados por paixões corretas, isto é, valores a serem aprendidos desde crianças. Segundo o pensador grego do século 4 a.C, para que o homem não fosse dominado por paixões perversas e antissociais seria necessário avivar nele o apego por paixões saudáveis e sociais, advindas pela educação.

Apesar das condições diversas nas quais cada indivíduo da sociedade está inserido, em última instância, os seres humanos devem ser moldados constantemente para hábitos que beneficiem a sociedade. Aristóteles, outro filósofo grego, que foi aluno de Platão, dizia que os indivíduos deveriam aprender o bem pelas razões corretas. Para ele, tais valores somente eram adquiridos por meio da família, pela escola e pela sociedade. Mas o que se observa, é que hoje este tripé que forma o sustentáculo da pacificação da sociedade tem sido perdido por novas convenções sociais.

A história do Brasil é repleta de exemplos de violência

Dione Carvalho (esq.): “Violência contra criança é histórica” | João Batista Valverde (dir.): “O Estado fomenta a violência”
Dione Carvalho (esq.): “Violência contra criança é histórica” | João Batista Valverde (dir.): “O Estado fomenta a violência”

O Brasil é o sétimo país com o maior registro de mulheres vítimas de estupro e está entre os dez maiores do mundo onde há mais casos de violência doméstica contra criança e adolescente. De acordo com o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Crimina­lidade e Violência da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dione Antônio de Carvalho, a sociedade brasileira carrega a cultura familiar patriarcal e machista, em que as crianças não são consideradas sujeitos de direito, mas, na verdade, um objeto da família. “A criança é sempre obrigada a se adequar aos preceitos familiares numa relação conflituosa.”

Segundo ele, na história do Brasil há fortes marcas de agressões sofridas por crianças que vem desde o período da colonização. Casos como o do garoto Bernardo também ocorreram em um passado remoto e vêm se perpetuando através dos tempos. Graças aos recursos midiáticos e informacionais, a sociedade toma conhecimento destes crimes de forma mais rápida.

Outro aspecto para o qual Dione Carvalho chama a atenção é a violência cotidiana sofrida por crianças, que não sensibilizam a sociedade e ficam sem repercussão. Segundo ele a sociedade se comove quando a vítima é uma criança branca e de classe média. O mesmo choque não se observa quando crianças negras e em situação de miserabilidade são violentadas. “Quan­do uma criança israelense é assassinada o mundo fica mais sensibilizado, mas o mesmo não ocorre quando a vítima é uma criança palestina. O porquê disso é que deveria ser discutido.”

Violência de Estado

Para o professor de Filosofia Política da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) João Batista Valverde, a matriz da cultura brasileira é violenta. Esta matriz agressiva ganha potencial na medida em que, gradativamente, há a substituição do valor da pessoa humana pelo valor monetário em geral. Para ele, há a ideia difusa de que basta ter capital que tudo estará liberado, inclusive ações violentas. Enquanto isso a solidariedade, a gratuidade e a relação desinteressada vêm se tornando valores esquecidos. Já o valor monetário, ao contrário, chega com mais força no seio de uma sociedade de matriz violenta como a brasileira.

No decorrer da história do Brasil há vários exemplos de dura opressão do Estado contra movimentos sociais de cunho libertário ou político. No período regencial, por exemplo, várias revoltas terminaram de forma sangrenta e implacável por parte do braço forte do Estado. Até mesmo em litígios com outros países, o Estado brasileiro ficou marcado por sua tenacidade em massacrar opositores. O professor João Batista Valverde aponta a expressiva redução da população masculina paraguaia ao final da Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai), entre os anos de 1864 e 1870, como exemplo clássico da violência cometida pelo Estado brasileiro. Em seu ponto de vista, o grande fomentador geral da violência na sociedade atual.

João Batista Valverde conclui que este aspecto impetuoso do Estado tem empurrado a sociedade brasileira, que segundo ele, tem matriz igualmente agressiva, para um ciclo vicioso extremamente nocivo: um Estado violento, numa cultura violenta que anima as pessoas individualmente para a violência numa consequência com grande potencial destrutivo. O professor ressalta que o Estado tem perseguido os cidadãos por meio de altas tributações, na busca pela diminuição do espaço privado e pela diminuição dos espaços públicos. “Temos uma instituição pública estatal que se expressa de forma violenta na sociedade.”

A mulher seria menos violenta que o homem?

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O caso Isabella Nardoni comoveu o País pela frieza dos acusados | Foto: Reprodução

Há o mito de que o gênero feminino é incapaz de cometer monstruosidades vis contra crianças ou pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas fatos recentes que marcaram a sociedade brasileira mostram o contrário. Mulheres vêm exercendo papéis protagonistas em atos cruéis. No caso do garoto Bernardo, por exemplo, a enfermeira Graciele Ugulini e a assistente social Edelvânia Wirganovicz são acusadas de terem executado e ocultado o corpo da criança. Outros casos emblemáticos, como a da menina Isabella Nardoni também teve uma mulher, a madrasta Carolina Jatobá, como algoz e colaboradora de um crime chocante contra a vida de uma criança.

Para as Ciências Sociais e a Filosofia, a qualidade humana independe de gênero. As maldades masculina e feminina não se diferem. Cientificamente, não há uma correlação positiva entre gênero e a prática de determinados crimes. O filósofo Gonzalo Armijos lembra que o pilar da educação masculina é o estímulo e a demonstração de agressividade e virilidade. Ao contrário da mulher, que é criada para se preservar ao máximo. Pode ser por isso que o lado violento das mulheres não é tão evidenciado. Portanto, a diferença não está no grau e na capacidade de homens e mulheres de cometer maldade, mas sim do tipo de educação que recebem.

A madrasta de Isabella Nardoni, Carolina Jatobá, participou da morte da criança
A madrasta de Isabella Nardoni, Carolina Jatobá, participou da morte da criança | Foto: Grizar Junior/Futura Press

A própria sociedade contemporânea denuncia em seu cotidiano, de forma sutil, que a mulher é tão violenta quanto o homem, como se evidencia no comportamento feminino agressivo no trânsito. Historicamente, na cultura brasileira, as mulheres sempre se mantiveram por muito tempo submissas e restritas a um lugar secundário na sociedade. Com o passar do tempo elas ganharam mais espaço e autonomia e, na medida em que passaram a se expressar, houve a explicitação do perfil violento feminino, até então despercebido. “O caso da enfermeira Graciele Ugulini é algo impressionante, por causa de dinheiro ela é capaz de tramar e matar cruelmente um menino inocente”, observa o professor João Batista Valverde.