Movimentação de pessoas pela cidade, imunidade cruzada, decaimento de anticorpos após a infecção e dinâmica de classes sociais são fatores que poderão ser levados em consideração em novos cálculos

Desde o princípio da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) o índice de isolamento social tem sido usado como medida da adesão da população à quarentena. Mais do que isso, o dado é usado por cientistas para compor modelagens matemáticas que explicam e estimam o número de infectados em função do tempo. Neste momento de reabertura do comércio, conhecer quantas pessoas se aglomeram em quais pontos da cidade é fundamental para que gestores públicos saibam se devem endurecer ou se podem relaxar regras de distanciamento social.

Até há pouco, o único dado sobre o isolamento disponível era coletado por aplicativos de smartphones que usam um sistema de georreferenciamento de uma empresa brasileira, a In Loco. Esta empresa randomiza e  anonimiza os dados dos usuários de aplicativos que têm seu sistema incorporado e compõe um mapa que mostra o percentual da população que está respeitando a recomendação de isolamento. 

A empresa explica em seu site: “Empresas com aplicativos mobile e dispositivos conectados utilizam as informações de localização anônimas da Inloco para fornecer serviços de localização privada […] enquanto protege a privacidade do usuário.” 

A população está testemunhando ciência sendo feita em tempo real; hipóteses sendo testadas. Essa pandemia é muito nova, desconhecemos o vírus. Cientistas cultivam a incerteza porque ela é o motivo e o combustível de seu trabalho.

Ecologia e Evolução e professor da UFG Thiago Rangel

De acordo com o biólogo José Alexandre Felizola Diniz Filho, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) e também do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução da UFG, o índice de isolamento In Loco tem sido eficiente em explicar a velocidade da infecção: “Vimos em nosso modelo que há uma correlação comprovada entre a medição da quantidade de pessoas isoladas e a quantidade de transmissões da Covid-19 – quanto mais isolado, mais devagar o número de casos cresce”.

Segundo o mapa gerado pela In Loco, Goiás apresentou o menor índice de isolamento social no dia 10 de fevereiro, antes do primeiro infectado confirmado no estado, quando registrou 22,7% de pessoas isoladas. Este número corresponde àquelas pessoas que não se movimentam pela cidade, havendo pandemia ou não. O maior índice de isolamento foi de 60,6% registrado em 22 de março – dois dias após o primeiro decreto estadual de isolamento. Hoje, temos 36,6% da população isolada.

Mapas mais completos

Ricardo Dieckmann afirma que operadoras de telefonia colaboram para melhor entendimento da pandemia com dados| Foto: Reprodução / SindiTelebrasil

Recentemente, um novo sistema para acompanhar a movimentação da população sem ferir a privacidade dos usuários foi colocado à disposição de governos e prefeituras. A ferramenta Big Data de Mapas de Calor, desenvolvida pelas operadoras Claro, Oi, TIM e Vivo em conjunto com a ABR Telecom, e sob a coordenação do SindiTelebrasil, ofereceu gratuitamente informações colhidas das torres de telefonia celular para o poder Executivo. Os dados não estão acessíveis à sociedade civil.

Até o momento, 17 estados estão usando a plataforma, entre eles Goiás, e 22 municípios – Aparecida de Goiânia é a única prefeitura goiana a adotar a tecnologia. O contrato firmado entre fornecedoras de telecomunicações (telcos) e governos explicita que os dados podem ser usados apenas para combater a pandemia de Covid-19, conforme explica Ricardo Dieckmann, diretor de Infraestrutura do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil).

Ricardo Dieckmann diz que a nova plataforma pretende ser um complemento para ajudar prefeitos e governadores a tomarem decisões: “O mapa permite uma visão estratificada, e não apenas do município como um todo. Por ele, se consegue ver uma área específica de quatro quilômetros quadrados e fazer uma comparação por períodos. Se você comparar a movimentação em um shopping, por exemplo, com a primeira quinzena de março – período anterior à quarentena – e o índice for superior a 100%, isso não é bom, porque significa que há mais pessoas do que o normal circulando naquela região”.

“Entretanto”, explica Ricardo Dieckmann, “ao contrário de um índice geral de movimentação pelo município, um número mais alto nem sempre é ruim. Se na região residencial o índice for alto, isso é favorável, mas e durante a noite as pessoas estão em um local com muitos bares, isso é desfavorável”.

O presidente da SindiTelebrasil conta como a tecnologia funciona. Os dados dos usuários não são levados em consideração; o mapa de calor é apenas um contador do número de aparelhos conectados à uma antena de telefonia celular. “Não há identificação de qual foi o acesso, esse número é consolidado de forma anonimizada. Assim, os dados pessoais ficam protegidos”, conclui. 

Novas Variáveis

José Alexandre Diniz explica que modelos têm de ser periodicamente recalibrados | Foto: Reprodução

Desde que iniciaram os trabalhos para compreender e prever o avanço da pandemia, diversos outros índices e variáveis foram inseridos nos modelos matemáticos que geram projeções de cenários. Um exemplo é o comportamento individual (uso de máscaras e higienização das mãos), a política de rastrear os contatos que infectados tiveram e a comunicação pública, que se provaram fatores mais poderosos do que se imaginou a princípio, segundo José Alexandre Felizola Diniz Filho.

Recentemente, novas variáveis têm sido estudadas e discutidas em todo o mundo. À medida que cientistas desvendam o novo vírus Sars-CoV-19, compreende-se como as fórmulas devem ser calibradas para projetar com precisão os cenários da evolução dos casos. O doutor em Ecologia e Evolução e professor da UFG Thiago Rangel enumera estudos de ponta que estão sendo investigados e debatidos hoje, para, talvez, integrar os modelos matemáticos amanhã.

Um dos possíveis fatores veio à tona em estudo publicado no periódico científico Cell, em 14 de maio. Pesquisadores do Instituto de Imunologia de La Jolla, na Califórnia, mostraram que células de defesa chamadas Linfócios T, colhidas no sangue de pessoas entre 2015 e 2018, foram capazes de reconhecer e reagir a fragmentos do vírus Sars-CoV-2. Como este coronavírus não estava circulando antes de 2019, a hipótese mais razoável é que essa reatividade seja devida à imunidade cruzada, uma familiaridade do sistema imunológico com vírus semelhantes ao Sars-CoV-2 que pode auxiliar a combater a Covid-19.

Outro fator que pode influenciar tentativas de projetar cenários é o observado no Hospital Schwabing, em Munique, na Alemanha. A investigação sugere que uma segunda infecção pela doença é possível, pois testes conduzidos com pacientes curados da Covid-19 mostraram uma diminuição significativa no número de anticorpos em quatro dos nove pacientes testados, dentro de dois a três meses após a infecção. Porém, um universo amostral de apenas nove pessoas é pequeno demais para qualquer conclusão definitiva e mais estudos são necessários.

“Do ponto de vista de entender a transmissão da Covid-19 isso faz diferença gigantesca”, afirma Thiago Rangel. Na maioria das infecções virais, o tamanho de uma resposta de anticorpo corresponde à gravidade da infecção e o SARS-CoV-2 não é uma exceção. Nos casos em que a doença se manifesta de forma leve ou assintomática, espera-se que o decaimento dos anticorpos seja mais acentuado. 

“Caso a hipótese seja confirmada, testes rápidos IgG – que detectam anticorpos que permanecem no organismo após a infecção pela Covid-19 – podem apresentar um falso negativo”, diz Thiago Rangel. isto é, o número de pessoas que já se infectaram e se recuperaram pode ser maior do que estimamos atualmente.

“Isso afeta o modelo, pois, quando o número de pessoas que já tiveram contato com o vírus  está subestimado, o modelo estima que exista uma população suscetível muito grande, o que levaria o pico da curva de contágio muito para adiante; para o final de agosto”, diz Thiago Rangel. 

Há ainda um último fator que pode vir a influenciar a projeção de cenários. “Até então, a estruturação dos municípios foi baseada em faixa etárias. Idosos são mais suscetíveis e jovens, menos. Porém, considerávamos a chance de transmissão de um grupo para ooutro de forma igual”, explica Thiago Rangel.

O biólogo afirma que, pelas observações feitas em todo o mundo e nas publicações que debatem o tema, tem ficado claro que a desigualdade social do Brasil é expressa também na transmissão da Covid-19. Isto é, o mesmo índice de isolamento na população significa uma coisa para as classes C, D, e E, mas quer dizer outra para as classes B e A.

“Alguns exemplos disso vêm à mente”, afirma Thiago Rangel. “Membros das classes B e A fazem compras em supermercado onde há álcool em gel e as filas respeitam distanciamento de dois metros entre as pessoas, têm mais acesso à informação e recursos para compreender esta informação, utilizam veículos particulares e têm alternativa de trabalhar de casa. Nas casas das classes C, D, e E há mais pessoas por cômodo, seus membros trabalham mais com as mãos e precisam se deslocar fisicamente pela cidade utilizando o transporte público”.

Caso se confirme a hipótese de que a desigualdade social impacta significativamente a velocidade de contágio da Covid-19, um modelo eficiente deveria compreender o mesmo índice de isolamento de duas formas diferentes, a depender do grupo social tratado. Para isto, ferramentas como os Mapas de Calor Big Data das telcos seriam fundamentais. Não apenas saber se moradores de determinada cidade se movimentam ou não, mas ser capaz de entender onde e em qual horário está acontecendo o movimento pode ajudar a identificar qual grupo social está circulando e disseminando o vírus.

A ciência só existe onde há incerteza

“A população está testemunhando ciência sendo feita em tempo real; hipóteses sendo testadas”, diz professor Thiago Rangel | Foto: UFG / Divulgação

Thiago Rangel é taxativo ao afirmar que os modelos matemáticos são continuamente recalibrados à luz de novas evidências. As ideias de imunização cruzada, de decaimento do número de anticorpos após a infecção e das dinâmicas populacionais em função de classes sociais ainda precisam ser mais estudadas antes que possamos afirmar que os modelos que usamos até aqui estavam descalibrados. 

Mas Thiago Rangel afirma que, ao invés deste “erro” ser um sinal de que a ciência é falha, a capacidade de reconhecer suas próprias imprecisões e corrigi-las é um argumento a favor do método científico: 

“Incertezas são inerentes da ciência. A população está testemunhando ciência sendo feita em tempo real; hipóteses sendo testadas. Essa pandemia é muito nova, desconhecemos o vírus. Cientistas cultivam a incerteza porque ela é o motivo e o combustível de seu trabalho. Qualquer pessoa – com jaleco ou sem – que afirme estar segura de algo neste momento está errada”, diz Thiago Rangel.

“Sempre que você conversar com uma pessoa que esconde suas incertezas, pode saber que essa pessoa está te tapeando, porque o conhecimento não é construído com base em fortes convicções, mas em dúvidas que exploramos através de testes. Quanto mais certeza expressa de que está certa, mais você pode saber que ela está errada”, conclui o cientista.