Mesmo sem conteúdo, patriotismo segue como eficiente arma política
21 agosto 2022 às 07h48
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É do escritor e crítico literário britânico Samuel Johnson, que viveu entre 1709 e 1784, uma frase famosa sobre um assunto em alta no Brasil de hoje:
O patriotismo é o último refúgio dos canalhas
Uma citação que qualquer intelectual brasileiro inadvertido poderia fazer caber perfeitamente em um colega de Johnson, o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues.
Sobre Johnson, James Boswell – que havia sido uma espécie de discípulo dele – escreveu aquela que é considerada até hoje a melhor de todas as biografias em língua inglesa: A Vida de Samuel Johnson (Life of Samuel Johnson, no original) mudou a forma de falar sobre a história de uma personalidade, tanto pela forma como pelo conteúdo.
A respeito da frase em questão, Boswell comentou que seu autor não havia se referido ao “amor real e generoso” pela pátria, mas a um “pretenso patriotismo que tantos, em todas as épocas e países, têm usado como um manto para os próprios interesses”.
Algo importante, portanto, é dizer que Johnson não tinha uma visão negativa do patriotismo, mas do que alguns faziam dele para nele se esconder ou dele se locupletar. Boswell, em seu trabalho de registro do, vamos dizer assim, Samuel Johnson “histórico”, buscou ressaltar que a frase não é negativa ao conceito de patriotismo; apenas o apresenta como algo que pode ser facilmente manipulado por qualquer pessoa, independentemente do caráter. Ou seja, alguém que se coloque como “patriota”, mesmo sendo um canalha, teria boa chance de ser bem-sucedido em seus intentos.
Boswell, porém, abre a frase de Johnson para uma camada mais complexa, em relação à canalhice: é que indivíduos sórdidos, quando confrontados, poderiam demonstrar um devotamento patriótico falso a fim de explorar esse sentimento alheio e, então, prosseguir avançando em seus interesses e ganhando, ao mesmo tempo, a salvaguarda de boa parte de um público mais afeito a esse sentimento.
Avançando na etimologia do termo, “patriotismo” tem suas origens no latim “patriota”, por sua vez derivado do grego πατριώτης (patriōtēs) – “patriótis”, significando “do mesmo país”. O radical “patris” quer dizer “terra natal” ou “terra paterna”. Por muito tempo na história, amor à pátria foi considerado somente o apego ao solo. Isso mudou no século 18 – quando viveu Samuel Johnson –, passando a assimilar noções de tradição, costumes e orgulho da própria história.
O primeiro a querer grudar em si o conceito de patriota foi o então candidato Fernando Collor, em 1989
Jair Bolsonaro (PL), nem seria preciso dizer, se elegeu abusando das cores da bandeira e do slogan “Brasil acima de tudo”. Aos mais novos ou mais incautos, é preciso dizer, no entanto, que a estética não surgiu com ele: no Brasil contemporâneo da redemocratização, o primeiro a querer grudar em si o conceito de patriota foi o então candidato Fernando Collor, em 1989, principalmente quando ficou claro que seu opositor no segundo turno das eleições daquele ano seria alguém da centro-esquerda – Luiz Inácio Lula da Silva (PT) levou a vaga sobre Leonel Brizola (PDT) por uma diferença muito pequena.
Depois, quando os escândalos de corrupção e tráfico de influência de seu governo, divulgados a partir de uma entrevista de seu irmão Pedro Collor à revista Veja, o então presidente, aproveitando-se da proximidade do feriado de 7 de setembro, convocou as pessoas a colorirem as ruas de verde e amarelo. Levou um revés que lhe mostrou o tamanho de sua impopularidade quando pipocaram manifestações em todo o País de multidões vestidas de preto, na maioria jovens: eram os “caras-pintadas”, que, de verde e amarelo só usavam duas faixas de tinta guache de cada lado do rosto.
As cores da Pátria só voltariam a ganhar as ruas de forma ostensiva com a apropriação das manifestações de 2013 – iniciadas pela esquerda, por melhores serviços públicos – pelos grupos de direita que surgiam como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Vem Pra Rua e o Nas Ruas. Eles transformaram o ímpeto inicial conduzido por um lado ideológico oposto em aglutinação de massivos blocos coloridos em verde e amarelo para, primeiramente, em 2014 contrapor a campanha de reeleição da então presidente Dilma Rousseff (PT), apoiando Aécio Neves (PSDB); depois, com ela reeleita, para pedir seu impeachment e protestar contra a corrupção no governo federal, dando apoio irrestrito à Operação Lava Jato. O juiz Sergio Moro, responsável pelo caso na Justiça Federal em Curitiba, foi incensado como um grande patriota.
Naquele momento, Bolsonaro era ainda uma figura menor, mas já rodava o Brasil em campanha. Numa conexão qualquer em um aeroporto, se deparou com Sergio Moro, em um encontro que mostrou o juiz um tanto confuso com o assédio daquela figura que, realmente, ele pareceu desconhecer num primeiro momento.
A partir da abertura do processo de impeachment de Dilma, Bolsonaro ganha impulso e o País passa a ser definitivamente dividido pela polarização marcada pelo verde e amarelo. A partir de então, usar a camisa oficial da seleção brasileira ou expor a bandeira nacional passou a significar, na maioria dos casos, aderir ou avalizar uma determinada corrente política.
Porém, ao aludido patriotismo de Collor, Bolsonaro trouxe um algo mais: como capitão do Exército que foi para a reserva em uma situação muito polêmica – após um processo no Superior Tribunal Militar que investigou sua participação no planejamento de explosões em quartéis –, ele reforçou a ligação das cores pátrias às instituições militares, trazendo para si a adesão da maioria dos homens das forças de segurança e também de muita gente saudosa da ditadura.
É no patriotismo exacerbado que Jair Bolsonaro aposta todas as suas fichas. A ponto de, em uma solenidade extremamente formal como a posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), enquanto o Hino Nacional era tocado, o presidente da República ser o único da mesa de convidados a colocar a mão no peito. Explica-se: apesar de não ser um comportamento vetado, o convencional nas solenidades é deixar os braços estendidos ao longo do corpo durante a execução. Em 1998, Bolsonaro entrou com um projeto de lei para mudar a Lei 5.700/71, que dispunha sobre essa etiqueta, para obrigar todos a cruzarem a mão direita sobre o lado esquerdo do peito. A proposta foi arquivada.
De qualquer forma, após a cerimônia no TSE, nos grupos de WhatsApp bolsonaristas, o presidente foi saudado como o “único patriota” que estava ali. A atriz Regina Duarte, ex-secretária nacional de Cultura do atual governo, também exaltou a postura dele durante a solenidade.
Talvez o maior frasista que o Brasil já teve, o imortal Millôr Fernandes – “imortal” não por um lugar na Academia Brasileira de Letras (ABL), o qual nunca teve, mas pelo respeito ao conjunto de sua obra – uma vez respondeu à definição de Johnson. Para Millôr, o patriotismo não seria o último refúgio do canalha, como havia dito o pensador britânico. Não aqui. “No Brasil, seria o primeiro”.