Citado em reportagem da revista “Veja”, livro de A. C. Scartezini, hoje colaborador do Jornal Opção, é um dos melhores documentos para mostrar quem era o general dos anos de chumbo

Médici, o ditador, e Scartezini (no detalhe), seu “perseguidor”: batalha entre quem não queria falar nada e quem queria extrair tudo que pudesse
Médici, o ditador, e Scartezini (no detalhe), seu “perseguidor”: batalha entre quem não queria falar nada e quem queria extrair tudo que pudesse

Elder Dias

Tarde de quarta-feira. Um sedex chega à redação do jornal. Pelo remetente, já sei o conteúdo, fruto do contato telefônico do dia anterior. Dentro da correspondência está um livro miúdo, ainda envolto pela embalagem plástica, mas que revela sua idade de quase 30 anos logo ao ser aberto, tanto por seu estado físico já amarelado como pelo estilo de diagramação. Embora modesto na aparência, é um exemplar raro, que agrega valor por ser resultado de um esforço de reportagem entre o trabalhoso e o hercúleo.

Nas páginas da publicação, seu autor tenta desvelar a figura hermética do gaúcho Emílio Garrastazu Médici, que também é o tema deste texto que se inicia. Fala-se aqui daquele que conduziu o auge do que houve de pior no regime militar: repressão, censura, tortura, desaparecimentos, mortes inexplicadas. E também o comandante da nau verde-amarela durante o chamado “milagre econômico”, período de seu governo, entre 1969 e 1974, em que houve um crescimento assombroso do PIB e uma consequente empolgação ufanista, polvilhada com a conquista do tricampeonato de futebol no México. Eram os anos pra-frente-Brasil, em que se ouviam, do Oiapoque ao Chuí, gritos simultâneos de euforia e de dor.

Referência dos anos de chumbo, Médici, vítima de insuficiência renal e respiratória após derrame cerebral, foi enterrado meses depois da ditadura. Morreu em 1985, quando José Sarney tinha assumido o poder em vez do eleito Tancredo Neves, internado às vésperas da posse, em 15 de março, e que morreria semanas depois, em 21 de abril. Em 9 de outubro, dois meses antes de virar octogenário, veio a hora daquele general sorumbático.

Médici ressurge das tumbas agora, no ano em que o golpe militar de 1964 completa meio século e com a divulgação de um arquivo com 32 caixas de material manuscrito e cerca de 700 documentos, além de dezenas de álbuns com recortes de jornais e centenas de fotos avulsas. Todo o pacote, que está devidamente guardado desde 2004 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, passa a ser material para pesquisadores.

É nesse contexto, em que se misturam passado, presente e história, que entra A. C. Scartezini, o remetente do livro — e também seu autor. Jornalista veterano, que formou a linha de frente de publicações como “Veja”, “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo” e “Correio Braziliense”, ele hoje é colaborador do Jornal Opção em Brasília. No início da década de 80, ele tinha tomado para si a missão de extrair tudo o que fosse possível daquele militar sombrio e exilado no Rio, em Copacabana, algo que até então ninguém conseguira perscrutar. Entre 1982 e 1984, conseguiu vários encontros com Médici, no Rio, em Porto Alegre — cidades em que o general tinha apartamentos —, em Petrópolis (RJ) e na Estância Nova, sua propriedade rural no município de Dom Pedrito (RS).

O “bálsamo” de ACM

O resultado do próprio livro, porém, não agradou ao jornalista. Ao contrário, como ele confessa. “Era difícil para mim ver aquele livro. Foram tantos encontros para arrancar dele só aquilo. Então, me senti um fracasso como repórter.” Isso mudou tempos depois, em meados do governo Sarney, após encontro com Antônio Carlos Magalhães. “ACM era, então, ministro das Comunicações e eu trabalhava no ‘Correio Braziliense’. A direção do jornal acertou uma entrevista de domingo de página inteira com ele, que aceitou, mas exigiu que eu participasse. Nunca o tinha visto pessoalmente. Quando eu cheguei, ele me questionou se sabia por que estava ali. Ele: ‘Eu pedi o jornal para te mandar. Quero que me conheça e pare de falar mal de mim’.”

Mas o que ficaria mesmo na memória de Scartezini seria o dito pelo político baiano mais adiante: “Li seu livro sobre o Médici e posso te dizer: ele só diria mais do que aquilo se o Leitão de Abreu [ministro da Casa Civil de Médici] falasse por ele.” Foi um bálsamo para as inquietações de Scartezini. “Eu tinha esse complexo, de não ter tido sucesso com Médici. Quando ACM me disse aquilo, ele me resgatou a autoestima.”

Nas palavras do general, mais ressentimento do que arrogância
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Capa do livro de A. C. Scartezini: relato enxuto, mas rico, sobre um homem que nunca se mostrava disposto a falar sua versão dos fatos

Na reportagem da edição 2.385 de “Veja” sobre os arquivos do general, uma frase extraída de “Segredos de Médici” (editora Marco Zero, 90 páginas), o livro de Scartezini, lhe serve como abertura: “Eu sou o arbítrio, sou a ditadura, a ditadura não fala.” E foi isso o que mais fez o ditador depois de deixar a Presidência: não falar.

A frase está na página 24, mas, editada da forma como colocou a revista, põe sobre Médici uma carga de arrogância muito maior do que a deduzida com a leitura do texto original na íntegra. Era apenas o segundo encontro de Scartezini na “perseguição” que ele — então repórter da “Veja” e trabalhando em São Paulo — pretendia empreender. Estavam no apartamento do general no Rio de Janeiro e o repórter acabara de convidar o general a falar à revista. Relata o trecho:

“A desenvoltura, a espontaneidade de Médici (…) animou-me a propor-lhe uma entrevista para ‘Veja’. Aí ele encolheu-se, a voz endureceu e a resposta, tensa, veio inflexível:

— Não, eu não vou dar entrevista nenhuma. Eu sou o presidente do arbítrio. Qualquer coisa que eu disser agora, quanto estamos indo para as eleições, será apontada como uma ameaça às eleições. Não, eu não posso dizer nada. Tenho que ficar calado. Eu sou o arbítrio, eu sou a ditadura. A ditadura não fala. Agora, eu fiz um governo que enfrentou até militares…”

Era 18 de outubro de 1982 e faltava menos de um mês para 15 de novembro, data das primeiras eleições para governador desde 1965, ano anterior ao governo Médici. Pelo que se depreende da íntegra, então, à época o general se mostrava muito mais ressentido do que prepotente. Isso aparentemente se confirma na página seguinte, quando ele próprio desenvolve a comparação entre o que pensava representarem ele próprio (“a ditadura”) e seu sucessor, Ernesto Geisel:

“— Aí, enfrentei greve de militares no meu governo, enfrentei a guerrilha. Mas não cassei ninguém. Nunca fechei o Congresso. Pelo contrário, exigi que o Congresso fosse reaberto e homologasse a minha indicação para a Presidência. Não fiz nenhum casuísmo, não fiz nenhum pacote e vencemos muito bem as eleições de 70. (…) Depois veio o Geisel, perdeu as eleições de 74 e disse que a perdeu porque ‘herdou um pesado fardo’. Não, ele não. Eu é que sou o arbítrio. Por isso é que eu não posso falar nada. Cassaram até o presidente de um partido… E eles são da abertura. Eu, que não fiz nada disso, sou a ditadura.”

Logo a seguir, Scartezini pergunta se ele se sente um injustiçado. E Médici, o ditador, confirma. Estava claro no discurso que lhe pesava ficar com o carimbo dos anos de chumbo (“não cassei ninguém”, “nunca fechei o Congresso”) e expressava isso de forma irônica: afinal, foi Geisel quem usou as prerrogativas do famigerado Ato Institucional nº 5, de 1968, para cassar (o deputado Alencar Furtado, líder do MDB) e para fechar o Congresso (no chamado “Pacote de Abril”, em 1977). Ao proclamar-se como a ditadura, portanto, há menos prepotência do que sarcasmo de um ressentido.

A. C. Scartezini, correspondente do Jornal Opção em Brasília, onde reside, cumpriu seu papel de repórter ao se aproximar de Médici em seu período pós-governo, mais precisamente no ocaso de sua vida, como nenhum outro.

Assim, por ter conhecido mais de perto — sua casa, sua família, seus hábitos — um ícone de tal porte da trajetória do País, ainda que eternizado de forma negativa, merece passar do status de repórter para o de fonte. Conheceu de perto o humor azedo e confirmou a aversão de Médici a se expor e a opinar. Construiu a história.

Toda a fraqueza do presidente mais poderoso
Emílio Médici (à direita) com Ernesto Geisel, em foto de 1973, ainda durante o governo do primeiro, que depois destilaria ressentimento com o sucessor
Emílio Médici (à direita) com Ernesto Geisel, em foto de 1973, ainda durante o governo do primeiro, que depois destilaria ressentimento com o sucessor

Assim como as caixas de metal de Médici, o livro de A. C. Scartezini — que escreveu ainda “Dr. Ulysses, uma Biografia” — também merece ficar registrado como documento histórico. Não teve a pretensão de ser uma biografia, mas é, certamente, o registro mais isento já feito da trajetória do ex-presidente, que até teve uma outra obra que dele tratava, mas francamente militante: “Médici — A Verdadeira História”, escrita por um general, Agnaldo del Nero Augusto, foi largamente divulgada como reação à instalação da Comissão da Verdade, para apurar os abusos cometidos pela ditadura.

Pergunto a Scartezini — ou Scarta, como é mais conhecido no meio jornalístico — se Médici foi uma espécie de consequência do AI-5, o ato institucional que abriu a caixa de Pandora da ditadura. Ou seja, Médici foi um ditador mais severo porque teve aquele instrumento? “Era vocação. O AI-5 foi apenas um facilitador para o que ele viria a fazer. Quando decidiu construir a Transamazônica, um dos ministros lhe disse que seria muito caro. Ele respondeu: ‘Eu tenho o AI-5, eu posso tudo’. Ele não seria outro na Presidência se não tivesse o AI-5.”

Por outro lado, o ditador não era obcecado pelo poder. “Ele não queria nem ser o presidente. Quando foi convidado a ser o ditador, disse ‘isso é para os Geisel, os que passaram a vida inteira se preparando”, conta Scartezini. Chefe do SNI, o Serviço Nacional de Inteligência — que hoje é a Abin —, foi escolhido por “ter perfil”. Assumir a Presidência foi, para Médici, como uma missão militar a mais a que fora designado.

Scartezini, que saiu da “Veja” há 29 anos, disse que a reportagem da revista, escrita por Lauro Jardim, serviu para “refrescar a memória”. “Fiquei sabendo dela no domingo à noite, por um amigo. E me vieram as lembranças, como a das insistências com Médici. Viajava atrás dele para qualquer lugar.”

“Segredos de Médici” tem dois prefácios não menos ricos, e de lados opostos. Um foi do aliado de primeira hora do general, seu ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho, que sempre defendeu a gestão, inclusive depois, no Congresso, como senador — Médici muitas vezes demonstrou insatisfação com seus auxiliares, que não o defendiam. O outro foi do jurista e ex-senador Paulo Brossard, oposicionista que fez pesadas críticas a quem, como diz no texto, “pôde tudo”. Passarinho tem hoje 94 anos, e Brossard, 89.

O livro de Scartezini e todas as peças reunidas sobre Médici, espaçadas pelo tempo na história, servem para deduzir que, por trás do forte e poderoso general, havia um homem vaidoso e ressentido, talvez inseguro, falsamente conformado, que não engolia ter se tornado um bode expiatório. Morreu desgostoso com seus sucessores, Ernesto Geisel e João Figueiredo, tanto por se achar traído por eles como por estes terem sido vistos como os militares que deram passos para a redemocratização.

Garrastazu Médici queria ser respeitado e defendido pelos colegas militares, por ter feito o que deveria fez, em seu pensamento: defendido o regime da “ameaça comunista”. À custa de sangue e lágrimas, ele limpou o terreno para haver a transição implantada depois. Achava que teria feito um serviço “sujo”, mas “necessário”, e do qual seus sucessores tentaram sempre se esquivar.

No fim, o grande ditador preferiu se esconder. Não concedeu a Scartezini a grande entrevista que o repórter perseguia. Morreu sem se abrir à fala pública, sem frequentar páginas amarelas. Por desgosto ou desconfiança, ou as duas coisas, preferiu uma espécie de autoexílio. Assim, não pôde também lutar contra o estigma que foi criado sobre si, embora fosse isso, talvez, uma batalha inglória. Afinal, se ele não matou ou torturou diretamente, foi sob sua batuta que isso ocorreu de forma flagrante, sem que houvesse qualquer movimento para impedir. Assim, o mesmo homem que dizia tudo poder se tornou impotente para lutar pela reescrita de sua história. Será sempre o ditador dos anos de chumbo.

Scarta tem no currículo outras histórias saborosas, como o dia em que quase apanhou do então vice-presidente Aureliano Chaves, contada por Augusto Nunes. Seu livro mereceria uma reedição. É um relato curto, é verdade, mas até isso espelha o que era seu principal personagem: curto e grosso.